A Cidade do amor, uma fantasia criada para fugir da realidade ou um grande pesadelo? Sejam bem vindos à cidade do amor e do terror.
Yoshioka Leiden: “Mas que inferno está acontecendo aqui?
Alguém pode me explicar?!”.
Ai: “Eu posso, mas... Creio que você não entenderia...”.
Na sequência de abertura de Ai City, há três pessoas dentro
de um carro; o bêbado e detetive particular Yoshioka Leiden (Nachi Nozawa), a garotinha Ai (Yuki Ueda) e seu pai Key (Hirotaka
Suzuoki), perseguidos por uma gangue de motos. Yoshioka não sabe por que
está ali no meio daquela perseguição. Muito menos nós. Você deve estar
imaginando que está okay, que no decorrer do filme iremos entender o motivo...
Na verdade, não. Tire isto da cabeça.
Yoshioka também não faz a mínima ideia de quem são aquelas
pessoas que estão com ele no carro ou o motivo de estarem sendo perseguidos –
para essas perguntas, no entanto, encontramos respostas. Yoshioka não entende o
porquê de um rapaz tão novo quanto Key já ter uma filha da idade da Ai (cerca de 9~12 anos), mas ele também
não entende como os dois podem saber tanto sobre eles. O que Yoshioka não sabia
até então, é que Ai e Key são ESPers (indivíduos
com habilidades/poderes psíquicos/paranormais) e poder “ver” dentro dele,
assim como aqueles que os perseguem, membros de uma organização clandestina chamada
de Fraud (nada sútil, não é mesmo?).
Os ESPers trazem diagramas na testa com o número do alcance de suas habilidades
psíquicas. Key é tido como uma experiência fracassada, só podendo atingir o
nível 5, que prestes a ser destruído, fugiu dos laboratórios da Fraud
juntamente de Ai, uma ESPer com incrível poder, capaz de destruir todo o mundo.
Ai City é, em boa parte, um filme de perseguição e enfrentamentos aos moldes de
The Golden Child (O Rapto do Garoto de
Ouro), seguidos de umas reviravoltas malucas que soam quase desconexas.
Eu disse “quase”. Ao contrário da maioria dos OVAs dos anos
80 que deixam enormes vácuos entre a adaptação e a obra original, onde você só
obtém a total compreensão do OVA se tiver tido contato com a obra de origem, Ai
City ainda mantêm uma coerência interna. Só que a narrativa é tão frenética e
saltando de um ponto a outro, que a compreensão realmente se torna complicada.
Tem uma estrutura similar a do filme Akira, de Katsuhiro Otomo, lançado quase 2
anos depois. Ai City e Akira possuem bastantes semelhanças. Poderes psíquicos,
mutações, temática cyberpunk oitentista, apocalipse, e comentários sociais. Contudo,
menos sério e engajado que o clássico de Otomo. Mas a semelhanças não são por
acaso [nunca o são]. Faz parte do Zeitgeist (espirito da época, sinais do tempo) japonês. O Japão vivia um
momento de transformações e, embora o quadro econômico ainda fosse estável, o
fantasma da bomba atômica assombrava e ressoava. A crise de identidade ainda
era sentida juntamente com a insegurança dos rumos futuros e a insatisfação com
o quadro politico e educacional. Dessa forma, mais uma vez, a ficção-cientifica
como um poderoso veículo que expõe os temores e consequências futuras das ações
do presente, “prevê” a grande crise que o país iria viver nos anos 1990 – entre
aspas porque o que a ficção-cientifica faz é denunciar com uma visão futurística
as consequências futuras do que se vê na sociedade do seu tempo.
Ai City é um dos primeiros trabalhos do diretor Koichi
Mashimo (Madlax, Tsubasa: RESERVoir
CHRoNiCLE, El Cazador de la Bruja, Blade of the Immortal), que tece uma
composição visual magnifica, com uma animação estilizada fazendo explodir na
tela aquele colorido maravilhoso tão típico dos animes oitentistas, repletos de
FX (efeitos animados 2D, como magia,
fumaça, explosão) e motion blue, seguindo aquela vibe da contraculta psicodélica
(dica: Tropical
Citron ― Psychedelic Witch Story) que se fez tão presente dos anos 50
aos 80. Mashimo dirige Ai City como se tivesse a ideia em mente de uma história
que não pode perder o pique e que precisa se manter vibrante. Seguindo essa
lógica, temos belas sequências de perseguição e ação, como também cenas onde
espaço e tempo parecem estar retorcidos, em que espaço etéreo e realidade
pungente se confundem. Numa das minhas sequências preferidas, o tecido da
realidade se rompe, abrindo passagem para um mundo etéreo quase que espiritual;
intangível. Eu fiquei absorta e fascinada com o conceito que, se mostra muito
semelhante ao utilizado em Paprika e Inception (A Origem), onde o espaço ao nosso redor se torna palpável e, como
espelhos, vão se desfragmentando, revelando o universo que há do outro lado.
