quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Uchouten Kazoku (2013) - Conceito de Nova Família

Em ‘A Família Excêntrica’, o conceito família não se restringe a laços sanguíneos, vai além. E por isso não é ‘Uma Família Excêntrica’, mas ‘A...’. 
Alguém disse uma vez que toda família era um pouco disfuncional. Essa é a magica de Uchouten Kazoku. Na história, temos uma excêntrica família de tanukis (cães-guaxinim) que poderia ser a família de qualquer um aqui.

A sociedade de Uchouten Kazoku é divido em três classes. Os temidos e poderosos tengus, no alto da pirâmide; os seres humanos, que vivem alheios à existência de mitos folclóricos coexistindo ao lado deles; e na rabeira da pirâmide, os tanukis, inferiores socialmente aos tengus e aos seres humanos. E com motivos bons o suficiente para temer ambos. Não por acaso, a história se passa na tradicional Kyoto, uma cidade milenar e culturalmente mística, numa miscigenação folclórica incrível. A direção de arte da série faz questão de contrastar este conflito entre novo e velho, entre diversas raças e culturas, em vários planos da cidade de Kyoto num trabalho charmosíssimo de aplicações de filtros nas fotografias.
    
Uchouten Kazoku (A Família Excêntrica) é uma adaptação do primeiro volume de uma trilogia ainda inacabada ainda em andamento escrita por Tomihiko Morimi, mais conhecido pelo seu The Tatami Galaxy (2004) que ganhou uma elogiada adaptação com direção do excêntrico Masaaki Yuasa em 2010. É uma história universal que discorre sobre valores familiares e círculos sociais numa sociedade tradicional. A partir disso, percebemos que Kyoto servir como pano de fundo vai muito além do folclórico que a cidade abriga, mas diz muito também sobre seu rico e raro resquício cultural que remonta de tradições de dez mil anos a.C – é a única cidade japonesa em que suas arquiteturas tradicionais de séculos anteriores se manteve após a guerra (a cidade foi poupada pelos EUA).

É neste choque cultural de tradições entre o velho e o novo que Tomihiko Morimi estabelece a história da família Shimgamo. Uma família de tanukis que possuem a capacidade de se transformarem qualquer pessoa, animal ou objeto que desejarem. O terceiro filho, Yasaburo (Takahiro Sakurai), desfruta de uma vida agitada e desregrada, além de estar sempre visitando Akadama-sensei (Hideyuki Umezu), um tengu que matinha uma relação de respeito com o chefe da família Shimgamo, a despeito de tengus nunca serem vistos com bons olhos pelos tanukis. Por causa de sua relação com Akadama-sensei, Yasaburo acabou conhecendo e se apaixonando pela misteriosa e sedutora Benten (Mamiko Noto), que fora raptada ainda jovem por um tengu que lhe ensinou como transcender a humanidade. A história se desenvolve em meio a conflitos envolvendo a família Shimgamo, que precisa lidar com o passado misterioso que envolve a morte do matriarca da família e com a sua ausência que deixou a todos eles em situação vulnerável dentro daquela sociedade.

Yaichirou (Junichi Suwabe) é o irmão mais velho que viva às sombras do pai e tenta seguir seus passos e se tornar o novo líder da sociedade dos tanukis, papel desempenhado por seu pai anteriormente. Yajirou (Hiroyuki Yoshino) é o segundo filho, que se transformou em sapo e agora vive num poço devido a uma desilusão. Yasaburo é o terceiro filho que quer apenas se divertir por ai, sem apego a responsabilidades, e por isso, entrando frequentemente em choque com Yaichirou. Yashirou (Mai Nakahara) é o caçulinha ainda pequeno demais para se envolver em todas essas questões. Completando a família, a matriarca que é apenas conhecida simbolicamente como “mãe” (Kikuko Inoue), sempre amparando seus filhos e tentando os encaminhar da melhor maneira possível. Ela é o laço que une essa família que além de complexa, é muito excêntrica. 
Os Shimgomo vivem em pé de guerra com a família do irmão de seu pai, Sou Ebisugawa (Nobuo Tobita), que também disputa o lugar de líder naquela sociedade. Pra completar, a tão caprichosa quanto charmosa Benten faz parte do Clube de Sexta-Feira, que tem como tradição comer tanukis todo o fim de ano – foram eles que comeram o matriarca da família Shimgomo e o final de um outro ano está chegando deixando os tanukis novamente aflitos.

