quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Berserk Golden Age Arc II: The Battle for Doldrey


Denso, absorvente, talvez mais subjetivo do que deveria e com aquele quê de epicidade que Berserk pede, proporcionado por uma ótima trilha sonora.

“Uma vida que busca apenas avançar mais um dia é inaceitável. Um amigo... Para mim...É alguém que não irá seguir o sonho de outro homem. É alguém que escolhe o seu próprio sonho e trabalha por ele... Passando por qualquer um que ficar no caminho, até mesmo eu...Para mim, um amigo é... Alguém que eu possa considerar meu igual.”

Ambiguidade e ambição são duas das palavras que melhor sintetizam a “Era de Ouro” da trilogia de filmes do Stúdio 4ºC – julgarei como um material isolado, como qualquer adaptação deve ser tratada – que resume o arco mais ovacionado da obra máxima de Kentaro Miura. Neste aspecto, Berserk – Ougon Jidai-Hen consegue, ainda que sem uma boa substância no filme anterior, estabelecer uma teia de ligações entre Guts, Caska e Griffith, da ascensão, à queda do Bando do Falcão, culminando nas dicotomias clássicas da obra original.

Embora repleto de nuances e complexos morais, Berserk se constrói em cima de um ambíguo triangulo amoroso. O amor, uma emoção universal que tem sido o paradigma de grande parte das obras criadas desde “Gênesis”, que consegue se colocar acima até mesmo das ambições e despertar os mais terríveis dos sentimentos; entre eles o ódio e a vingança. Estas, as molas propulsoras que desencadeará o eclipse sobre os personagens de Berserk. Um yin-yang visceral. A paixão idealizada de Caska por Griffith; a quem vê como o príncipe que viera lhe salvar no cavalo branco; o amor objetificado deste por Guts; que por sua vez busca encontrar o significado das palavras [que abre o texto] proferidas por aquele que tanto admira.

Berserk Golden Age Arc II tem a seu favor o fato de trabalhar melhor as inter-relações entre o triangulo, um foco minimalista em Caska, uma presença mais forte do Bando do Falcão, trazendo um impacto maior às batalhas – E claro, uma ligeira melhora na parte técnica, favorecendo as batalhas que intercalam os 3 atos do longa-metragem. São 3 atos distintos, que trazem uma progressão com a sutileza que não se via no anterior, com eventos bem amarrados, um inicio, meio e fim poderosos.

A sequência inicial com uma Caska irreconhecível é uma de minhas preferidas em Berserk, revelando uma das melhores características da série: Uma visão crível e visceral sobre a guerra, e não apenas isto, o lado humano . Explorar as fraquezas de uma mulher em meio à mercenários, por mais forte e máscula que seja, enriquece a narrativa. E mais inteligente do que apenas explorar o fato de ser mulher em meio a tantos homens selvagens, é evidenciar a sua feminilidade.  

Assim temos diálogos pontuais como "Então você é a capitã mulher do Bando do Falcão?! Eu não consigo entender por que uma mulher se vestiria como um cavaleiro. Você deve ter ganho este título graças às suas habilidades na cama com o seu chefe, Griffith.O campo de batalha é um local sagrado para os homens, não há lugar para mulheres! Eu, o comandante dos cavaleiros de elite Baleia Azul, Lorde Adon, a farei pagar por isto!" ou quando Guts questiona o motivo de ela ter se deixado encularralar, sem imaginar que ardia em febre e cólicas menstruais.

