Black Hole apresenta uma das coisas mais assustadoras de todos os horrores: a adolescência.
Nos arredores de Seattle, em meados da década de 70, um espectro sem nome ronda os pensamentos dos adolescentes locais. Uma praga insidiosa se dissemina pelo contato sexual e parece não poupar ninguém. Em cada um dos infectados, ela se manifesta de forma diferente – enquanto alguns se safam com simples manchas na pele, outros se transformam em aberrações, criaturas deformadas, vagas lembranças do que foram um dia. Para esses, não resta alternativa a não ser o auto-exílio em acampamentos precários, afastados da civilização. É neste clima de horror e insanidade que se desenvolve o enredo de Black Hole. Nele, a juventude é a porta de entrada do purgatório; o sexo, o inicio de um terrível pesadelo; e a vida, uma sinistra roda-viva, que transforma tudo o que toca em uma espiral interminável de provocações e injustiças. – Sinopse retirada da primeira edição lançada no Brasil pela editora Conrad.
Peguei Black Hole para ler em um momento em que eu estava precisando de algo intenso e brutal que suprimisse um pouco minha desolação e desordem interior. E foi exatamente isto que Black Hole me ofereceu, mas foi muito mais além do que eu esperava, ao responder indiretamente minhas indagações niilistas. É uma graphic novel, um quadrinho, de 2 volumes fechados que está há uns 2 anos na minha lista de leitura, e quando senti esta sede de algo tão denso capaz de me arrebatar completamente para outra dimensão, achei que seria a oportunidade ideal para enfim ler esta obra ganhadora de 9 Harvey Wards e do prestigiado Eisner Award como melhor álbum de 2006. Foi simplesmente a coisa mais envolvente, provocante e perturbadora que eu li em quadrinhos desde Oyasumi Punpun.
Dizem que os buracos negros são tão profundos que quase nada pode fugir deles. Segundo entusiastas do começo do mundo, é o lugar onde toda a luz e toda a matéria são tragadas para este ambiente de absoluta singularidade, repleto de massa concentrada e negro absorvente, centro do universo. Faz sentido. Afinal, houve – e ainda há – momentos em que nossas esperanças, desesperanças e decepções não tinham limites, onde o amor e o desgosto eram absolutos; como um inicio e fim em si mesmos, sem meios que nos levassem a uma escalada de aprendizado e amadurecimento, mas sendo tudo muito visceral e definitivo. Inclassificável, esmagador. Esta é a profundidade do negro absoluto de Black Hole (Buraco Negro, em tradução literal). O momento único e fundamental na vida de uma pessoa, durante sua adolescência, onde a hipérbole é a máxima que dita suas emoções e ações.
É estonteantemente charmoso o modo como seu autor, Charles Burns, nos introduz à sua história, apresentando o cenário comum de um colégio com seus personagens comuns em seus conflitos comuns, onde ficamos conhecendo os 2 protagonistas da história; Chris e Keith, dois personagens com personalidades e conflitos distintos que iremos acompanhar alternadamente no decorrer do enredo – para logo depois nos arrebatar através de uma espiral de desorientações e incertezas do que é real e tangível, daquilo que é apenas alucinações LSD, intangível. É uma experiência de desorientação e confusão psicológica similar às provocadas por filmes de Satoshi Kon e David Lynch, ou de algo transcendental como 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Começa com a gente acompanhando a paixão platônica e idealizada de Chris por Keith, uma garota de outro circulo social – quando ele finalmente tem uma chance de fazer um trabalho de grupo ao seu lado na dissecação a uma rã numa aula de biologia, ele sente seu mundo girar e uma ânsia de vômito crescente subindo por suas entranhas, quando finalmente toda a realidade é tragada pela fenda obscura aberta na rã, e no capítulo seguinte, Chris e Keith são lançados em pontos opostos da narrativa e todo ambiente se mostra diferente, como se passando a mil anos em um futuro pós-apocaliptico devastado por uma praga. É um pesadelo fantasticamente alucinógeno em perspectiva Simbolista, em oposição ao Realismo banal do capítulo anterior.
E nisto tudo, o leitor fica à margem, buscando compreender tantas incertezas, tornando esta experiência de compreensão e busca de significado uma experiência enriquecedora – com o passar da história, tudo vai se tornando mais lúcido e as extremidades entre real e ilusório se tornam mais delineadas e menos insolúveis, no entanto, o tom enigmático e as provocações permanecem conosco até a última página. O que vem depois são certezas belíssimas.
