segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Wendy (1996): Alucinante Conto de Fadas

Acho que toda criança passa por aquele momento de não querer e ter medo de virar adulto, mas e quando este momento alcança a vida adulta?
Leia Também as impressões de outra obra do autor aqui no ELBR: Tropical Citron ― Psychedelic Witch Story (2001): Estonteante Contracultura Psicodelica

Isso é um sonho? Delírios? Uma sequencia onde pesadelos se misturam à realidade e se tornam indistinguíveis. Wendy é a primeira série publicada oficialmente de Jiro Matsumoto, com 1 volume, serializada em 1996 – Uma história caótica sobre coming of age, a difícil transição da adolescência à vida adulta. E o começo surge com momento determinante na vida de muitos jovens, especialmente mulheres; a perda da virgindade.

A primeira vez de Ishigami Manami foi um tanto brusca e a experiência não foi satisfatória – e Matsumoto utiliza um recurso visual bem inventivo que demonstra visualmente as emoções conflitantes de Manami, com ela se sentido incomodada com o odor do sangue virginal em sua mão, que parece ter penetrado em sua pele quando ao tocar suas partes intimas, notou o sangue que escorria dali. Na ficção, a perda de virgindade [ou da primeira menstruação] ainda representa um marco; um rito de passagem importante que simboliza o amadurecimento. Manami passa então a ter que conviver com estes sentimentos de inquietação e estranheza instigados pelo seu próprio odor. É a partir de então, depois de um incidente, que ela passa a ter pesadelos com um estranho homem pitoresco que se autoproclama Peter Pan e que começa a chamá-la de Wendy. São pesadelos caóticos em um colagem de recordações da sua primeira transa em que ela não se divertida nem se sentira nem um pouco à vontade e diversas fragmentações.

Sequência incrível e altamente cinematográfica, é por sequências assim que tenho a narrativa visual do Matsumoto em alta conta (tradução por mim mesma):

Wendy é um conto adolescente sob uma releitura de Peter Pan e a Terra do Nunca (vocês sabem, ou deveriam saber, Peter Pan é a fabula do garoto da Terra do Nunca que nunca cresce nunca se torna adulto e permanece criança para sempre), mas na visão do Matsumoto os personagens clássicos desta fábula ganham uma releitura grotesca e inconvencional, como também, de certa forma, ocorre em Tropical Citron.

A Sininho não é um doce [na verdade a sua participação é minúscula], Gancho é um homossexual sadomasoquista apaixonado pelo Peter Pan, que por sua vez é alucinado e um tanto psicótico – além de outros personagens curiosos. Manami, que é vista por todos como Wendy, é a personagem de fora que é levada a este mundo. Está tudo lá, o relacionamento conflituoso de Wendy com Sininho como um arquétipo das mulheres que se rivalizam em torno de um homem, a relação maternal e sexual entre Wendy e Peter Pan; uma relação conflituosa entre tensão sexual e infantilidade, que simboliza o conflito vivido em relação ao desejo por permanecer criança e a proteção materna, com o despertar sexual.

A Terra do Nunca do Jiro Matsumoto é niilista e fica no limiar entre o metafórico e o real. É o refugio daqueles que querem fechar os olhos para os problemas e a dura realidade à sua volta, buscando escapismo em um mundo fantástico onde eles podem ser o que quiserem ser sem precisarem crescer e encararem a responsabilidade do mundo adulto – é o que se convencionou chamar de A Síndrome de Peter Pan, termo psiquiátrico usado para descrever um adulto que se recusa a agir conforme as responsabilidades que a idade traz pedem.

Wendy, apesar da camada metafisica e do modo excêntrico de narrativa do Matsumoto [de personagens alucinados, quebrados, violados, drogados e miseráveis] onde tudo é contado por uma perspectiva que alude ao desconexo e caótico em uma confusão entre sonhos e realidade, é uma historia muito simples e fácil de seguir e de ser absorvida. Manami vive todos os conflitos típicos da adolescência; a relação conflituosa com os pais [a mãe], o lar muitas vezes desestruturado, a dificuldade de se encontrar alguém em que se possa confiar, a estranheza gerada por não ser adulto nem criança, a vontade de desaparecer para um mundo além, a paixão ardente e espontânea que surge em meio aos conflitos – hostilizando a mãe, ela é incapaz de entendê-la, para compreender sua mãe, ela antes precisa se encontrar. A diferença é que a forma de Matsumoto contar isso é realmente desconcertante.
Não é pertencente à galeria de melhores histórias do Matsumoto, mas se nota aqui o inicio de uma gradativa maturação do estilo de um autor; a arte estilizada já se mostra marcante e o traçado elástico nos personagens também desponta como um recurso a ser amplamente utilizado, porém aqui se mostra mais inconsistente em alguns momentos, falta o adorno capaz de trazer à vida a beleza primitiva das personagens femininas que infestam suas obras. De modo geral, a narrativa visual às vezes se torna um tanto confusa, mas também tem vários momentos de enquadramentos incrivelmente cinéticos – característica que também marca presença em outras histórias do autor. Enfim, é uma boa história, “agridoce” é um termo que cai bem para defini-la. É uma obra difícil de julgar, pois os diálogos muitas vezes soam nonsense e abstratos, dizer que são ruins não seria honesto, pois compõe o universo alucinógeno da Terra do Nunca, mas certamente em alguns momentos são difíceis de envolver plenamente.