Kamen Rider Gaim (2013): Amadurecendo Através das Responsabilidades

Gen Urobuchi se aventura por novos caminhos e traça uma conflituosa saga de crescimento através das responsabilidades, como uma porta que empurra os personagens para o mundo adulto.

Para alguém que tem como Kamen Rider a imagem clássica do Kamen Rider Black (1987–1988) retida na memória – sem dúvidas a série da franquia Kamen Rider mais popular no Brasil – teria um choque depois de longos anos por um acaso batesse os olhos nos Riders de Kamen Rider Gaim. Visual extravagante de armaduras e armas tematizadas com frutas é algo que parece muito estranho, bizarro e bobo... Ao menos, em teoria. Um dos méritos da série é justamente tornar este universo e o conceito temático dos uniformes em algo natural e verossímil. É uma das regras fundamentais ao se escrever uma história; não importa o quão ridícula pareça desde que você consiga fazer com que o público compre aquela ideia e passe a encará-la com naturalidade; como algo credível, e o primeiro passo para isso é trabalhar sua ideia com seriedade. O primeiro passo é acreditar nesta ideia e abraça-la forte.

47 episódios depois é fácil perceber o quanto Gen Urobuchi não distingue na escrita este seu trabalho, que é voltado para um publico infantil, de qualquer outro seu que é demograficamente maduro, como Saya no Uta. Claro que por se tratar de uma série infantil e pertencente a uma franquia lucrativa, ele precisa seguir algumas regras e respeitar a estrutura estabelecida pela produção e o seu perfil demográfico – mas garanto que não é nada tão diferente de quando ele foi convidado para escrever a prequel de Fate/Zero para a produtora Type-Moon ou quando aceitou o convite para criar a história do mahou shoujo Madoka Magica. São veículos no qual um autor não possui plena liberdade criativa (embora, no caso de Madoka, Butcher tenha tido mais liberdade do que o habitual, mas tem se em conta que o estilo da proposta e o seu próprio estilo eram parecidos, e portanto, a escolha do seu nome, foi pensando para respeitar seu habitual modo de escrever) e precisa enfrentar o desafio de escrever uma história onde muitas mãos irão mexer para formar o produto final. Ou seja, o que eu quero dizer é que Urobuchi trata este universo com a mesma seriedade e respeito, e isto reflete na percepção da história.

Acima eu estava comentando sobre o choque que teria uma pessoa não muito antenada se ela redescobrisse Kamen Rider a partir de Gaim. Provavelmente acharia tosco e infantil. Mas a verdade é que o multicolorido frutal de Kamen Rider Gaim não deve nada às cores acinzentadas de Black Kamen Rider. Nem mesmo à temática madura. Não devemos confundir temática com cenário. O cenário de Black é o mundo adulto, o de Gaim é o infantil juvenil de adolescentes que estão descobrindo o mundo e amadurecendo no processo, mas tanto uma quanto a outra trabalham com maturidade o seu enredo. Confesso que Gaim me surpreendeu positivamente neste aspecto, comecei a assistir a série unicamente pelo nome de Gen Urobuchi, mas não esperava que fosse encontrar uma história onde os personagens fossem obrigados a enfrentar as consequências para os seus atos, consequências duras e algumas vezes irreversíveis. É neste aspecto, apesar de infantil, uma série com uma progressão madura que respeita o seu publico, dando-lhes a possibilidade de lidar com conflitos muito reais. Gaim me pegou completamente desprevenida e me arrebatou, com uma história cativante de pessoas que estão buscando o seu lugar no mundo, indo ainda além ao representar de modo não tradicional os laços familiares e o legado que ele deixa em cada um.

