quinta-feira, 27 de abril de 2017

Memories: Cannon Fodder, De Katsuhiro Otomo (1995)

Com um estilo de arte rústico e narrativa profundamente hermética, Cannon Fodder (Bucha de Canhão) se propõe a ser um labirinto elíptico emocional que não facilita em nenhum momento para o expectador. 

Idealizado, escrito, dirigido, desenhado e com arte original do próprio Katsuhiro Otomo, Cannon Fodder é o último e terceiro curta-metragem da série Memories e ele é exatamente como se vê; uma peça de arte áspera com silhuetas feias pouco aprazíveis ao olhar acostumado com um design refinado de um Magnetic Rose onde a carpintaria visual não deixa arestas. Oras, com razão. Cannon Fodder não foi feito para ser pop e agradável aos olhos – e tampouco a natureza criativa de Otomo lhe permite ser facilmente digerível. Sua mensagem tem a urgência de um soco no estômago. Não é para ser suave, ele não vai passar a mão na sua cabeça.  

Aqui, você tem que chegar às suas próprias conclusões, e embora esteja tudo aparentemente obvio, o fato de estarmos submersos em uma narrativa que praticamente não há diálogos e linhas narrativas escritas pode-se induzir a alguns equívocos sobre o que realmente está se falando – ou melhor, não está se falando: isso porque a narrativa não te diz sobre o que é esta fabula, a narrativa é estritamente visual e os momentos, por assim dizer, mais fáceis do curta são exatamente onde ocorrem os únicos diálogos.
O universo de Cannon Fodder nos apresenta uma cidade móvel imersa numa cultura militarista, governada por militares truculentos, com paredes tomadas por uma iconografia de cartazes de propaganda que fazem apologia ao militarismo e aos grandes chefes de estado. Ornamentalmente em estética steampunk, a cidade é estruturada sobre canhões colossais apontando para o vazio da paisagem ao redor. O design de produção da cidade é rica em detalhes elaborados e com uma planta instigante que provocam o instinto criativo. 

As torres ciclópicas da cidade são verdadeiramente inspiradoras, assim como os interiores cavernosos das torres abobadadas em que os canhões impossivelmente grandes são mantidos. Todos estes elementos são prestados em detalhes tão requintados e ricos que o espectador é susceptível de ser encantado pela estranha majestade da cidade da história. É uma cidade idealizada sobre um espaço pequeno vitima de um desenfreado industrialismo que a fez crescer, se não para os lados, mas para cima – extremamente poluída visualmente, há longos tuneis que parecem uma porta mágica, e porões onde vive a classe trabalhadora perdida em labirintos sujos. A própria cidade é visualmente asfixiante, de estruturas vastas e colossais, grandiosamente ornamentadas dominadas por inúmeras torres de artilharia pesada. A cidade é definitivamente um personagem à parte – que inclusive requer um texto só para si. 
Em meio a este universo ditatorial, está a classe opressora; formada por capitães e generais e o chefe maior do estado – e do outro lado a oprimida, que são os cidadãos pobres que não passam de meros soldados rasos sem treinamentos em um regime de semi-escravidão. Seus rostos são desgastados e cadavéricos. Seus semblantes se assemelham como a de mortos-vivos. E eis aqui o ponto mais pertinente de toda a narrativa: a questão que fica martelando é a razão de haver nenhum sendo de revolta ou indignação naquelas pessoas. Elas vivem suas vidas como se tudo fosse absolutamente normal, as mulheres fofocam sobre banalidades e os homens fumam e bebem após um longo dia de humilhações e trabalho braçal – sim, é notável que há uma força sindicalista que pleiteia por melhores condições de trabalho, mas mesmo estes, demonstram uma atitude passiva e vegetativa. 
Claro, há de se convir que estamos diante de uma fabula e não uma narrativa vasta, onde a ideia crítica é o ponto primordial a ser alcançado. E qual é esta ideia crítica? Aquela que parecer jazer na consciência coletiva do existencialismo japonês; eu estou vivo ou apenas sobrevivendo? Inúmeras obras discutem essa temática, que parece impregnada com mais ímpeto nas japonesas. Afinal, também é uma ilha que cresceu verticalmente suplantada por um industrialismo desenfreado, onde seus cidadãos parecem carnes de canhões, num sentido onde o coletivo se sobrepõe ao individual na formação da máquina. Assim como em Cannon Fodder. 

Portanto, podemos concluir que este é o questionamento proposto por Otomo, um artista com a verne criativa voltada ao universo crítico, questionador e cínico do cyberpunk (como se nota em maior substância em sua obra maior: Akira). 

Com isso, ao notarmos aquela cidade móvel avançando a esmo e atirando em um inimigo invisível, que não vemos jamais, Otomo nos propõe uma reflexão acerca da falta de sentido em um povo sem consciência crítica que segue cegamente seu líder como um rebanho rumo ao abate – afinal de contas, para o líder, o que importa é a manutenção da máquina em um estado permanente que exige constante harmonia coletivista; então se cria situações de permanência do status quo para evitar a dispersão dos valores tradicionais, não importando o quão válido ou verdadeiros sejam. Lançando um olhar sobre a Coreia do Norte isto não soa muito atual?
 As únicas linhas de diálogos de Cannon Fodder são os momentos mais fáceis desta pequena obra, e um deles é o ápice da crítica de Otomo: depois de mais uma jornada, o pai exausto e o filho voltando da escola militar (que ensinam unicamente sobre a manutenção de canhões e poderio bélico, onde a matemática, a física e filosofia referem se unicamente à infraestrutura da guerra), lhe pergunta “Papai, com quem estamos lutando?”. O único questionamento que vemos em todo o curta-metragem vem, obviamente, de uma criança, a que seu pai lhe responde “você entenderá quando for mais velho”, enquanto bebe uma xícara de café; a pele pálida e doentia. Rugas. Uma apatia desesperadora de só quem já sofreu muito e vive em estado catatônico entende bem o ponto de ruptura entre o trágico e o abandono. Enquanto o filho vai em direção ao quarto para se aprontar para dormir, se depara diante de uma moldura com uma foto enorme de um general de guerra, e lhe faz uma continência e uma confissão; “Quando eu for adulto, não quero ser um mero carregador de bombas de canhão como o meu pai, eu quero ser aquele que dispara o canhão”.

Touché! Sinta-se atingido bem na jugular por Otomo. Digno de palmas. Sem mais. 

Nota: 10/10 😔

Diretor: Katsuhiro Otomo
Roteiro: Katsuhiro Otomo
Storyboard: Katsuhiro Otomo
Musica: Hiroyuki Nagashima
Character Design: Katsuhiro Otomo
Arte: Katsuhiro Otomo
Diretor de animação: Hidekazu Ohara
Diretor de Fotografia: Hiroaki Edamitsu
Estúdio: Studio 4°C

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