“São criaturas que
vivem longe. Primitivas e peculiares. São coisas totalmente diferentes de
qualquer animal ou planta que conheçamos. Com o passar do tempo, e com o medo,
o homem acabou por lhes chamar de Mushi”
Penso que o que há de mais fantástico na ficção é a sua
capacidade de dar asas à imaginação, transformando o que é vago e embaçado em
uma forma detalhada e vívida. Há muito tempo, quando o entretenimento de massa
não era tão difundido ou simplesmente não existia e a literatura escassa, os contos
folclóricos se tornaram a melhor forma de se entreter e também prevenir. Quem
espalhava essas histórias eram pessoas bem vividas e que conheciam muitos
lugares e experiências durante suas andanças. Pessoas como Ginko (Yuto Nakano), o protagonista de Mushi-Shi.
As pessoas, principalmente seus poucos amigos que formou em diferentes lugares
pelo qual esteve, adoram ouvir suas histórias exóticas. E essas histórias,
claro, possuem seu fundo de verdade, mas sua essência sobrenatural se origina
na nossa incompreensão a tudo o que foge do nosso controle.
“Se nós já passamos por crises existenciais frente à nossa
insignificância em meio à imensidão do universo, imaginem o que uma ameba não
sentiria?” – O que Carl Sagan não levou em consideração neste
comentário é que amebas não raciocinam e consequentemente não temem aquilo que
não lhes é tangível. Quem nunca se flagrou flertando com o céu negro, silencioso,
profundo e colorido com as esplendorosas luzes piscantes das estrelas mortas? O
sentimento é de pequenez perante um vasto e infinito universo em seu absoluto esplendor
e mistério. Ao estender-lhe um olhar contemplativo, sentimos um misto de
maravilha e medo por se perceber não ser mais que um grão de areia insignificante
num universo tão complexo e grandioso.
Contudo, nem é preciso olhar tão longe, a própria natureza
que nos rodeia e suas partículas microscópicas de vida que nos afetam apesar de
seguirem indiferentes à nossa existência, formam uma cadeia de vida invisível a
olhos nus. O universo é fantástico, se partimos da perspectiva cósmica, não passamos
de criaturas espirituais num cosmo indiferente à nossa existência; partindo da
nossa perspectiva, insignificantes são os repteis; e se olharmos um pouco mais
além, os insetos; e então os protozoários; até chegar ao último estágio reconhecível
que são as bactérias. Se formos mais além, chegaremos num nível onde formas de
vida estão num estado praticamente abstrato, mais espirituais do que físicas. Sendo
frequentemente incompreensíveis para nós, não é difícil imaginar em como tais
formas de vida – visíveis para poucos privilegiados – poderiam nos afetar sem
ao menos nos darmos conta do que se trata.
Estes são os mushis (literalmente,
insetos), seres bucólicos em contato com a essência da vida em sua forma
mais pura. Há desde aqueles que consomem som e se alimentam de sentimentos
àqueles que procuram o interior do corpo humano para se manterem aquecidos. Sob
a superfície da terra seguindo seu curso ou suspensos no ar. Das aguas paradas
de pântanos abandonados à retina, atrapalhando o olhar. Mushis podem trazer
bênçãos consigo, mas também causar muitas desgraças. Não fazem por mal, apenas
seguem seu curso natural e buscam sobreviver. De seu ponto de vista, somos nós
os insignificantes. Para tratar dos males causados por mushis, existem os
mushi-shis (literalmente, mestre dos
insetos). Como essas pessoas são intrinsecamente ligadas aos mushis, sendo
que para se tornarem mushi-shis é preciso primeiro ser gravemente afetado por
um ou vários, elas involuntariamente atraem muitas dessas criaturinhas, o que
lhes impedem de permanecer por muito tempo no mesmo local, salve algumas
exceções. Mushi-shis são aqueles que estudam os mushis e sua forma de vida,
descobrindo maneiras de reestruturar o equilíbrio na esfera humana afetada por eles.
Ginko é um mushi-shi que tem a delicadeza e sabedoria em
entender essa essência que impregna a vida: “Eles fazem o que precisam fazer
para sobreviver, e se possível, não devem ser punidos por simplesmente viver”.
Mushi-shi explora essa natureza cíclica e complexa dos seres viventes, Ginko nem sempre
consegue resolver os problemas das pessoas afetadas pelos mushis, outras vezes
a única coisa que ele pode fazer é apontar a direção para que a pessoa possa se
adaptar a sua nova condição. A sensação de perda é eminente ao assistir
Mushi-Shi e entrar em contato com sua atmosfera permeada por uma suave melancolia,
justificada pela efêmera condição humana e elevada pela graciosa trilha sonora. Mushi-Shi tem uma tonalidade soturna quase tangível. Delicada, nunca chega a ser de fato assustadora.