Com isso eu quero dizer que Black Hole pede para ser desbravado e, portanto, recomendo que se entre em contato conhecendo o mínimo possível, assim como eu – até mesmo sinopses e resumos são dispensáveis, por serem formadores de opinião. Não é que haja um grande mistério a ser resolvido. Não tem. É tudo uma questão de atmosfera e de pulsações. Embora seu autor sugira isto a principio, notamos adiante que é apenas um estratagema narrativo que ele valoriza pouco em sua elucidação, utilizado como indução ao erro, ele é o responsável por arremessar a história em seu arco dramático final, montando um panorama crucial para o quadro geral do enredo.
Dito isto, é o motivo pelo qual gosto e postei acima a sinopse do primeiro volume do quadrinho lançado pela Conrad. É vaga e com um aspecto de abstração, na medida certa para despertar a curiosidade e ainda manter integro o que se percebe ao ler a obra. Abaixo, comentarei sobre o enredo e seus personagens, seguir adiante ou não, a decisão é sua.
Fica claro que, o enredo montado por Charles Burns para Black Hole é uma imensa alegoria da juventude, sendo a terrível doença infecciosa que se alastra pelos jovens através do contato a metáfora não apenas para a AIDS e as DST, mas os conflitos diversos que abarcam da adolescência ao inicio da vida adulta. É interessante como seu autor utiliza as tropes clássicas do gênero de terror que tanto fascinam – principalmente – os adolescentes, explorando isso por um prisma realista. Ao invés de monstros ou fantasmas, e assassinos quase sobrenaturais, temos o medo explorado em sua essência: o temor e a repulsa por aquilo que é diferente, as inseguranças em relação a vida adulta e as indefinições que surgem disto, a natureza perturbadora do sexo, do fascínio pelo sexo oposto, do ostracismo, da falta de compreensão de si próprio e do mundo que o cerca – tudo isso emerge através da fantasia, revelando um subtexto que reflete inquietações e conflitos comuns.
Obcecado por mutações, Charles Burns vê isto com o sintoma final da adolescência. A estranha doença manifesta-se de diferentes maneiras em cada personagem, causando deformidades grotescas que revelam algo profundamente pessoal no seu interior. Para quem leu – ou assistiu – Parasyte, a associação é imediata, como na boca senciente que surge no pescoço de um dos personagens e começa a dar voz aos seus anseios interiores, que ele tanto tenta suprimir. É natural, pois ambas as obras compartilham da mesma influência. Nascido no inicio dos anos 60, foi um período extremamente fértil para a vertente dos monstros e suas mutações, especialmente maximizada pelo terror da ameaça nuclear, que também utilizava isto como uma plataforma alegórica. Como o próprio autor comenta, essa influência é internalizada. O sintoma dessa epidemia nos adolescentes é muito próprio de cada personagem, e por isso a epidemia afetar as pessoas de diferentes maneiras, que por sua vez, reagem de diferentes maneiras. Então, quando você vê Chris – uma das personagens protagonistas – literalmente escorregando para fora de sua pele como uma cobra, instintivamente percebe é um sintoma daquela idade, em relação à necessidade de se reinventar a si próprio – como um signo de tentativa de escape de uma vida e imagem que não lhe agrada, de se transformar em algo diferente.
É interessante que a obra se passe nos anos 70, logo após a queda do idealismo da contracultura dos anos 60, absorvendo com astucia o terreno fértil deixado por aquele período. Restou a cicatriz da cultura hippie, a psicodelia, drogas, músicas, e toda aquela idéia de liberdade sexual, que ganham contornos sólidos. Porém, talhados daquela ingenuidade ideológica de outrora. O ativismo social dos 60 vai dando lugar ao culto ao próprio ser nos anos 70, com pensamentos mais autocentrados e pessoais – classificada pela mídia como “Me Generation”. E apesar de período de transformações e diversões sem fim, a década de 70 é pródiga em melancolia. Black Hole compreende essa atmosfera muito bem, com essa nuvem nos olhos dos personagens em relação aos seus futuros.