Nessa sequência em Ai City, a bela ESPer ruiva K2 (Mami
Koyama) é tragada para dentro desse novo universo, e ao ser tomada por
ondas cósmicas, ela que antes era vilã e tentava capturar Ai, retorna com uma
nova personalidade, se apaixonando por Yoshioka e ajudando a proteger a
garotinha. Parece-me que é uma abordagem do conceito de Duplo Etérico, um
composto de energias espirituais densas, porém ocultas da visão humana, atuando
como a ligação entre o perispírito e o corpo carnal, através dos chacras. Perispírito,
que por sua vez, é um laço que une corpo e espirito. Sim, é complicado, mas o
que Ai City faz é apenas aludir a este conceito, que no fim das contas, é a
origem dos poderes psíquicos – acredita-se que o ser humano é dotado de
energias ocultas, o chacra é exatamente pontos vitais do corpo que permite a
libertação dessas energias. Basicamente falando.
Mashimo faz um lindo trabalho em cima desses conceitos, com
uma representação visual vibrante e de aspecto ilusório. É verdade que a
qualidade na fluidez da animação não é alta, se trata de uma produção econômica,
mas que sabe fazer uso da estética para extrair o melhor das características da
obra. Para isso, Mashimo contou com a colaboração de coadjuvantes fundamentais
para o resultado final, como por exemplo, o cultuado compositor de trilhas
sonoras Shiro Sagisu (conhecido
principalmente por seu trabalho em toda a série de Evangelion). A trilha
sonora é um elemento indispensável aqui. Boa parte da ação se dá em compassos
ritmados com a trilha sonora, como boa parte dos OVAs oitentistas, com suas
batidas pop-rock. Embora geralmente eu não curta tanto o resultado, por
considerar que muitas vezes a melodia não acompanha o ritmo da ação [caracteristicamente
pobre], gerando um resultado fora do timing e altamente defasado, em Ai City
essa parceria funciona muito bem, como uma simbiose. Inclusive, é de onde se
origina boa parte do charme da ação no filme. E claro, o diretor de arte Torao
Arai também tem um ótimo desempenho, criando para Ai City uma áurea cosmológica
mutante, ora a estética degradante do cyberpunk ora a psicolodelia espiritual à
estética trash dos filmes b americanos dos anos áureos do cinema de terror bioquímico
– que, aliás, rende os aspectos visuais mais sensacionais do longa, em uma
autêntica e apaixonante podreira
visual.
Sente-se que o universo palpável de Ai City é altamente instável
e desfragmentado. Em determinado momento o chão começa a se dissolver, saindo
dali monstruosidades bizarras, em outro, a cidade é completamente destruída, e
pouco antes disso tudo, a camada do que entendemos por realidade se desfaz
completamente, revelando um tecido cósmico dimensional. É compreensível a
sensação de desorientação e perda que a narrativa acaba causando, como se nada
ou pouco se conectasse. Mashimo conduz a narrativa com um ritmo desconcertante,
de modo a se parecer com um pesadelo, que salta de um acontecimento a outro,
com ambientes que se transformam num piscar de olhos. São várias informações desconexas,
para logo serem sobrepostas por outros acontecimentos. De fato, a cidade de Ai
City parece ser uma ilusão criada por alguém. Na abertura do filme, vemos uma cadeia
molecular manchada pelo que seria um vírus e, na sequência, os nossos
personagens principais dentro de um carro em alta perseguição, destruição e
novamente, a narrativa é entrecortada por outra cena sobreposta para logo
depois ser retomada. Mashimo ainda introduz flasbacks em meio a narrativa sem
muita diferenciação da narrativa linear, o que faz com que aflore uma duvida ou
outra, se tal cena é linear ou uma lembrança. É fascinante a forma como todas
as peças são dispostas na narrativa em forma de fragmentos, demonstrando confiança
na capacidade do expectador em alinhar todos os acontecimentos e formar o
desenho da história, sem explicações verborrágicas que tirem o ritmo da
direção.
