domingo, 26 de fevereiro de 2012

O Mundo De Sonhos De Paprika


A primeira vez que assisti Perfect Blue, me apaixonei completamente. Fiquei tão fascinada por aquele filme tão autenticamente “thiller hitchoquiano” (meu diretor preferido, Alfred Hitchcock), que me vi na obrigação de saber mais sobre Satoshi Kon e sua curtíssima filmografia. Logicamente, me apaixonei completamente pelo seu estilo de contar história. Como dito por ele em sua carta pós-morte, ele foi “aquele tipo de cara”, e é por isso que ele pôde fazer anime meio estranho, um pouco diferente – E sangra um pouco o coração, pensar que ainda pude conhecê-lo com vida, mas não deu pra ver sua última criação ir ao ar, The Dream Machine, sob sua batuta.

A característica que acabou marcando Kon foi à densidade psicológica que ele imprimiu em suas três obras mais conhecidas; Perfect Blue, Millenium Actress e Paprika, seu último trabalho. Se olharmos bem, são distintas, mas funcionam como uma trilogia. Nesses filmes temos personagens com uma tensão psicológica aflorada, em um jogo entre a realidade e o sonho. Tem um “quê” de "Lynchiano" (David Lynch, diretor americano) ali, onde as imagens de sonhos e o meticuloso efeito sonoro acabam se destacando, às vezes até mais, como é o caso de Paprika, que o roteiro em si.


Em perfect Blue, Kon crítica todo o universo das Idols, em Millenium Actress, ele volta a fazer aquilo que faz bem e encantou em seu primeiro filme, uma mistura de realidade e ficção. Vemos isso novamente em Paprika, uma crítica à tecnologia e uma viagem entre o sonho e a realidade. E beeem, suponho que Paprika seja um filme bem conhecido, bem visto e comentando, por isso, não há porque fazer uma resenha comportada. Assim, comentarei alguns detalhes do enredo que eu acho interessante (com devidos spoilers).

O Mundo De Paprika

Lançado em 2006, pelo mesmo estúdio de todas as suas obras anteriores, o MADHOUSE, esse filme era um sonho antigo de Kon, que nos extras do DVD/BD do filme lançado oficialmente aqui no Brasil, revela que Perfect Blue é meio que uma tentativa de fazer Paprika, livro de Yatsukata Tsutsui, lançado em 1993 ao qual ele estava lendo na época. Talvez por isso, Perfect Blue tenha ficado tão diferente do original, aliás, muito diferente. O Tsutsui Yasutaka é aquele mesmo que escreve o livro do premiado filme Toki wo Kakeru Shoujo (A Garota que Salva no Tempo), também uma obra do gênero Sci-Fi. Inclusive, nos extras de Paprika, há uma ótima entrevista, com a presença de ambos. Eles que já vinham de uma dobradinha juntos, do ótimo Millenium actress, onde Kon adaptou mais um de seus romances. A dobradinha deu certo, principalmente pelo fato do gosto compartilhado por ambos, em dar vida a heroínas cheias de ímpeto e desejos. E eles comentam isso nos extras, em uma conversa pra lá de descontraída sobre sonhos, junto aos seiyuus de Chiba (Megumi Hayashibara) e Tokito (Toru Furuya).


A história de Paprika se desenvolve em torno do DC Mini, um aparelho desenvolvido por uma equipe de psicoterapeutas que permite aos médicos gravar os sonhos dos pacientes e eventualmente fazer algumas intervenções. O aparelho que ainda está em fase de testes, foi desenvolvido em três unidades por Kosaku Tokita, mas acaba sendo roubado por uma espécie de terrorista, que passa a invadir os sonhos de varias pessoas, manipulando-os de uma forma que a realidade começa a se distorcer e os limites entre ficção e realidade a se confundir e fundir, fazendo vítimas fatais. Isso dá sequência a uma série de eventos, onde uma doutora, que faz parte do projeto; Atsuko Chiba, o inventor do aparelho; Kosaku Tokita e um detetive paciente e usuário do mecanismo; Toshimi Konakawa, irão se envolver em uma tentativa de deter a pessoa que está invadindo os sonhos alheios e fazendo com que várias pessoas confundam sonhos com realidade, se tornando viciados no universo onírico de Paprika.

