Denso, absorvente, talvez mais subjetivo do que deveria e
com aquele quê de epicidade que Berserk pede, proporcionado por uma ótima trilha
sonora.
“Uma vida que busca apenas avançar mais um dia é inaceitável. Um
amigo... Para mim...É alguém que não irá seguir o sonho de outro homem. É
alguém que escolhe o seu próprio sonho e trabalha por ele... Passando por
qualquer um que ficar no caminho, até mesmo eu...Para mim, um amigo é... Alguém
que eu possa considerar meu igual.”
Ambiguidade e ambição são duas das palavras que melhor
sintetizam a “Era de Ouro” da trilogia de filmes do Stúdio 4ºC – julgarei como
um material isolado, como qualquer adaptação deve ser tratada – que resume o
arco mais ovacionado da obra máxima de Kentaro Miura. Neste aspecto, Berserk –
Ougon Jidai-Hen consegue, ainda que sem uma boa substância no filme anterior,
estabelecer uma teia de ligações entre Guts, Caska e Griffith, da ascensão, à
queda do Bando do Falcão, culminando nas dicotomias clássicas da obra original.
Embora repleto de nuances e complexos morais, Berserk se constrói
em cima de um ambíguo triangulo amoroso. O amor, uma emoção universal que tem sido
o paradigma de grande parte das obras criadas desde “Gênesis”, que consegue se
colocar acima até mesmo das ambições e despertar os mais terríveis dos
sentimentos; entre eles o ódio e a vingança. Estas, as molas propulsoras que
desencadeará o eclipse sobre os personagens de Berserk. Um yin-yang visceral. A
paixão idealizada de Caska por Griffith; a quem vê como o príncipe que viera
lhe salvar no cavalo branco; o amor objetificado deste por Guts; que por sua
vez busca encontrar o significado das palavras [que abre o texto] proferidas
por aquele que tanto admira.
Berserk Golden Age Arc II tem a seu favor o fato de
trabalhar melhor as inter-relações entre o triangulo, um foco minimalista em
Caska, uma presença mais forte do Bando do Falcão, trazendo um impacto maior às
batalhas – E claro, uma ligeira melhora na parte técnica, favorecendo as
batalhas que intercalam os 3 atos do longa-metragem. São 3 atos distintos, que
trazem uma progressão com a sutileza que não se via no anterior, com eventos
bem amarrados, um inicio, meio e fim poderosos.
A sequência inicial com uma Caska irreconhecível é uma de minhas preferidas em Berserk, revelando uma das melhores características da série: Uma visão crível e visceral sobre a guerra, e não apenas isto, o lado humano . Explorar as fraquezas de uma mulher em meio à mercenários, por mais forte e máscula que seja, enriquece a narrativa. E mais inteligente do que apenas explorar o fato de ser mulher em meio a tantos homens selvagens, é evidenciar a sua feminilidade.
Assim temos diálogos pontuais como "Então você é a capitã mulher do Bando do Falcão?! Eu não consigo
entender por que uma mulher se vestiria como um cavaleiro. Você deve ter ganho
este título graças às suas habilidades na cama com o seu chefe, Griffith.O
campo de batalha é um local sagrado para os homens, não há lugar para mulheres!
Eu, o comandante dos cavaleiros de elite Baleia Azul, Lorde Adon, a farei pagar
por isto!" ou quando Guts questiona o motivo de ela ter se deixado
encularralar, sem imaginar que ardia em febre e cólicas menstruais.
A sequência logo após de ambos rolarem barranceira abaixo e
Caska ficar inconsciente, com Guts tirando suas roupas molhadas e percebendo
que ela estava menstruada, consegue ser sensível, madura e com um humor
refinado no texto e expressões faciais; "...Então era isso...Ser mulher deve
ser difícil...". E se trata de uma longa sequência, cerca de menos
de meia hora, onde a cena consegue sintetizar a narrativa dramaticamente em um espaço
diegético, sem recorrer ao auxilio de nenhuma trilha sonora. Isso faz com que
você tenha uma imersão maior naquele conflito, e todo silencio espaçado entre
um diálogo e outro, pareça refletir o interior de Caska e Guts.