Neste paragrafo, vou comentar sobre a história e terá
spoilers, se quiser evita-los salte para o próximo. Os flashbacks que permeiam
a história é acerca do passado de Key e sua namorada, permeada por memórias
felizes – eles se divertindo na praia – e de terror – quando ele acorda num laboratório
e se dá conta de que foram raptados e se tornaram cobaias de cientistas. Ele se
torna uma experiência falha e ela é clonada, com os cientistas armazenando em
seu clone uma doença adormecida chamada de Bio Poluição, capaz de destruir toda
a informação genética dos seres humanos, exterminando a humanidade como a
conhecemos. Esse clone se chama Ai e, após a morte de sua namorada, Key resolve
fazer o que não conseguiu com sua namorada, protegendo o clone dela, que o vê
como uma figura paterna. Com isso, descobrimos que a cadeia celular na abertura
do filme contaminada por um vírus é o interior genético de Ai, e que o código de
ativação “Ai City”, capaz de despertá-lo, é a grande capacidade de Ai de
destruir o mundo, como temem aqueles que tentam mata-la ou fazer uso de suas
habilidades. Embora, talvez seja mais sensato dizer que esse tal código adormecido seja a chave para uma "evolução" de todas as formas de vida humana, mas no fim das contas também significaria o fim da humanidade como conhecemos, então, tanto faz.
Repletos de jargões pseudocientíficos e conceitos não
aprofundados, Ai City é uma adaptação que tem um sentido mais alegórico.
Adaptado de uma obra homônima de 2 volumes da antologia seinen Super Action (já encerrada, que funcionou de 1983 a 1987),
a mesma de 2001 Nights, especializada em quadrinhos SF e que aparentemente
tinha um estilo de arte mais próximos do que se vê em quadrinhos ocidentais. O
longa-metragem deixa à margem muitas informações do original, como a estrutura
daquele mundo, que não chega a ser explorada no filme, apesar de haver
insinuações de que aquela cidade é um simulacro. Não que você vá encontrar
muitas informações acerca do original. Mesmo o filme é bastante obscuro. Ai
City poderia ter se tornado um trabalho de referência, mas o roteiro é
demasiadamente simplista e frágil, embora a estrutura conceitual seja complexa (herança do original, provavelmente, e
certamente da direção de Mashiro). Os personagens não são substanciais e os
conflitos são frágeis e rasos. Estruturados com estereótipos, são personagens
que estão ali como ferramentas de roteiro e se adequam à linguagem frenética do
filme, mas o que começa vibrante e enérgico, no decorrer do filme acaba perdendo
a força com a ausência de uma tensão mais imersiva. Falta um toque, algo a
mais, que diferencia produções como Akira de outras que caem no ostracismo,
como Ai City.
Mas o caráter alegórico de Ai City é muito curioso, envolvente,
instigante e critico. Termina tão inusitadamente quanto o começo, deixando
margem para a especulação de que tudo não passa de imaginação. Isso é fantástico,
conectando o inicio ao fim e mantendo a essência temática. Pode se dizer que,
não é importante saber como Yoshioka foi parar no carro de Ai e Key, mas apenas
que ele involuntariamente se envolveu naquela confusão. Essa visão inicial de
Ai City juntamente com o final, em que [spoilers, selecione pra ler>>] os personagens desaparecem,
se alinha com uma das poucas coisas que sabemos acerca da estrutura daquele
mundo: aparentemente gerida apenas por um homem, considerado o mais evoluído dos
ESP, depois de Ai, aquela cidade é um simulacro, uma criação virtual, uma cópia,
uma simulação de uma cidade real, uma Matrix – isto se torna mais evidente ao
relembrarmos que o tecido do espaço-tempo que forma a aparência da cidade é um
espelho, que quando rompido, dá vazão a um universo cósmico imaterial. É ou não
é muito alucinógeno? De certa forma, é um reflexo da cultura psicodélica e gnóstica.
No começo, Key diz que “eles” [aqueles que os perseguem]
estão cansados de barganha e procuram algo real. Algo real, como eu, diz Ai (Ai=Amor). Os anos 80 é a década do
boom da cultura otaku, que surgira na década de 70. As pessoas procuravam se
refugiar da realidade no escapismo, criando um simulacro para que pudessem
preencher o vazio que sentiam. A capacidade de criar mundos não-reais através simulacros,
que forjam a realidade, era vista como preocupante para o futuro da sociedade nipônica,
com vários jovens se fechando em seus territórios como caracóis em conchas, com
suas waifus, idols idealizadas, animes, revistas, jogos, mangás e etc. A
metamorfose e transformação [fosse do homem em máquina ou em uma criatura
repugnante] é recorrente nas obras oitentistas japonesas, como uma metáfora que
sugere a identidade em constante flutuação. Em outras palavras, efeitos
marcantes da bomba solta em território japonês na Segunda Guerra Mundial. Começo
e recomeço; universo cosmológico; a paradoxal fuga da realidade copiando essa
mesma realidade num universo fantasioso; o temor e instabilidade social – Ai City
sabe ser fascinante.