Como já lhe é característico, Kon faz suas devidas alterações minuciosas na adaptação, participando de cada passo da produção e imprimindo sua marca pessoal, que o fez destacar entre tantos talentos. Tão onírica quanto todo o universo criado por Kon, é Paprika, pseudônimo da psicoterapeuta Chiba Atsuko, que entra no espaço dos sonhos como uma figura que ajuda e guia os seletos pacientes utilizadores do DC Mini. No filme, Kon não faz um grande mistério em torno dessa dupla identidade, mas também não entrega de primeira, deixando a duvida pairando no ar e enganando os mais desatentos, só revelando depois que toda a trama se encaminha próximo ao clímax, de uma forma bem natural.


O Universo dos sonhos

Paprika mistura o espaço lúdico com o espaço real e aqui Kon trabalha um pouco em cima do conceito de “sonho lúcido”, um estado de sono alterado, em que o indivíduo tem sonhos que se misturam com a realidade ou quando o indivíduo possui sonhos muitos fantásticos ou muito realistas, no sentido de que as pessoas pensem que estão realmente vivenciando o sonho.

Mas Kon vai mais além e adentra em questões de psicanálise freudiana, trazendo à tona a figura dos duplos, de ID, EGO, SUPEREGO, Édipo e nhé, nhé, nhé. Paprika, apesar de extremamente simples, soa confuso em sua narrativa repleta de cortes e uma edição aprimorada, característica que tornou Kon aos meus olhos um mago. É deliciosamente “viajado”, onde Kon parece se divertir esbanjando toda sua criatividade por trás da produção, em uma intrigante viagem alucinatória através dos sonhos manipulados.


Paprika é viagem psicodélica e já vale por isso e aqui da pra dizer que o roteiro em segundo plano, não atrapalha a narrativa. Nos sonhos, os personagens têm seus temores exacerbados, saltando de um sonho para o outro e invadindo sonhos alheios, em uma fuga frenética de um universo completamente hostil e fora de seu controle. 

Se você cresceu assistindo filmes da Walt Disney, certamente se lembrou de seus grandes clássicos e aquele universo protegido e recheado de fantasias inocentes (eu não assisti Bambi, mas dizem ser um pouquinho mais controverso), ao assistir Paprika. Como já declarou Kon, animações é supostamente um ambiente de sonho, bonito a agradável. Mas o mundo de sonhos de Paprika é completamente o oposto.

"No Japão, não apenas crianças, mas adultos com seus 20/30 anos escolhem os animes e mangás como um meio de fuga de suas vidas reais. Mas acho que há um perigo nisso também. Se você entrar nesse mundo, ele é muito vivo e colorido, e sedutor, mas há grandes armadilhas ao se adentrar nesse universo, principalmente se você deixar o seu mundo real se deteriorar em detrimento dele.”

[Paprika na nuvem voadora do Goku - É nois que voa bruxão]


Há um momento durante a execução, onde um personagem descreve o mundo dos sonhos como habitado por criaturas que já não têm um lugar na realidade. Algo bem intricado na sociedade japonesa, um país onde vários jovens preferem apelar para escapismos, a enfrentar a dura realidade, com aval e incentivo da indústria. Tokita é um homem com obesidade mordida, meio que um álter ego de Amuro Ray, da série Mobile Suit Gundam, um desajustado social, expert em máquinas e computadores – Inclusive, ambos os personagens possuem o mesmo seiyuu e segundo Kon, nos comentários dos extras de Paprika, foi algo meticulosamente planejado. Assim como o personagem de Gundam, que Kon tinha em mente, Tokita também possueI habilidades fora do comum, sendo considerado um gênio, onde suas habilidades soam como se fossem um dom. Ele é um personagem bem infantilizado. Teve a ideia de criar o DC Mini, ao conversar com um amigo, discutindo o quanto seria interessante se eles pudessem participar e vivenciar o sonho um do outro.

Paprika se desenvolve assim. Como se fosse o universo infantilizado de sonhos do jovem Tokita, onde o fantasioso e lúdico se encontram, com certa ingenuidade inabalada com as consequências terríveis que isso tem na vida real. O flerte entre a doutora Chiba e o Tokita também funciona como um sútil fio condutor. Oras, se aquele é o universo de sonhos criados por TokiKa, a figura que o habita, é ninguém menos que sua amada doutora Chiba, só que na figura de Paprika. Aqui, Kon trabalha com a dualidade de personas, com aquilo que eu escolhi ser no dia a dia, e aquilo que eu gostaria de ser – E claro, todos os conflitos provenientes disto, como aceitação do verdadeiro “eu”. Paprika é a persona que Chiba sempre quis ser, enquanto na realidade, escolheu por camuflar e esconder de todos seus anseios e fraquezas.