Chris Rhodes é uma garota comum naquele meio, porém inteligente e bem ajuizada, ostenta boas notas e tem a confiança dos pais; mas isso não a torna isolada, pois ela interage bem com seu circulo social. Simpática a todos, mesmo que no fundo demonstre indiferença, ela chama a atenção justamente por ser uma garota com tantas qualidades, no entanto, sem afetações. Ainda assim, mesmo uma garota bem nascida e inteligente, como ela, não pode fugir de ser oprimida por uma premonição obscura; “Eu senti como se estivesse olhando para o futuro e o futuro parecia muito confuso”.
Já Keith, é o garoto comum que não é o melhor da sala, mas faz o suficiente para obter as notas necessárias. Está sempre curtindo com os amigos, geralmente em atividades ilícitas. Seus pais são de classe média e ele vive em um circulo social diferente do de Chris. O que não o impede de admirá-la a distancia, idealizando nela a garota de seus sonhos. Quando finalmente tem a chance de estar perto dela, Keith desmaia no chão tomado por um redemoinho de imagens fragmentadas após ser envolto em uma vórtice através da fenda da rã em forma de vagina, o que dá o tom de perigo sexual intenso que paira sobre a narrativa. É o momento que Keith sempre esperou e ele se sente extremamente nervoso com os feromônios que exalavam da colega ao lado.
Black Hole é repleto de pequenos e grandes momentos assim, de simbologia metafórica. Há um momento em que Keith tem a chance de agir como um príncipe para Chris, e mesmo que as coisas aconteçam como num roteiro de contos de fadas, as ações dela não são exatamente como ele esperava, afinal, a garota que idealizara só existe na sua cabeça. Há um grande momento em que ela se entrega totalmente à depressão e ambos são separados por uma parede. De um lado, o jovem romântico com seus sentimentos puros repletos de boas intenções, do outro, uma garota que percebe tudo isso, mas não se importa, completamente entregue à autodestruição, seu corpo em pele e ossos repletos de pêlos jaz em abandono numa banheira.
É o mais belo e perturbador retratado da conturbada transição para a vida adulta que eu já vi em um quadrinho. Esta visão da adolescência é reforçada pelas respectivas mutações de Chris e Keith, que soam como transformações de girinos – embora eles se sintam confortáveis em seus ambientes naturais (a floresta e o oceano), eles precisam se transformar e atingir a forma final, como larvas em sua metamorfose em esplêndidas borboletas.
As tramas de Chris e Keith seguem em paralelo e se entrelaçam em determinado momento, mas tomam rumos distintos, com a narrativa alternando entre um e outro. Cada um deles enfrenta estes conflitos de uma forma diferente. Chris, que é a personagem mais intensa e que mais tem a dizer, se assusta com o quadro que se forma diante de si e recua, revertendo a um estado mais infantil – ela expressa a Dave, um dos contaminados, o desejo de desfazer todas as decisões que havia feito e voltar para sua vida chata. Com Rob, seu namorado, ela sublima seus sentimentos de abandono e ostracismo em seu relacionamento, passando a depender de Keith e Dave para cuidarem dela, enquanto fantasia freqüentemente sobre a vida sob a proteção dos seus pais e converge cada vez mais a um estado de abandono de si mesma. Assim, mesmo que ao fim, possa se compreender uma força que a impele a continuar e superar os obstáculos que vê diante de si, a cena final em que a vemos flutuando no líquido amniótica do oceano, reflete sua vontade de retornar à proteção do ventre, ou de não sair daquele casulo confortável; “Eu ficaria aqui para sempre se eu pudesse”.
Keith, por outro lado, se vê ansioso para ultrapassar esta fase de sua vida. Freqüentemente ele irrita seus amigos com sua inquietude, nunca satisfeito com o lugar onde está; “Nada muda... tudo vai ser sempre assim”. Quando a realidade se torna muito dura de se encarar, ele foge para as drogas, a floresta – signo da estagnação –, pendendo nos limites da realidade. Ele segue uma jornada inconstante até se encontrar, através de Eliza.
