terça-feira, 12 de março de 2013

Yami no Koe: Voices in the Dark – Vozes da Escuridão


E quando o seu lado obscuro começa a falar com você, cada vez mais alto?

Essa foi a primeira coletânea de histórias curtas do Junji Ito que eu li na vida, depois de ler em sequência Uzumaki, Tomie e Gyo. E quão feliz fiquei ao constatar que continua tão atraente na releitura, como na primeira vez.

O aspecto negativo: Você termina querendo mais do mesmo.

O aspecto positivo: Você terá o mais do mesmo, porque a coletânea ganhou, excepcionalmente, uma continuação direta chamada “New Voices in the Dark” (Shin Yami no Koe – Kaidan).

E por que comemorar a continuação de uma antologia que reúne diversas oneshots (histórias de capítulo único que são geralmente serializadas em diversas revistas de mangás)? Quem já leu essas histórias curtas de Ito respeitando a cronologia original, e não apenas lendo de forma avulsa, certamente já deve ter percebido que cada coletânea possui uma temática. Isto acontece porque ao contrário de alguns mangakás que criam algumas coletâneas em diversas revistas e depois de... hm... alguns bons anos enfim lançam todas essas histórias em um tanko (1 volume de mangá com a compilação de diversos capítulos lançado nas revistas), o Ito serializa essas histórias já pensando numa compilação que será lançado assim que houver capítulos suficientes – Algo usual para artistas que trabalham com oneshots.

Em “Voices in the Dark” (Yami no Koe), a temática é superstições, e Ito desenvolve isso com a maestria costumeira, dando vida à histórias que fogem da racionalidade. Yami no Koe é literalmente “Vozes da Escuridão”; fazendo uma métrica perfeita entre título e teor da história. São seus maiores medos e receios se tornando audíveis em um nível em que aquilo que você tanto teme, começa a ganhar forma na sua frente.


Inclusive já cheguei a comentar em um post enciclopédico sobre horror, em como no Japão o terror está intimamente interligado ao fantasma do karma. Em “Os Enraizados”, temos um bom exemplo do que se entende como Karma; de que certos tipos de ação nos leva inevitavelmente à resultados similares, que para todo mal feito, você será punido, mesmo depois de morto. “Os Enraizados” é a sexta história e trás um Junji Ito mais direto e filosófico, fazendo algo que foge do seu padrão: Dar respostas aos mistérios. Sem dúvidas, uma das melhores e mais surpreendentes histórias de Ito-sensei, ao tratar [spoiler crucial que desvenda o mistério da história dos enraizados, selecione pra ler >>]de crimes chocantes com sua devida punição. Não importa o quão perfeito tenha sido o seu crime e você ter saído ileso da justiça mundana, aquela sombra vai ter perseguir, você estará ligado à ela por toda a vida. É pungente e tocante.

O que isso tem a ver com superstição? O próprio karma e a ideia de que será punido no campo espiritual, e que tais forças possuem influência de maneira transcendental a sua vida, é algo definido como pura superstição.

Da mesma forma, a última história; “Homem Morto Falando”, traz a consequências do ato de não perdoar o próximo, com uma família que fora devastada por um bando de arruaceiros, sendo atormentada pelo espirito de um deles, que estando no corredor da morte, aparece continuamente para os que conseguiram sobreviver, implorando por seu perdão.

“Voices in the Dark” é uma das coletâneas mais originais de Ito, tem aquele toque fantástico que já nos acostumamos, porém com um ingrediente mais denso e com aquela mesma melancolia que se faz presente no desfecho de Gyo. A exceção seria a quarta história; “O Segredo da Mansão Assombrada”, que tem toda aquela coisa fantástica sobre o desconhecido, das figuras assombrosamente toscas, além daquela climática de divertidamente terror. Inclusive, essa é a primeira aparição do personagem Soichi, que de tão carismático, se tornaria uma figura recorrente nas obras de Ito.