Um Louco Carnaval

Todas essas constatações são evidenciadas no clímax, num dos momentos mais emblemáticos de Paprika, a “Parada de Tudo Que Existe”, o sonho principal dentro do contexto do filme, onde naquele momento, Chiba, Paprika, Tokita e o delegado se adentram e se encontram no sonho do terrorista. Aqui, vemos o sonho de Kon atingir o Estágio 3 do sono NREM. Onde tudo fica muito louco, insano e surreal e onde se tem mais dificuldade em despertar.

A desagregação coletiva é representada por meio desse louco carnaval. Sofá, geladeiras dançantes, forno de micro-ondas que desfilam por uma rua repleta de confetes. Logo atrás, temos sapos tocando trombetas, um grupo de guaxinins bêbados e segurando garrafas de saquê, dragões, manequins, bonecas assustadoras em um estranho ritual e, claro, o melhor de tudo; a Estátua da Liberdade. Em seguida, demônios mascarados, um samurai arrogante, a Vênus de Milo, Godzilla, a Virgem Maria e até Buda. Enfim, é um desfile louco, um pesadelo em espiral que passa tudo por debaixo de “Torii’s” (Portal xintoísta marca entrada em lugar considerado sagrado, a entrada entre dois mundos; separando o real do universo intangível), que evidenciam ainda mais esse choque entre o lado cultural japonês e a tecnologia. O terrorista acaba envolvendo um grande numero da população nesse sonho bizarro, transformando cada um em algum elemento fantástico que povoa aquele universo. Como um grupo de adolescentes que se transformam em celulares com câmera para fazer fotografar debaixo da saia das garotas. Ali é o encontro de tudo e segundo o terrorista, por meio de Satoshi Kon, o refúgio da realidade.

[A fantástica e soberba cena de "A Parada" em Paprika. Um show legitimamente audiovisual, saída diretamente da cabeça de Kon e elogiada pelo escritor original]

Hirasawa Susumu - Circus he Youkoso



"Eu faço-os com a intenção de ser para um público geral, um público mainstream. Mas eles tendem a ser percebidos como muito mais artístico."

"Eu estava muito consciente das tradições animistas no Japão, quando eu criei a cena do desfile em Paprika. Nós vemos todos esses objetos, e se esses objetos são um portão xintoísta ou um Buda, são todas coisas que não deveriam ter uma vida própria."

"Eu entendo que, do ponto de vista cristão de animismo, - onde você dá uma alma e espírito para todos os tipos de objetos - está errado e incorreto. Mas eu não acho que é uma razão para se opor a cultura de qualquer outro país. No Japão, o xintoísmo é uma religião politeísta em que você acredita em muitos deuses diferentes partindo da visão de diferentes pessoas. O Xintoísmo reconhece o Deus cristão. Por que não? Há muitos deuses. Mas quando eu penso sobre como o respeito não vem de volta, eu fico um pouco triste. Eu acho que é algo que contribui para conflitos mundiais culturais e muitos problemas." - Satoshi Kon, sobre o impacto que a cena da Parada em Paprika, teria em outros países e o fato da mesma não ser de fácil assimilação para quem não tem o minimo de contato com a cultura japonesa.

"Quando estão no brotinho, são ainda melhores" - Verso cantado no filme.
 Entre os Limites da Realidade

"Na televisão e através da Internet, as pessoas estão sendo seduzidas pela doçura da ilusão e a doçura dos sonhos. É necessário ter esse alívio, porque sem ele a vida é muito difícil. Mas eu acho que a quantidade de fantasia que as pessoas estão sendo alimentadas através da mídia tornou-se desproporcional. Eu acredito em um equilíbrio entre vida real e a imaginação. Anime não deve ser apenas um meio de escape.”

Kon aplicou essas suas ideias muito bem dentro do roteiro de Paprika, escrito em conjunto com Seishi Minakami. Muitos dos diálogos entre Paprika e o detetive Kogawa transitam entre o universo do cinema e dos sonhos e rementem a semelhanças entre os dois mundos. Em um desses diálogos entre Paprika e o detetive Konakawa, temos uma excelente metáfora sobre a relação entre a internet e os sonhos e o papel que ambos desempenham: expressar nossos desejos íntimos. Ainda que o roteiro não seja tão expositivo aqui, os diálogos são carregados e impactantes, repletos de nuances fáceis de passarem despercebidos.