Com estrutura de arcos de 10 episódios, a série está sempre se reinventando. Urobuchi caracteriza a primeira saga como a infância do protagonista Kouta. É a fase do apego, da dificuldade de encarar os desafios do mundo adulto e abrir mão do seu mundo infantil, assumindo responsabilidades. É notável o quanto ele se sente perdido e confuso. Por isso é de imensa satisfação olhar para o personagem nos episódios finais e percebe raté mesmo na expressão fácil do ator que o personagem cresceu e está mais maduro. Ao ser confrontado com um novo mundo, ameaçador e desconhecido, a tendência do adolescente é fugir e negar as circunstancias diante de si, mas chega o momento no qual ele não pode mais continuar fechando os olhos, pois por mais que ele cruze os braços, as coisas continuam a acontecer e as responsabilidades se acumulando sobre os ombros. Kouta Kazuraba (Gaku Sano) amadureceu apanhando muito. Com um caráter ingênuo e amigável (indispensável para um protagonista voltado para o demográfico masculino infanto-juvenil), que valoriza a virtude e o valor da amizade e das pessoas mais até do que ele próprio, ele é o típico protagonista que se espera neste tipo de obra. O elenco ainda trás Kaito Kumon (Yutaka Kobayashi), Mitsuzane Kureshima (Mahiro Takasugi) e Takatora Kureshima (Yuki Kubota), como co-protagonistas que dividem o palco com Kouta. Todos bem distintos e com particularidades próprias. Neles, Butcher pôde trabalhar melhor algumas ideias que não são possíveis no protagonista, assim como também ousar mais e traçar uma linha repleta de voltas. No entanto, é magnifico como cada um deles se encaixa e possui a sua função na narrativa, dando a impressão que a progressão como vemos não seria possível sem a presença de algum deles. Pode-se dizer que Kaito, Mitsuzane e Takatora soam bem mais adultos/maduros que Kouta, conscientes do mal que existe ao seu redor e dispostos a sacrificar seja quem for para alcançar seus objetivos, ao contrário de Kouta que deseja salvar a todos sem sacrificar ninguém, no entanto, com o passar dos episódios fica cada vez mais claro que ambos estão na mesma situação: perdidos e tomando caminhos que não os levarão a lugar algum.

Kaito e Mitsuzane não são exatamente adultos, e embora possuam uma visão mais madura sobre o mundo e as circunstâncias que os cercam por terem tido experiências difíceis, com o passar dos episódios fica claro que lhes faltam experiência de vida e uma verdadeira maturidade que somente a idade pode proporcionar a despeito de qualquer experiência traumática. Por outro lado, Takatora é um autentico adulto e possui maturidade, mais isto não significa que as coisas sejam mais fáceis para ele; pois mesmo a pessoa mais madura e com larga experiência de vida são capazes de cometerem os equívocos mais estúpidos. É a sua capacidade de avaliar isso que lhes capacita como mais aptos a tomarem determinadas decisões, mas é uma visão que apenas o tempo e distanciamento proporciona o melhor julgamento.

Vemos que ser adulto é mais complexo do que muitas frases de efeito moral fazem parecer. Vai além de ter que lidar com as consequências dos seus atos e de ter que decisões que você não gostaria; não basta se tornar adulto, mas amadurecer sua capacidade de julgamento e raciocínio. E isto implica ser capaz de fazer um julgamento levando em consideração até mesmo a hipotética possibilidade de salvar a todos por mais tolo que pareça, algo que nos é ensinado indiretamente desde pequenos não ser possível. Mas isto não significa que você deve abrir mão daquilo do qual acredita ser a atitude certa a ser tomada, contudo significa ter que lidar com suas implicações. Para atingir à maturidade, não é preciso deixar de sonhar e se tornar uma criatura cinza com tons negros vivendo em um mundo gótico – essas coisas só são cool na ficção –, pode-se manter a leveza de espirito de uma criança, pois a maturidade é a experiência que se adquire com o tempo ao lidar com diversas situações conflitantes (acredito veementemente que nunca atingiremos o nível pleno de maturidade, não nós criaturas mortais, sempre haverá algum desequilíbrio, mas talvez surja uma ou outra pessoa que se destaque neste quesito, conseguindo alcançar a plenitude da maturidade humana, tais como Buda).