A sequência logo após de ambos rolarem barranceira abaixo e Caska ficar inconsciente, com Guts tirando suas roupas molhadas e percebendo que ela estava menstruada, consegue ser sensível, madura e com um humor refinado no texto e expressões faciais; "...Então era isso...Ser mulher deve ser difícil...". E se trata de uma longa sequência, cerca de menos de meia hora, onde a cena consegue sintetizar a narrativa dramaticamente em um espaço diegético, sem recorrer ao auxilio de nenhuma trilha sonora. Isso faz com que você tenha uma imersão maior naquele conflito, e todo silencio espaçado entre um diálogo e outro, pareça refletir o interior de Caska e Guts.
Não por acaso, é aqui onde a relação emocional entre ambos é aflorada, fazendo ligações sutis com fatos ocorridos anteriormente, como quando Guts envolve o corpo nu de Caska ao seu em uma belíssima cena, para mantê-la aquecida, nos levando de volta ao momento onde ela fizera o mesmo por ele [sob ordens de Griffith]. Ou quando ela acorda e se enfurece ao mesmo tempo em que também envergonhada [não por ele a ter visto nua, ou tirado sua roupa, mas por tê-la vista em um momento tão delicado, frágil e intimo para toda mulher. Sem dúvidas, quando estamos em período menstrual, é quando ficamos mais fragilizadas e também envergonhadas com a possibilidade de sermos vistas intimamente], começa a desferir objetos e a ofendê-lo. Aqui, suas magoas e frustrações vêm a tona, como o fato de ser constantemente menosprezada por ser uma mulher e estar combatendo numa guerra, assim como ter sido salva logo por seu desafeto, aquele que conseguiu ganhar antes dela a feição de Griffith.

Ao lhe desferir todas as suas magoas e se permitir conversar com Guts abertamente, ambos começam a sentir um ao outro emocionalmente. Como Guts que começara a questionar sobre seus objetivos e sonhos com Griffith, Caska começa a se questionar se seus objetivos ("Eu desejo apenas protegê-lo e me tornar sua espada...") não são pequenos demais. Uma cena que define bem este momento onde ela se encontra divida, é quando Guts, cercado por 100 homens, a diz para fugir de volta para o seu dono (Griffith), e ela lhe lança um olhar de que já não está tão certa disto. Portanto, toda essa sequência consegue sintetizar com maestria este despertar de Caska, e de Guts, que será essencial para a queda do Bando do Falcão e para a quebra de Griffith.

Inclusive, ainda nas intensas primeiras meia hora de filme, é onde ocorre uma das cenas mais famosas de Berserk, onde Guts ganha a sua fama ao derrotar sozinho um exercito de 100 homens. É uma sequência alucinante, se dividindo entre Caska com toda a sua febre tentando fugir e sendo perseguida, e Guts, bradando sua espada. Bersek tem em suas sequências de ação recheado de corpos sendo fatiados e sangue espirrando na tela, aquilo que falta em AfroSamurai; Tensão dramática. Um drama que convença e atitudes que dê peso para tais sequências, como um anti-herói overpower como Guts que ainda consegue fazer você se importar e torcer para sua vitória. É angustiante vê-lo quase perdendo a consciência em meio a tantos homens (assim como também é inquietante a possibilidade de Caska ser pega e estuprada), enquanto acompanhamos o personagem se questionando em um envolvente monologo interno. Apesar da construção mal orquestrada do filme anterior, ainda é perceptível que Guts é um mercenário que viaja sem rumo ou proposito, balançando sua espada em lutas impiedosas a fim de viver mais um dia (e os diálogos de Griffith, como os do segundo paragrafo, conseguem fazer um belo paralelo sobre essa sua condição).
Sua batalha solitária, que na verdade era mais contra si mesmo do que contra todos aqueles homens, conseguiu ser lancinante ao representar em mise-en-scène a lenda dos berserks nórdicos, ao qual Berserk se inspirou em parte na construção de seu mundo, que chegavam mais e mais perto da morte e urravam vitoriosamente a cada morte, para talvez se sentirem vivos. Há estudiosos que, a despeito de sua existência ou não, defendem toda a frenesi dos berserkers e em consequência, o seu sucesso perante as batalhas, vindo de causas puramente psicológicas. É a interpretação mais interessante e que melhor se emparelha com a história de Guts.

A arma mais usada por estes guerreiros era o machado, uma arma somente de ataque e sem defesa operacional, como a espada. Um soldado na frente de batalha, sem nenhum tipo de proteção (armadura ou escudo), gritando, urrando, dançando e atirando o próprio corpo contra os inimigos sem nenhum medo, causa um efeito psicológico devastador: é a agressão em estado puro, terrivelmente assustadora, opressiva. Esse estilo suicida extremista fez os berserkers entrarem para a história da guerra. É o paralelo existente com o Bando do Falcão, sendo Griffith, o deus viking Odin ao qual juraram fidelidade. A ascensão do bando na sangrenta batalha de Doldrey é o que melhor exemplifica este referencial no longa, ao lado da batalha solitária e externamente silenciosa de Guts.