Uma descrição longa, embora demasiadamente simplória, mas necessária para quem não conhece a série ter a possibilidade de entender do porque digo que se trata de uma história universal e do porque ser uma alegoria para a família e sociedade japonesa atual. Essa sociedade ser retratada com tanta miscigenação é o que torna todo este conflito ainda mais rico e fascinante. No Japão, a mitologia de criaturas folclóricas se mistura com a própria história do país e seus habitantes. São como nossos contos de fadas: reflexos de um período, de uma sociedade. Por isso, são personagens tão recorrentes em suas histórias. Desse modo, se tornam a representação das próprias pessoas que a criaram. 
Os tengus são envoltos em histórias de raptos, são vistos como criaturas arrogantes, vaidosas e orgulhosas. São eles que dominam o céu enquanto tanukis andam pela terra. Suas asas representam seu orgulho. O do porque serem superiores. Já tanukis são tolos, gostam de beber, se divertir, são mulherengos (inclusive, no Japão, são constantemente representados como bem dotados com sacos enormes simbolizando fertilidade). São reconhecidamente travessos e alegres, adoram se transformar em coisas e aplicar sustos, mas ao contrário de criaturas maliciosas como Kitsune (raposa) ou mesmo o Mujina (texugo), suas peças são ingênuas. São reconhecidamente criaturas dóceis e se assustam fácil, não obtendo muito sucesso em suas transformações, ao contrário da Kitsune. Tanukis são um elo frágil nessa complexa cadeia folclórica, ao contrário dos cheios de artimanha, poderosos e temidos Tengus.

Já humanos... Humanos são complexos, como podemos notar na personagem de Benten, que possui nome e personalidade de deusa, mas a fraqueza de uma humana, que embora educada e ensinada com a arte dos tengus, continua sendo humana.

Ser Humano. Tai ai uma palavra e conceito relativo dentro dessa série, pois todos são muito humanos. Todos eles carregam complexos que dizem muito sobre nós mesmos. Em certo ponto da série, a matriarca da família Shingamo questiona do porque seu cunhado ter sido capaz de atos tão bárbaros contra eles, se ambos são tanukis. Ela diz: nunca pensei que um tanuki poderia ser capaz de uma atitude assim com o seu semelhante. Isto é algo que somente um tengu faria – ela diz.  

Isso se aplica bem ao que chamamos de desumanidade. A nossa descrença por semelhantes capazes de atos repulsivos não apenas contra alguém de sua própria espécie, como também da própria família. Não difere em nada do questionamento e negativa da mãe Shingamo, afinal, seu cunhado faz parte de sua família, foi irmão de seu esposo e a filha dele esteve prometida ao seu filho Yasaburo.

Uchouten Kazoku representa o choque entre o velho e o novo. A velha geração e a atual. Fala sobre a dificuldade dessa nova geração em carregar o fardo deixado pela anterior à dificuldade de diálogo na conflitante relação entre os mais novos e mais velhos. É um interessante retrato do momento atual da sociedade japonesa. 
Yasaburo foge das responsabilidades e adora se transformar em garotas de idade colegial, fazendo falar mais alto o seu sangue de tolo. Yaichirou carrega o fardo deixado por seu pai ao se tornar responsável pela família e ao seguir seus passos. Yashirou atormentado pela desilusão e pelo sentimento de culpa gerado por ela, se esconde no fundo de um poço na forma de um sapo, se esquecendo depois de como voltar a ser um tanuki, embora também não tenha a mínima vontade de retornar à sociedade, preferindo o seu refugio à tudo o que o atormenta. É tido como a vergonha dos Shimgamo, ao lado do despreocupado Yasaburo. A mãe é a sustentação emocional dessa família disfuncional. Uma família que após perder o seu chefe, também perde o prestigio que tinha, passa a ter dificuldades de se manter unida, se torna frágil dentro daquela sociedade.
 
Embora eu mantenha que é uma história universal capaz de dialogar com qualquer um, Uchouten Kazoku é um drama intrinsecamente japonês com uma miríade de minucias japonesas pouco perceptíveis a nós, mas significativas para eles. Fala da realidade da sociedade japonesa. Uma sociedade que tem no seu patriarca a base de sustentação da família tradicional. Então é natural o que vemos acontecer com os Shimgamo. Não é por acaso que a mãe é conhecida somente como “mãe”, sem direito a um nome (é curioso que, os único momentos em que ela pode se divertir e desvencilhar-se das tarefas domesticas e da “função” de ser mãe, é quando se transforma numa “garota príncipe” e pode enfim praticar atividades caracteristicamente masculinas, como jogar sinuca), ao contrário do patriarca, Souichirou Shimogamo (Bon Ishihara). Todos ali representam um fragmento de uma família tradicional, que ainda mantém costumes como tratados de casamentos entre duas famílias rivais como uma forma de apaziguamento; uma antiga família em uma nova sociedade.

Em uma das sequências mais sensíveis e memoráveis da série, os irmãos estão chorando por mais um conflito que vivenciaram no seio familiar, e então a mãe abraça todos eles e diz não se importar como a sociedade os veem, eles sempre serão grandes aos seus olhos. Um momento puro e sentimental que me arrancou um filete de lágrimas de olhos já completamente molhados. 
 
Um momento impar, mostrando que por mais que os membros de um núcleo familiar sejam divergentes, o que os torna família é a capacidade de se amarem independente do que sejam.