É por isso que Kouta se destaca dos demais personagens, pois ele tem uma visão ampla sobre as coisas e suas possibilidades – é verdade que no inicio da série, durante seu período infantil, sua visão é restrita a uma bipolar lente da vida, mas ao chegar à fase da maturidade, ele compreende melhor o que está a sua volta. Sua obstinação e valores não mudam, mas ele cresce. Ainda assim, não bastam boas intenções e um espirito repleto de sonhos, se faz necessária a força para persistir e superar os obstáculos que irão surgir no caminho da realização destes sonhos/objetivos e poder. Na série, o poder é visto pela ótica da fantasia, ou seja, o seu apelo é sobrenatural, mas despindo a metáfora, o poder nada mais é que a obtenção dos meios necessários para realizar aquilo que você almeja. Na nossa sociedade, o poder se manifesta través do dinheiro. Qual é o meio mais eficiente e seguro a longo prazo para conquistarmos nossos sonhos futuros? Se você é uma pessoa comum, batalhar por um emprego que te pague bem – afinal, para sair com alguém, remédios para saúde, comer bem e usufruir de um hobbie, entre outras coisas, exigem um custo. Claro que a visão do mundo real é chata e desanimadora, é por isso que a fantasia se encarrega de colocar cor, emoção, perigo e poderes para que possamos experimentar isto na segurança do lar. É por isso que é difícil resistir ao apelo daquelas armaduras de plástico, coloridas, e armas de brinquedo, envoltos em efeitos especiais ruins e um autentico senso de diversão e envolvente ação, como quando Gaim ativa sua metralhadora giratória de plástico contra diversos monstros, quase como se fosse um Rambo estilizado e menos violento, mas com igual empatia visual e atmosférica.

Kaito Kumon é o personagem que menos evolui na história, do inicio ao fim, ele é praticamente o mesmo, embora notavelmente seus conflitos ganhem camadas consistentes que garantem vitalidade e humanidade à sua jornada. Mitsuzane Kureshima por outro lado, é o personagem mais rico e evoluído de Kamen Rider Gaim, acompanhar sua jornada foi extremamente satisfatório. Ele tem uma propriedade capaz de não nos deixar indiferente, ao mesmo tempo que o reprovamos e sentimos repulsa, também desperta um sentimento de proteção e piedade. Ele é o personagem no qual Urobuchi pôde concentrar um dos seus conceitos preferidos, presentes em boa parte de suas obras, que é aquele personagem que se vê carregando um peso maior do que pode suportar e em algum momento irá quebrar.

Mitsuzane vive às sombras do irmão Takatora Kureshima, e o modo como se rebela é uma forma de se libertar da sua concha e dos laços familiares que o aprisionam e retém a um mundo infantil. Mitsuzane é o exemplo clássico do adolescente que vê na rebeldia e contraversão (negando os símbolos de autoridade) a porta de saída para a conquista da emancipação e reafirmação do seu eu, da sua própria identidade. Takatora possui uma presença muito forte e definitiva na história graças à ótima performance do ator Kubota Yuki, que além de desejável comível gostoso lindo e com um carisma impregnado na sua postura em cena, confere os tons adequados ao personagem. Mas sua importância não está na linha de frente, como dá a entender inicialmente, e sim no suporte, pois em determinado momento Mitsuzane cresce tanto que se torna impossível que os dois personagens coexistam no mesmo espaço. O que de mais bonito há sobre a participação de Takatora é a sua relação paternal com Mitsuzane, que contrasta diretamente com a de Kouta e sua irmã Akira (Rika Izumi), que possui um papel maternal na sua vida. A forma como ambos criam seus irmãos reflete no modo como eles encaram os desafios e o mundo à sua volta. Quando Kouta entra numa fase Peter Parker ao tentar utilizar seus poderes para garantir dinheiro, a primeira coisa que sua irmã faz é negar este dinheiro, mesmo que ambos sejam pobres. É uma metáfora, claro, uma lição moral que diz muito sobre a cultura japonesa, em relação ao senso coletivo de que você está ganhando o seu dinheiro, mas em troca está oferecendo um auxilio à outra pessoa e assim, forma-se um elo de coletividade; é uma lição sobre a importância do trabalho, do seu próprio esforço, na obtenção do dinheiro – em outras palavras, você valoriza melhor seu dinheiro quando ele é fruto do seu próprio esforço, e em consequência, este esforço foi de auxilio à comunidade. Mitsuzane, por outro lado, cresceu distante deste calor humano, sendo cobrado continuamente para que um dia pudesse assumir a posição do seu irmão. O personagem é um reflexo exato da muito comum da desgastante relação de cobrança entre pais e filhos.