O detetive Kogawa tem seus pesadelos transformados em filmes de diversos gêneros que contam um pouco de sua história e seu grande conflito interno. No fim, a experiência em ser uma cobaia de testes para o DC Mini, acabou lhe servindo como excelente terapia. O universo desses filmes onde ele e Paprika se aventuram são meros reflexos de anseios íntimos dele. Aí temos Tokyo Godfathers, filme dirigido por Kon, onde o mesmo mostra uma certa mudança de direção ao apostar mais no drama humano, do que no psycho. Tem também o clássico Tarzan e o romance cult A Princesa e o Plebeu, com Paprika no lugar de Audrey Hepburn, e ele, claro, do fotógrafo William Holden. Além de citações ao O Iluminado, de Stanley Kubrick. Tudo isso se explicita de forma metalinguística como tema do filme e o fato de situar o espectador como o cinema consegue tornar algo real em fantasia.

Em um país tecnológico, mas que mantem viva sua cultura tradicional, o antagonista do filme se autodenomina “O Protetor dos Sonhos” e mantêm forte resistência frente ao avanço da tecnologia que agora procura invadir um dos lugares mais sagrados, intimistas e subjetivos do homem e manipula-los. Mais uma vez, Kon consegue transpor uma forte opinião própria – tecendo uma crítica sútil a indústria, àqueles que se alienam e esquece-se de suas próprias vidas, projetando a numa realidade fictícia – sem deixar de oferecer um entretenimento de qualidade. 


Comentários Gerais

O tema realidade versus fantasia não é novidade, nem a exploração dos seus limites, da capacidade de distingui-los. Mas Kon faz isso de uma forma tão peculiar, que se distingue de todos feitos anteriormente, até mesmo daquele que acabou se inspirando em sua obra, Inception (A Origem), segundo o próprio Christopher Nolan. Visualmente, Paprika é impecável. E que espetáculo, Paprika é um daqueles longas animados, que nos lembram o motivo de gostarmos tanto de animações. Se preferível, é feito pra assistir numa tela grande, com uma sala de excelente acústica e com boa companhia do lado. Imagino que, aqueles que puderam vê-lo no cinema, saíram com um sorriso estampado no rosto.


A trilha sonora é maravilhosa, feita por Susumu Hirasawa, que já vinha acompanhando Kon desde Millennium Actress. A música tema, que toca durante a Parada, é super alto astral, carnavalesca e empolgante, como deve ser e casando perfeitamente com o visual. Senti vontade de pular da cadeira e dançar junto. O filme termina com um cliffhanger daqueles que deixam uma vontadezinha de saber o que aconteceu depois e embalado com uma bela música seguida dos créditos. Daí, a sair com os pés nervosos e cantarolando a música, é algo que se faz quase de forma inconsciente. No meu caso, sai resmungando a música baixinha para levar os milhares de copos sujos que acumulo no quarto, até a cozinha.



Paprika  nos mostra um excelente casamento entre 2D e CGI, com profissionais já acostumados com o método de Kon trabalhar. Assistindo às cenas dos extras contidos no DVD/BD, fiquei completamente embasbacada com o passo-a-passo na produção e como tudo foi criado minuciosamente, de uma forma quase que artesanal. Tudo pensado para que se passasse uma sensação de naturalidade em todas as cenas do filme. Os CGs utilizados são imperceptíveis para olhos destreinados, onde poderia se julgar tranquilamente, se tratar de desenho 2D. É raríssimo eu assistir um filme duas vezes, mas Paprika se mostrou uma experiência ainda mais encantadora quando o vi pela segunda vez. Principalmente pelo seu aspecto, um pouco confuso inicialmente, de como a história se desenvolve. A segunda vez, assisti dublado e achei sensacional a dublagem brasileira, não devendo nada para a original. Enfim, o DVD ou BD de Paprika, valem cada centavo e se gostaram do filme ou admiram Satoshi Kon, adquiri-lo é quase que um dever seu. Paprika é um filme bem estético, mais visual do que texto, mas é antes de tudo, um excelente entretenimento solido e coeso do inicio ao fim. 

Estúdio: MADHOUSE
Tipo: Filme
Duração: 90 min
Ano: 2006
Gênero: Fantasia/ Aventura/Ação/ Sci-Fi
Direção: Satoshi Kon
Roteiro: Seishi Minakami/Satoshi Kon

[Dica de outras opiniões sobre: Blog Gyabbo! & Netoin]




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[Screenshots de Paprika]



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