Nesse sentido, o conceito de família se estende até mesmo a outros personagens que não fazem parte do núcleo familiar, mas se comportam como família dentro daquele círculo social, como o orgulhoso Akadama-sensei. Como a relação que mantém com Benten – por mais que no fundo, ele a veja pela perspectiva sexual. Desse modo, também podemos dizer que família vai muito além de laços sanguíneos, pois o patriarca da família rival ao Shimgamos ainda que seja família, se comporta como seu pior predador.

A magia de Uchouten Kazoku não é apenas ser um show sobre conflitos familiares e sociedade, mas ser acima de tudo um show sobre inter-relações. O entrelaçamento entre diferentes núcleos de uma sociedade.
  
Benten não tem pudor em dizer que comeria Yaburo em um delicioso ensopado e acredite, ela realmente comeria se desejasse. Yasaburo a vê com olhos fascinados e apaixonados, como se ela fosse uma lua inalcançável – e de fato ela é uma personagem que se coloca como uma lua e tão bela e hipnotizante quanto misteriosa com relação à sua face oculta mantida na escuridão. Assim como a lua, boa parte dos personagens masculinos a admiram e se apaixonam, mas ela sempre se mantém inalcançável. Se tornando uma fantasia na cabeça dos homens. Mas mesmo Benten tem os seus complexos e suas fraquezas emocionais que faz questão manter omitidas, como se seu orgulho dependesse disto. Benten tem carinho por Yasaburo e num desses momentos de fraqueza, não pode deixar de lamentar que um dia virá a comê-lo.

Convidado a ir num dos encontros do Clube de Sexta-Feira, Yasaburo em determinado momento questiona do porque comerem tanukis como um ritual todo final de ano. Acontece que carnes de tanukis não são particularmente atraentes e os membros do clube não demonstram muita paixão por essa especiaria. Então Yasaburo pergunta do porque continuarem a comer, e eles respondem que se trata de uma tradição. Se questionados do porque dessa tradição, a resposta é vaga: tradições devem ser mantidas. 
A relação de Yasaburo com Benten e os seres humanos é complexa a tal ponto, mas ele não os odeia, nem eles o odeiam. É uma cadeia alimentar natural. Mas tanukis possuem sentimentos como qualquer ser humano, porém se conformam com o destino de que um dia se tornarão um prato na mesa de alguém por ser algo já pré-estabelecido culturalmente, ainda que sua carne não seja tão apreciável e consumida esporadicamente por mero capricho. 
Da culinária às questões político-sociais – como quando Yaichirou é questionado do porque se importar tanto com status mesmo com isso lhe causando tantas dores de cabeça – há sempre um questionamento a padrões pré-estabelecidos num determinado momento que não fazem mais sentido sua manutenção a não ser por valores antigos que quase nunca deixam os personagens felizes, mas que estes insistem em manter.
  
Com todas essas camadas e uma direção sensível que soube transitar com segurança entre o drama e o humor, assistir Uchouten Kazoku todas as semanas se tornou uma relação de amor que colocava um sorriso em meus lábios ainda que – às vezes – em meio a filetes lacrimais. Os diálogos entre os personagens fluem com tanta naturalidade que é possível sentir as palavras, conflitos e questionamentos como algo verdadeiramente humano, ainda que revestidos com muita fantasia. Uma fantasia não se torna menos verossímil por seus elementos mágicos. Ela é mais verdadeira quando seus personagens se tornam de alguma maneira tangíveis, pelo que são ou pelo que fazem.

Uchouten Kazoku veio e mostrou uma história orgânica e concisa em que todo o elenco de personagens é participativo e fundamental para o desenvolvimento do enredo, com uma trama de inicio, meio e definição. No entanto ainda se trata de uma obra aberta com vários elementos que ainda não foram explorados, assim como personagens intrigantes como Benten e Akadama-sensei que têm muito a mostrar ainda. Como disse, se trata de uma trilogia em que apenas 1 livro foi adaptado. Meu coração fica choroso com o quão indefinido é a possibilidade de uma sequência, mas também se alegra em ver uma trama tão bem explorada sendo finalizada com louvor, na medita exata do que sempre foi a série: uma história leve e empaticamente divertida. Acredito que ninguém questione que este foi o grande momento do P.A. Works como estúdio em uma animação que fugiu do seu padrão usual de produção, tanto em questões de enredo como de cenário. Um anime excêntrico de enredo excêntrico; só poderia ser este o resultado de um encontro entre dois excêntricos como Kouji Kumeta (nos desenhos de personagens) e Tomihiko Morimi. E já estou com saudades desses queridos excêntricos e de suas excentricidades. 
Trivia

Quer mais histórias com tanukis? Pom Poko (1994) é uma produção igualmente emocional do estúdio Ghibli dirigido pelas magicas mãos de Isao Takahata. É a história de como os tanukis foram ameaçados pela expansão da civilização nas proximidades de Tokyo.
***

Nota: 09/10
Direção: Masayuki Yoshihara
Composição de Roteiro: Shotaro Suga
Estúdio: P.A. Works
Tipo: TV
Episódios: 13
ANN: http://goo.gl/Sm7AQf
MAL: http://goo.gl/BS1oI2

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