Não por acaso, é aqui onde a relação emocional entre ambos é
aflorada, fazendo ligações sutis com fatos ocorridos anteriormente, como quando
Guts envolve o corpo nu de Caska ao seu em uma belíssima cena, para mantê-la
aquecida, nos levando de volta ao momento onde ela fizera o mesmo por ele [sob
ordens de Griffith]. Ou quando ela acorda e se enfurece ao mesmo tempo em que
também envergonhada [não por ele a ter visto nua, ou tirado sua roupa, mas por
tê-la vista em um momento tão delicado, frágil e intimo para toda mulher. Sem
dúvidas, quando estamos em período menstrual, é quando ficamos mais
fragilizadas e também envergonhadas com a possibilidade de sermos vistas
intimamente], começa a desferir objetos e a ofendê-lo. Aqui, suas magoas e
frustrações vêm a tona, como o fato de ser constantemente menosprezada por ser uma
mulher e estar combatendo numa guerra, assim como ter sido salva logo por seu
desafeto, aquele que conseguiu ganhar antes dela a feição de Griffith.
Ao lhe desferir todas as suas magoas e se permitir conversar
com Guts abertamente, ambos começam a sentir um ao outro emocionalmente. Como
Guts que começara a questionar sobre seus objetivos e sonhos com Griffith,
Caska começa a se questionar se seus objetivos ("Eu desejo apenas
protegê-lo e me tornar sua espada...") não são pequenos demais.
Uma cena que define bem este momento onde ela se encontra divida, é quando
Guts, cercado por 100 homens, a diz para fugir de volta para o seu dono (Griffith), e ela lhe lança um olhar de
que já não está tão certa disto. Portanto, toda essa sequência consegue
sintetizar com maestria este despertar de Caska, e de Guts, que será essencial
para a queda do Bando do Falcão e para a quebra de Griffith.
Inclusive, ainda nas intensas primeiras meia hora de filme, é
onde ocorre uma das cenas mais famosas de Berserk, onde Guts ganha a sua fama
ao derrotar sozinho um exercito de 100 homens. É uma sequência alucinante, se
dividindo entre Caska com toda a sua febre tentando fugir e sendo perseguida, e
Guts, bradando sua espada. Bersek tem em suas sequências de ação recheado de
corpos sendo fatiados e sangue espirrando na tela, aquilo que falta em AfroSamurai; Tensão dramática. Um drama que convença e atitudes que dê peso para
tais sequências, como um anti-herói overpower
como Guts que ainda consegue fazer você se importar e torcer para sua
vitória. É angustiante vê-lo quase perdendo a consciência em meio a tantos
homens (assim como também é inquietante
a possibilidade de Caska ser pega e estuprada), enquanto acompanhamos o
personagem se questionando em um envolvente monologo interno. Apesar da
construção mal orquestrada do filme anterior, ainda é perceptível que Guts é um
mercenário que viaja sem rumo ou proposito, balançando sua espada em lutas impiedosas
a fim de viver mais um dia (e os
diálogos de Griffith, como os do segundo paragrafo, conseguem fazer um belo
paralelo sobre essa sua condição).
Sua batalha solitária, que na verdade era mais contra si
mesmo do que contra todos aqueles homens, conseguiu ser lancinante ao
representar em mise-en-scène a lenda dos berserks nórdicos, ao qual Berserk se
inspirou em parte na construção de seu mundo, que chegavam mais e mais perto da
morte e urravam vitoriosamente a cada morte, para talvez se sentirem vivos. Há
estudiosos que, a despeito de sua existência ou não, defendem toda a frenesi
dos berserkers e em consequência, o seu sucesso perante as batalhas, vindo de
causas puramente psicológicas. É a interpretação mais interessante e que melhor
se emparelha com a história de Guts.
A arma mais usada por estes guerreiros era o machado, uma
arma somente de ataque e sem defesa operacional, como a espada. Um soldado na
frente de batalha, sem nenhum tipo de proteção (armadura ou escudo), gritando, urrando,
dançando e atirando o próprio corpo contra os inimigos sem nenhum medo, causa
um efeito psicológico devastador: é a agressão em estado puro, terrivelmente
assustadora, opressiva. Esse estilo suicida extremista fez os berserkers
entrarem para a história da guerra. É o paralelo existente com o Bando do
Falcão, sendo Griffith, o deus viking Odin ao qual juraram fidelidade. A ascensão
do bando na sangrenta batalha de Doldrey é o que melhor exemplifica este
referencial no longa, ao lado da batalha solitária e externamente silenciosa de
Guts.