ESPers, sempre recorrentes na ficção japonesa, denota a
capacidade e o poder que há em cada um de nós para mudar para melhor ou pior a
realidade a nossa volta. Como o vírus adormecido no interior de Ai, capaz de
reescrever todo o DNA humano e levar a humanidade à destruição se torna uma metáfora
exata para o termo social que tomava conta de setores da sociedade japonesa
quanto aos jovens reclusos em seus próprios mundos, tratando seus vícios como
um vírus letal capaz de transformar o mundo em algo horrível. Ai City, apesar
do subtexto alarmista com que trata um período histórico de conturbada
transição, ainda reserva uma terna esperança na capacidade de superação humana,
daqueles que apenas estão a procura de amor para preencher os espaços vazios.
Há muito que se dito em relação a natureza alegórica de Ai City, mas por enquanto
vamos ficar nisto, e apreciar a natureza abstrata dessa obra que a despeito do
que aparenta, tem muito a dizer.
Nota: 07/10
Diretor: Koichi Mashimo
Roteiro: Hideki Sonoda
Trilha Sonora: Shiro Sagisu
Estúdio: Ashi Productions
Duração: 1 hora e 26 min.
Páginas: MAL
Nota: 07/10
Diretor: Koichi Mashimo
Roteiro: Hideki Sonoda
Trilha Sonora: Shiro Sagisu
Estúdio: Ashi Productions
Duração: 1 hora e 26 min.
Páginas: MAL
Trivia
Ai City é um dos primeiros animes que assisti, quando comecei
a baixar animes, a uns 5 anos atrás. Sempre fissurada por essa estética trash e
surrealista, não lembro como, mas de alguma forma me deparei com o título.
Obvio que não entendi nada na época, mas gostei tanto da loucura temática que
ficou marcado na mente. Na época, cheguei até mesmo a fazer essa comunidade no Orkut,
para o filme. Depois excluir o perfil e passei-a para o meu fake (na época que estava na onda daqueles RPG
de Orkut, com personagens interpretativos. Essa era a minha XD).
A palavra Ai tem vários significados. Pode significar, por
exemplo, Inteligência Artificial. Em japonês, também significa “amor”. No
entanto, aqui fazem uma brincadeira linguística com o nome. Em Ai City, Ai (アイ) é escrito em Katakana, ao
invés do usual, em Kanji (愛). E o
que isso muda? Acontece que, neste caso, Ai também se lê como “Olho”. No caso,
o título tem um duplo sentido, podendo se ler como “Cidade Dos Olhos” ou “Cidade
do Amor”. Durante o filme, se vê muitas referências à palavra “Eyer”, que em
inglês, significa “olho”. O que isso significa no contexto do filme? Talvez
aquilo que já falamos acerca de simulacro da realidade e natureza metafórica da
obra. Que o significado do filme esteja na perspectiva de cada olhar, ou que a
existência de Ai City não passe de um simulacro, uma fantasia pelo olhar de
alguém. Enfim... Há também outro significado para Ai no contexto da história.
Ai, em inglês, é a forma como se lê “I” (Eu),
que é justamente o nome de série dado para Ai, na história. Ela é a I2 (ou seja, um clone da namorada de Key, que
recebera a codificação de I), enquanto Key tem como código de identificação
a letra “K”. Outro detalhe: no filme isto não é abordado, mas K2 é uma clone de
Key... Por isso o nome dela é “K2”. Bacana, né? Dá pra ver que a estrutura do
original é bem mais sólida. Uma pena o mangá ser ainda mais obscuro e
inalcançável quanto o filme.
Ai City chegou a ser lançado em VHS no Brasil (veja um trecho) pela WR Filmes (que também lançou um dos filmes do Lupin III por aqui. Lupin III- O Ouro da Babilônia), com o nome de Terror Em Love City. Só não faço a menor ideia de quando foi isso, mas provavelmente nos anos 90/2000, quando começaram a desovar no ocidente tudo que era OVA de temática "adulta", ou seja, bloody horror. Nos EUA, Ai City foi lançado em 1999, e levando em conta que geralmente o que foi [ou é] lançado aqui, vem dos EUA, foi em algum momento dos anos 2000 que o filme chegou por aqui, justamente no boom das animações japonesas no Brasil.
Nota de rodapé: futuramente ainda abordarei mais do assunto
tratado aqui.
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