Ele se esforça para escapar de sua natureza, a de um homem que nasceu a partir de um corpo morto, já entre este mundo e o outro, sem nada a perder, exceto sua vida miserável; "O que eu estou fazendo aqui...Arriscando a minha vida...Em um lugar desses...Qual o sentido...". O despertar de Guts é silencioso, mas não se dá de uma hora outra para outra. Ele chegou como um animal selvagem (como visto no filme anterior) ao Bando dos Falcões, e se tornando posse do deus viking Odin, digo, de Griffith, ele descobriu o significado do companheirismo e como se fosse uma criatura de frene para a serpente, aqui representado pela ambição sem limites de Griffith, se torna conhecedor da ‘verdade’ e passa a se questionar. Este momento da luta de Guts contra 100 homens é muito mais sobre ele, do que sobre violência desmedida, embora quem assista só possa ficar extasiado com tanto testosterona. É extasiante, sem dúvidas. A partida de Guts, após a pessoa ao qual jurou fidelidade alcançar seus objetivos, nada mais foi que a consequência.


Assim como a consequente quebra de Griffith ao perder sua criatura, e mais do que isso; o homem a quem ama, resultando na embasbacante queda do Bando dos Falcões, que deflagrará dicotomia mais clássica da série: Humanidade, força bruta versus personificação do mal, magia. Ao lado dos primeiros 30 minutos, e a cena do baile com toda a aristocracia, a sequência do encontro de um Griffith perdido e desorientado com Charlotte é sem dúvidas uma das 3 melhores do filme (talvez devesse acrescentar o encontro emblemático de Griffith com o homem que manteve relações sexuais, responsável por evidenciar ainda mais sua latente ambição, não importando os métodos que pudesse usar para alcançar seus objetivos. Lembrando que a homossexualidade era bem comum na idade média, principalmente entre os nobres. Disse se pode tirar a justificativa plausível para o estupro de Guts na infância, apesar de estupro masculino ser algo que continua em evidência mesmo na sociedade atual, principalmente envolvendo crianças). Não, não falo isso porque causa da cena de sexo em si, e sim como tudo se desenrola com desenvoltura, tanto no que diz respeito à direção, como em qualidade de animação, e porque não, a cena de sexo entre eles é sim uma das melhores, mais sombrias e excitantes que já pude ver em animes. Embora a reação de Charlotte ao ser tateada nos seios por Griffith seja involuntariamente cômico (confesso que ri loucamente), o sexo entre eles é artisticamente sombrio, principalmente quando podemos ver nos enquadramentos as feições de Griffith em um estado de fúria e angustia (que apesar de sua face inexpressiva, possui um olhar aterrador) que projeta através de seu pênis em Charlotte, toda a sua fúria e dor por ter sido abandonado. E claro, é convincente como erotismo, sem soar piegas. A bela peça de violinos composta por Shiro Sagisu adiciona à esta sequência uma atmosfera penetrante com as ações e tensões emocionais de Griffith, culminando com a cena assustadora dele em posição fetal na beira do leito. Note os arranhões que Charlotte deixa em sua pele representando sua imunidade à dor física e exaltando sua dor psicológica. Sublime.
Méritos da direção, eficaz nos enquadramentos e cortes pontuais, além do uso da trilha sonora. É empolgação, é angustia, torcida, é o filme conseguir te envolver a tal ponto, de você se sentir parte daquilo. Este sentimento de pura diversão e de se sentir vibrando ao assistir um bom entretenimento, que faz de Berserk Golden Age Arc II: The Battle for Doldrey, superior ao antecessor. Observe que este longa teve uma direção cinematográfica, perceptível principalmente em todo o layout do baile e como a câmera se projeta no solão, dando mais graciosidade e classe aos passos de dança, que aliás evidenciou uma Caska estonteantemente linda ao lado de Guts (e aqui já se torna mais obvio o vinculo silencioso que se constrói entre eles durante toda a execução. Vínculos que ganham força nas subjetividades; Como ao perceberem que possuem mais em comum do que imaginavam, ou felicidade genuína esboçada por Caska ao ter sua beleza elogiada por Guts). Outro momento tão bom quanto, é o posicionamento e angulações na batalha de Doldrey. Quando a câmera começa a abrir passagem entre todos aqueles homens, era como assistir realmente um épico. Claro que falta um refinamento, principalmente na ação e embates físicos, ainda assim se mostra bem criativa.