Gaim não me prendeu de primeira, as atuações deficientes por boa parte do elenco era algo que tirava parte da imersão, mas é impressionante como tudo vai se tornando envolvente com o passar dos episódios e o estreitamento da relação entre nós e aqueles personagens – até mesmo alguns atores possuem uma sensível melhora com o tempo. A marcação dos atores e a postura deles em reação a cada cena, principalmente as que exigiam mais reações, eram em boa parte pavorosa de tão superficial; aliás, é natural que os atores com o passar do tempo se sintam mais a vontade em cena e interpretem com mais maturidade, mas há o elenco secundário que não mostra nenhuma melhora ou qualquer talento interpretativo, eles são simplesmente terríveis. Tem as sequências de ação que usam 3DCG que também não são nada visualmente atrativas, mas as coreografias de luta e o ápice da razão para lutar dos personagens tornam tudo mais envolvente e caloroso. Há algumas sequências nos momentos mais intensos de Gaim, que a despeito do aspecto técnico, são deslumbrantes e envolventes. Acredito ter feito uma boa decisão ao deixar Gaim para maratonar, pois os ganchos deixados a cada termino são enlouquecedores, principalmente quando a série atinge o seu ápice. Urobuchi novamente surpreende com as suas habituais reviravoltas e a história termina com a visão de uma série bem diferente de quando começou. Mais madura e com cada personagem ocupando o lugar pelo qual o caminho que tomaram os levou.

Em menor grau, todos os personagens que compõe o elenco de sustentação, tais como amigos/parceiros, adversários e vilões, são mais bidimensionais e caricatos, mas mesmo eles soam orgânicos e fazem um bom papel de ligação e preenchendo os espaços. Durante todo o texto, não citei Mai Takatsukasa (Yuumi Shida), a garota que desempenha o interesse romântico dos protagonistas, seu papel é bem definido possui certa importância, mas a personagem em si não passa de um rosto bonito (e ela é bastante fofa e amável, uma graça. Juntos, eles são muito lindinhos :3). Com a exceção de seus momentos com Kaito, que faz com que sua presença se torne forte na interação entre eles. Os dois possuem uma química excelente que não existe entre ela e Kouta. Kaito tem o poder de abalá-la como nenhum outro faz, estabelecendo uma tempestuosa tensão sexual entre eles, que os planos de câmera captam com simetria. Se Kamen Rider não fosse uma história de super herói, isto terminaria de outra forma, mas levando em conta o formato da série, a forma como tudo se encaminha para o seu final é catártico e surpreendente. Uma história que já mostrava o seu final no primeiro episódio, mas isso... só se compreende ao fim.

Como nota de rodapé, se virem as imagens abaixo, perceberão o quão linda é a fotografia da série.

Nota: 07/10

Direção: Ryuta Tasaki

Roteiro: Gen Urobuchi

Estúdio: Toei

Episódios: 47

Tipo: TV

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