Ele se esforça para escapar de sua natureza, a de um homem
que nasceu a partir de um corpo morto, já entre este mundo e o outro, sem nada
a perder, exceto sua vida miserável; "O que eu estou fazendo
aqui...Arriscando a minha vida...Em um lugar desses...Qual o sentido...".
O despertar de Guts é silencioso, mas não se dá de uma hora outra para outra.
Ele chegou como um animal selvagem (como
visto no filme anterior) ao Bando dos Falcões, e se tornando posse do deus
viking Odin, digo, de Griffith, ele descobriu o significado do companheirismo e
como se fosse uma criatura de frene para a serpente, aqui representado pela
ambição sem limites de Griffith, se torna conhecedor da ‘verdade’ e passa a se
questionar. Este momento da luta de Guts contra 100 homens é muito mais sobre
ele, do que sobre violência desmedida, embora quem assista só possa ficar
extasiado com tanto testosterona. É extasiante, sem dúvidas. A partida de Guts,
após a pessoa ao qual jurou fidelidade alcançar seus objetivos, nada mais foi
que a consequência.
Assim como a consequente quebra de Griffith ao perder sua
criatura, e mais do que isso; o homem a quem ama, resultando na embasbacante
queda do Bando dos Falcões, que deflagrará dicotomia mais clássica da série:
Humanidade, força bruta versus
personificação do mal, magia. Ao lado dos primeiros 30 minutos, e a cena do
baile com toda a aristocracia, a sequência do encontro de um Griffith perdido e
desorientado com Charlotte é sem dúvidas uma das 3 melhores do filme (talvez devesse acrescentar o encontro emblemático
de Griffith com o homem que manteve relações sexuais, responsável por
evidenciar ainda mais sua latente ambição, não importando os métodos que pudesse
usar para alcançar seus objetivos. Lembrando que a homossexualidade era bem comum na idade média, principalmente entre os nobres. Disse se pode tirar a justificativa plausível para o estupro de Guts na infância, apesar de estupro masculino ser algo que continua em evidência mesmo na sociedade atual, principalmente envolvendo crianças). Não, não falo isso porque causa da cena
de sexo em si, e sim como tudo se desenrola com desenvoltura, tanto no que diz
respeito à direção, como em qualidade de animação, e porque não, a cena de sexo
entre eles é sim uma das melhores, mais sombrias e excitantes que já pude ver
em animes. Embora a reação de Charlotte ao ser tateada nos seios por Griffith
seja involuntariamente cômico (confesso
que ri loucamente), o sexo entre eles é artisticamente sombrio,
principalmente quando podemos ver nos enquadramentos as feições de Griffith em
um estado de fúria e angustia (que
apesar de sua face inexpressiva, possui um olhar aterrador) que projeta através
de seu pênis em Charlotte, toda a sua fúria e dor por ter sido abandonado. E
claro, é convincente como erotismo, sem soar piegas. A bela peça de violinos
composta por Shiro Sagisu adiciona à esta sequência uma atmosfera penetrante
com as ações e tensões emocionais de Griffith, culminando com a cena
assustadora dele em posição fetal na beira do leito. Note os arranhões que
Charlotte deixa em sua pele representando sua imunidade à dor física e
exaltando sua dor psicológica. Sublime.
Méritos da direção, eficaz nos enquadramentos e cortes
pontuais, além do uso da trilha sonora. É empolgação, é angustia, torcida, é o
filme conseguir te envolver a tal ponto, de você se sentir parte daquilo. Este
sentimento de pura diversão e de se sentir vibrando ao assistir um bom
entretenimento, que faz de Berserk Golden Age Arc II: The Battle for Doldrey, superior
ao antecessor. Observe que este longa teve uma direção cinematográfica, perceptível
principalmente em todo o layout do baile e como a câmera se projeta no solão,
dando mais graciosidade e classe aos passos de dança, que aliás evidenciou uma
Caska estonteantemente linda ao lado de Guts (e aqui já se torna mais obvio o vinculo silencioso que se constrói
entre eles durante toda a execução. Vínculos que ganham força nas
subjetividades; Como ao perceberem que possuem mais em comum do que imaginavam,
ou felicidade genuína esboçada por Caska ao ter sua beleza elogiada por Guts).