São diversos momentos onde é fácil perceber um excelente uso de câmera, enquadramentos e uma cenografia que não se vê geralmente em animações, fora as de grande orçamento, que só foi possível pelo uso intensivo de 2DCG, ou melhor, de CGI. É algo que não se percebe nem na série de tv de 1997, porque tornaria o custo exorbitante. Para manter o padrão deste longa, de movimentações à enquadramentos, com uma animação tradicional e poucos CG’s, seria necessário o tempo médio que um filme da franquia Evangelion leva para ficar pronto e um orçamento ainda acima deste. A realidade é que o [mal] uso de cell-shading ainda dói às vistas, mas houve uma ligeira melhoria; A captura de movimentos está mais dinâmica, as cenas minimalistas de rostos, expressões, mãos e etc. estão bem melhores durante o uso de CG – Em muitos momentos ainda se sente a falta de naturalidade, no entanto sem o efeito bizarro que o filme anterior provocava. A fusão nas cenas do 2D com o CG se mostra mais acentuada e com uma renderização sutilmente melhor – O que dá para concluir com este filme, é que se não fosse a pressão das produtoras em cima da staff do Studio 4°C para concluir a trilogia num espaço absurdo de 12 meses, certamente a reduzida equipe teria possibilidades de fazer um trabalho bem melhor. Nota-se um trabalho mais criativo aqui, como o uso de câmera lenta, distorções de vozes, como na batalha de Guts em que ele estava quase perdendo a consciência, texturas, e alguns momentos onde os rostos desenhados à mão se mostram belíssimos. Entre esses, o que mais chamou a atenção foi narrativa visual fragmentada, quase que um slow motion, num pesadelo de Caska. O suficiente pra passar a mensagem e se assemelhar visualmente com um sonho meio embaçado e sufocante.


É um filme, ainda que bastante resumido, que consegue trazer substância e evocar o sentimento de uma saga épica. E para tanto, as composições de Shiro Sagisu desempenham um papel tão importante, quanto o do roteiro. Sua trilha sonora é envolvente, impactante, subjetiva e consegue evocar aquela áurea de um grande épico, em faixas poderosíssimas como “MoreDeath and Silence 2”; um coral de vozes, violinos rítmicos e órgão. E o que dizer da melancólica “Suite_Larmes De Tristesse” em um solo enlouquecedor de violinos? Ou mesmo “Suite  Blood And Guts”, que fecha o filme com dedilhados de violão, bem introspectiva e ao longo de sua execução, vai ganhando contornos de marcha, com instrumentos de percussão, de sopro, violinos. Berserk Golden Age Arc II: The Battle for Doldrey abre com louvor o desfecho da trilogia, indo um pouco além do que foi a série de tv, apresentando nudez sem censura, violência e uma narrativa visceral. Talvez não seja tão atraente para os fãs da série original, mas é um produto que por si só, funciona muito bem (o que levou inclusive, Miura a elogiar a produção, coisa que ele não fez com o primeiro). Que sirva de lembrete para o próximo capítulo da trilogia que virá, talvez, uma das animações mais violentas e grotescas, pós anos 90.

Nota: 08/10
Direção: Toshiyuki Kubooka
Roteiro: Ichiro Okouchi
Estúdio: Studio 4°C
Ano: 2012
Tipo: Filme
Duração: 90 Min.

Leia também:
Berserk: Golden Age Arc I - Egg of the King

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