Um dos aspectos mais sublimes de Black Hole e, que no entanto, passa quase despercebido, é a natureza cíclica de sua narrativa. A repetição é uma ação sempre presente, seja através dos diálogos; signos visuais; fragmentações; ou de cenários similares. Há uma cena irônica em que Keith desvia do convite de seus pais de passar o fim de noite assistindo um filme repetido na tv, só para se entorpecer no ácido e acabar assistindo ao mesmo filme numa sala da casa dos amigos, no lugar da prometida diversão. Mas, a mais forte dramaticamente, é a agressão sexual sobre Eliza, seu affair, que se torna um eco implícito de estupro – nunca diretamente descrito – que ela sofreu durante a infância nas mãos de seu padrasto; algo que continuará a assombrá-la por toda a vida. Mesmo a fuga com Keith, é um passeio de lugares que ela já foi, tentando recapturar a felicidade.
O desfecho de Black Hole é de um fôlego extraordinário, que indica o importante fator da transitoriedade e da natureza cíclica da vida. Principalmente nesse período da idade, se costuma pensar em hipérbole, que tudo é absoluto e sem fim, mas as adversidades nos tornam mais fortes e resistentes, os conflitos são transitórios e cíclicos, e da próxima vez, o modo como o encarará será diferente. Note como no quote do cover do primeiro volume, a citação do que se entende ser Keith, soa extremamente pessimista; “Os sintomas não importam... Uma vez que você estava marcado, você estaria com isso para sempre”. No entanto, no cover do segundo volume, o tom é mais otimista; “Eu nunca sonhei que eu sairia desse buraco de merda... mas um dia eu percebi que as coisas no meu rosto estavam começando a cicatrizar e um par de meses mais tarde, eu estava totalmente limpo...”. O que acontece é que o horror da doença adolescente é finita. Ela vem misteriosamente, toma nossas vidas de arroubo, para então cicatrizar. Cicatrizar é uma boa definição para tudo que se viveu. Você não pode apagar suas experiências com uma borracha. Durante sua existência, por mais que você troque de pele e se metamorfose em uma pessoa diferente, há qualquer coisa de comum que permanece no fundo de cada uma dessas vidas, desses eus, uma misteriosa unidade ligando umas às outras, até chegar à face atual. “Mais importante que nascer, é ressuscitar”, diz a protagonista do livro Ciranda de Pedra, no qual, sua colocação não poderia ser mais exata. Na relação humana, nada começa pelo zero, pelo contrário, tudo recomeça – a adolescência não é o fim, é apenas um meio, uma fase cíclica. Você viverá emoções similares, pois tudo se repete, mas nada será como na primeira vez.
É o retrato mais exato da vida emocional dos adolescentes que eu já vi. Pegue um Black Rock Shooter como exemplo de duas obras que retratam o mesmo período, que evidente se contrapõe em abordagem, mas que refletem igualmente uma verdade genuína na vida adolescente: a sensação de que os muros são instransponíveis, insuperáveis, e mesmo todo o melodrama envolto na narrativa de Black Rock Shooter, explicita com veracidade a tormenta interior nestes mundinhos onde tudo é a última gota, o fim, um horror lovecraftiano.
Em Black Hole, a força está em capturar nossos sentidos e arremessar em antigas sensações que podem ter sido superadas, mas nunca desaparecerão por completo. São vários os momentos em que parece estarmos a testemunhar a transformação tremenda de monstros, ou em que corpos humanos revelam formas de pesadelo, de desvio teratológico… todas as personagens, num ou outro momento, atravessam esse desvio. Um leitor incauto poderá pensar estar perante uma obra que explora episódios maravilhosos, e que esta é uma obra do fantástico ou do horror (como, por exemplo, a Black Paradox de Junji Ito). Mas rapidamente nos apercebemos que as transformações são apenas projeções fantasmáticas das personagens, ora sobre si mesmas ora sobre os outros, por vezes como fundamento do medo, outras como forma de expressar um desejo avesso – como a finitude da epidemia que ali se alastra. Uma série como Black Hole explora a monstruosidade que aflige os jovens de uma forma quase direta e desapaixonada, nada melodramática, preferindo antes focar nas conseqüências que isso tem na vida pessoal dos dois protagonistas, Chris e Keith. Como colocou seu autor, “Sinceramente eu me sentia como uma criatura alienígena naquele momento”.
Material riquíssimo para aqueles que buscam desvendar as minúcias da semiótia, mas que também exala um charme especial para qualquer leitor casual, por ser algo que fala da alma humana e com uma arte com um negro tão penetrante, que parece estar a nos fitar de volta.
Nota: 10/10
Autor: Charles Burns
Volumes: 2 (encadernados)
Publicação: 1995-2005
Lançamento Nacional: Editora Conrad
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