Outro momento tão bom quanto, é o posicionamento e angulações na batalha de Doldrey.
Quando a câmera começa a abrir passagem entre todos aqueles homens, era como
assistir realmente um épico. Claro que falta um refinamento, principalmente na
ação e embates físicos, ainda assim se mostra bem criativa.
São diversos momentos onde é fácil perceber um excelente uso
de câmera, enquadramentos e uma cenografia que não se vê geralmente em animações,
fora as de grande orçamento, que só foi possível pelo uso intensivo de 2DCG, ou
melhor, de CGI. É algo que não se percebe nem na série de tv de 1997, porque tornaria
o custo exorbitante. Para manter o padrão deste longa, de movimentações à
enquadramentos, com uma animação tradicional e poucos CG’s, seria necessário o
tempo médio que um filme da franquia Evangelion leva para ficar pronto e um
orçamento ainda acima deste. A realidade é que o [mal] uso de cell-shading
ainda dói às vistas, mas houve uma ligeira melhoria; A captura de movimentos
está mais dinâmica, as cenas minimalistas de rostos, expressões, mãos e etc.
estão bem melhores durante o uso de CG – Em muitos momentos ainda se sente a
falta de naturalidade, no entanto sem o efeito bizarro que o filme anterior
provocava. A fusão nas cenas do 2D com o CG se mostra mais acentuada e com uma
renderização sutilmente melhor – O que dá para concluir com este filme, é que
se não fosse a pressão das produtoras em cima da staff do Studio 4°C para
concluir a trilogia num espaço absurdo de 12 meses, certamente a reduzida
equipe teria possibilidades de fazer um trabalho bem melhor. Nota-se um
trabalho mais criativo aqui, como o uso de câmera lenta, distorções de vozes,
como na batalha de Guts em que ele estava quase perdendo a consciência,
texturas, e alguns momentos onde os rostos desenhados à mão se mostram
belíssimos. Entre esses, o que mais chamou a atenção foi narrativa visual
fragmentada, quase que um slow motion, num pesadelo de Caska. O suficiente pra
passar a mensagem e se assemelhar visualmente com um sonho meio embaçado e
sufocante.
É um filme, ainda que bastante resumido, que consegue trazer
substância e evocar o sentimento de uma saga épica. E para tanto, as
composições de Shiro Sagisu desempenham um papel tão importante, quanto o do
roteiro. Sua trilha sonora é envolvente, impactante, subjetiva e consegue
evocar aquela áurea de um grande épico, em faixas poderosíssimas como “MoreDeath and Silence 2”; um coral de vozes, violinos rítmicos e órgão. E o que
dizer da melancólica “Suite_Larmes De Tristesse” em um solo enlouquecedor de
violinos? Ou mesmo “Suite Blood And Guts”,
que fecha o filme com dedilhados de violão, bem introspectiva e ao longo de sua
execução, vai ganhando contornos de marcha, com instrumentos de percussão, de
sopro, violinos. Berserk Golden Age Arc II: The Battle for Doldrey abre com
louvor o desfecho da trilogia, indo um pouco além do que foi a série de tv,
apresentando nudez sem censura, violência e uma narrativa visceral. Talvez não
seja tão atraente para os fãs da série original, mas é um produto que por si
só, funciona muito bem (o que levou
inclusive, Miura a elogiar a produção, coisa que ele não fez com o primeiro).
Que sirva de lembrete para o próximo capítulo da trilogia que virá, talvez, uma
das animações mais violentas e grotescas, pós anos 90.
Nota: 08/10
Direção: Toshiyuki Kubooka
Roteiro: Ichiro Okouchi
Estúdio: Studio 4°C
Ano: 2012
Tipo: Filme
Duração: 90 Min.
Leia também:
Berserk: Golden Age Arc I - Egg of the King
Curta o Elfen Lied Brasil no Facebook!
Galeria de Imagens
Leia também:
Berserk: Golden Age Arc I - Egg of the King
Curta o Elfen Lied Brasil no Facebook!
***