Há seres humanos que gastam seu tempo lutando contra o fluxo
da vida; o episódio mais evocativo a respeito é um que se passa em uma ilha em
que seus nativos vivem um eterno ciclo de reencarnações, se aproveitado de um estranho
fenômeno que acontece periodicamente em determinadas noites. Para eles se trata
de um milagre sobrenatural, mas para Ginko que aportou ali a fim de investigar
essa estranha ocorrência, é apenas um efeito causado por um moshi. Para esses
nativos, a presença do mushi têm sido benéfica, afinal, nenhum deles quer dizer
adeus a um ente querido, então antes que estes morram, eles o oferecem ao mushi,
que em determinada data devolve essa vida em forma embrionária. Assim, eles vão
vivendo um inusitado paradoxo: sua vó pode se tornar sua filha e você filho do
seu filho. Há seres humanos obsessivos com aquilo que não conseguem
compreender; como no episódio em que um aldeão fica fissurado pelo intenso
brilho de um arco-íris, que na verdade era um mushi, e desde então, passou a
persegui-lo por toda a vida sem conseguir tocá-lo.
Histórias como as de Mushishi, Natsume Yuujinchou, Vampire
Princess Miyu, XXXHOLiC, Jigoku Shoujo, utilizam do folclore para tecer
parábolas que são essencialmente contos da natureza humana. Mushi-Shi retrata a
natureza humana por meio de ações e reações dos seres humanos para com
situações que envolvem os mushis. Vejo as ações causadas pelos mushis como uma
metáfora que traz reflexões involuntárias a cada término de episódio. Um dos meus
episódios preferidos tem o Ginko em mais uma de suas andanças, sendo pego por
uma nevasca e precisando passar a noite numa cabana habitada por uma jovem
mulher e seu pequeno irmão. Obviamente, ele acaba se envolvendo em mais um
misterioso caso, em que o irmão da mulher caiu num longo sono provocado por
algum mushi desconhecido. Depois de passar várias temporadas na cabana, ele
resolve o mistério e diz para o garoto que pode até voltar a visita-los
novamente, mas não o fará durante o inverno. O menino pergunta o motivo, no
qual ele responde que “as pessoas também são fracas durante o
inverno”. Os mushis procuravam um recipiente quente no inverno, e as
pessoas não são tão diferentes. “Primaveras fantasmas desabrocham em
montanhas gélidas. Casas iluminadas através de caminhos cheios de neve. Tal é a
tentação para estadias longas. Seja para animais, insetos e pessoas”.
Ginko vai embora sem se despedir da mulher, seu potencial interesse romântico,
e ainda que talvez ele não a correspondesse plenamente, evitar a despedida
demonstra o afeto e os laços que gradativamente estavam o vinculando àquele
local. A história termina bem, mas o tom ainda é melancólico. Como comentei, a
efemeridade da natureza humana é o que provoca esse sentimento, e como é
difícil lidar com rupturas, perdas e se adaptar a novas perspectivas. Para
Ginko, partir é necessário por ser um andarilho impossibilitado de permanecer
num mesmo local por muito tempo, mas também por presar a sua liberdade. Ficar
num local por muito tempo lhe garante estabilidade, segurança e laços afetivos,
mas lhe restringiria a imensa liberdade e conhecimento que possui. Faz parte do
ser humano conviver com a dualidade frente a uma eminente perda.
Mushishi é uma adaptação do mangá homônimo de Hiroshi
Nagahama, já encerrado em 9 volumes. O anime, dirigido com pulsos firmess por Hiroshi
Nagahama (Aku no Hana), cobre cerca
de metade do mangá e desenvolve histórias originais. São sempre contos
episódicos, sem uma relação direta entre eles, a não ser pela participação de
Ginko. Apesar disso, a narrativa tem uma excelente progressão, e mesmo em
episódios que claramente se passam em tempos passados, sente-se um ótimo senso
de continuidade na storytelling. Mesmo sem uma relação direta, todos se
conectam entre si criando uma linearidade curiosa. Digo isto porque a narrativa
não se preocupa em definir tempo. O tempo em que a história acontece é bastante
vago, mas sabe-se que é em algum momento no Japão feudal do século XIX, nas
áreas rurais, entre as eras Edo e Meiji. Era uma época que os países se
desenvolviam tecnologicamente, mas o Japão permanecia fechado para o mundo e
sua influência.
Mushi-Shi é uma obra com muitos detalhes na construção
gráfica do seu cenário e design dos personagens. Homens e mulheres usam roupas
tradicionais, yukatas, uma veste mais simples em relação aos kimonos, que são
caros e por um longo tempo esteve relacionado à nobreza. Até o fim da Segunda
Guerra Mundial, ainda era muito comum moradoras da zona rural usando yukatas. Você
nunca vê algum personagem trajando kimono, são todos muito humildes e pobres. É
curioso ver os homens embaixo do sol com aquelas “saias” enormes, capinando. Dificilmente
se vê um looking diferente do tradicional nos personagens, e uma das raras
exceções é justamente Ginko, que mais se assemelha a um ocidental com suas
vestes despojadas e cabelos brancos.
Ginko, estilisticamente, se sobressai a todos os personagens.
Em meio a todos, ele é uma figura extremamente exótica, mas curiosamente,
embora sua presença nunca passe despercebida, sua aparência em nenhum momento
causa estranheza ou choque. Em contrapartida, todos os personagens de fundo possuem
um design muito simplista e semelhante um ao outro, fora os mais recorrentes
que aparecem em mais de um episódio. Hiroshi Nagahama, que chegou a comentar
que procurou respeitar a essência do original, provavelmente considerou
importante manter os traço simples a estes personagens. O que não diminui a
riqueza de suas caracterizações, sempre fieis ao período. Contrastam com a
densidade estilística do cenário, sempre belamente detalhado e bem iluminado. Não
só as florestas, como também as aldeias, sempre pobres, mas com arquiteturas tão
ricas em detalhes. Assim como os
aspectos e objetos da vida japonesa rural.
Isso traz o estilo de vida rural e a paisagem (incluso os mushis) para o primeiro
plano, transformando seus habitantes em uníssono, caracterizado pela semelhança
na aparência e modo de se vestir. Não acho que seja algo intencionalmente
calculado por parte da autora, mas há um sincronismo simbólico ai, que talvez
não tenha passado despercebido por Hiroshi Nagahama. Nota-se o prazer pelo
contraste e livre imaginação, ao não só trazer Ginko com trajes diferentes dos usuais naquele tempo, como também ao coloca-lo manuseando
tecnologias deveras avançadas para o período, em meio ao anacronismo (como o modo que se comunicam: mensagens
dentro de ovos, com uma mecânica sobrenatural, que caracteriza a cultura local).
Exemplifica como a coexistência pode ser harmoniosa, ainda que com eventuais arestas.
Ginko é um homem que diverge daquele contexto histórico, e a
meu ver, isto só mostra o quão intrínseco é sua relação com os mushis.
Simbolicamente ele não pertence mais à natureza humana nem tão pouco à natureza
espiritual dos mushis. Transitando entre os dois mundos, se destaca de todos os
demais com seu design que possui mais particularidades que o dos outros. O
próprio Ginko é um viajante que não encontrou seu lugar no mundo, e por mais
que ele possua muitas coisas e goste de ser um andarilho, paradoxalmente essa
condição de ser um viajante indica que lhe falta alguma coisa, provavelmente inalcançável,
no qual simbolicamente está a procura.
Com histórias e personagens que parecem se mover sobre emakimonos
(rolo de imagem; forma de narrativa
horizontal) ou xilogravuras, é fácil perceber que a inspiração para Mushi-Shi
tem uma fonte comum a outras obras do gênero: folclore antigo, mitos, lendas. O
xintoísmo, religião nativa do Japão, possibilita que crenças fantásticas saiam
da cabeça das pessoas e ganhe histórias magnificas. Sendo o nosso mundo formado
por segmentos de cosmos, é instigante a relação indistinta que se forma entre
Ciências e sobrenatural na mente das pessoas. Por essa ótica, é natural
percebermos que as únicas barreiras entre os seres humanos e mushis são aquelas
de incompreensão e medo. O segredo de Mushi-Shi é saber explorar essas fendas presentes no nosso imaginário, revelando mais de nós mesmo através da fantasia.
“O mundo está cheio de seres desconhecidos para o homem”.
Nota: 09/10
Direção e composição de roteiro: Hiroshi Teshigahara
Roteiros: Aki Itami, Kinuko Kuwabata, Yuka Yamada
Trilha Sonora: Toshio Masuda
Estúdio: Artland
Tipo: Tv
Episódios: 26