Mas num geral, em histórias como “O Urro das Eras”, é Ito indo além do horror grotesco e do terror, para evidenciar um aspecto mais humano e melancólico.

Satoshi Kon (Perfect Blue, Paprika) se sentia um plagiador por tirar de seus sonhos e pesadelos, muito das sequências espetaculares que vemos em suas produções. Kazuo Umezu pegou seus medos de infância e as histórias assustadoras que ouvia dos mais velhos, e transformou em séries aterrorizantes. Já Alfred Hitchcock, achava que para fazer um bom suspense, a pessoa por trás tinha que usar suas experiências pessoais, seus medos, seus pesadelos, sua covardia, e por tolerar tão pouco as coisas assustadoras e ser um convicto covarde, a prazerosa sensação que se tem ao despertar de um pesadelo.

Estou comentando isso porque não é diferente para o Ito, neste que parecer ser o ponto em comum entre todos os melhores criadores do gênero. Ito-sensei diz nos free talks nunca ter sido um cara muito alegre, que “Voices in the Dark” era resultado de memorias infelizes, onde ele exibia um humor desoladamente deslocado. Ito se mostra uma pessoa de muitos complexos, e isso influencia diretamente as suas histórias. Em “New Voices in the Dark”, ele comenta sobre seus complexos de envelhecer e sua enorme vontade de viver e se aperfeiçoar cada vez mais. Como consequência, cria diversas histórias sobre a busca incansável pela vida eterna, a beleza da juventude, o fascínio pelo espelho – A busca pela perfeição é um dos aspectos mais notáveis nas suas histórias, algo que começou lá atrás com Tomie.

Quadrinhos, assim como a música, as pinturas, a literatura, tem esse poder de externar muitos dos conflitos internos de seus criadores, ainda que inconscientemente. De dar asas e formas à seus monstros interiores. Talvez por isso as feras contidas e soltas em páginas de nanquim, geram tanto fascínio; até mesmo em suas presas naturais.


A quinta história, “Glicerídeo”, merece estar presente num hipotético top 10 de Ito, como um de seus contos mais notáveis.  É repugnante, claustrofóbico, é tão...nojento! Aquelas espinhas, cara, são de arrepiar! É uma história que fala essencialmente sobre o desconforto que se sente dentro de sua própria casa, junto de sua família, com o lar se tornando um ambiente sufocante, com você só se sentindo livre realmente, quando está longe deste local que deveria ser o seu porto seguro. É uma metáfora incrível. Inclusive, essa coletânea está repleta delas, como no agridoce e misterioso “Urro das Eras”, que traz em seu subtexto, a ideia de que as pessoas que nos são preciosas estarão sempre conosco, até o dia em que chegar a nossa vez de partir.

Pra contrabalancear, “Fantasmas do Horário Nobre” e “O Escuro Bebe Sangue” pontuam por baixo, mas igualmente atraentes. O primeiro é sobre a manipulação das audiências (será que fulano realmente fez um pacto com o demônio para fazer sucesso?), e o segundo é basicamente uma releitura de “A Colmeia” [uma história da coletânea “Flesh Colored Horror”], dessa vez com morcegos – Novamente, traz à tona a busca desenfreada pela perfeição e o tormento que essas pessoas enfrentam mesmo quando fecham os olhos para dormir.

Bom, eu acabei me empolgando e destacando apenas “Voices in the Dark”. Tudo bem, reservarei “New Voices in the Dark” para um outro [possível] post. Falar de Junti Ito é sempre motivador. Quando não estou muito legal, suas histórias costumam ser sempre uma ótima distração. Meio paradoxal, mas é como o efeito reverso que músicas tristes provocam, afinal, às vezes o melhor antídoto para veneno, é próprio veneno. É assim que eu faço quando o meu lado obscuro fica latente. 

Nota: 07/10
Ano: 2002
Autor: Junji Ito
Editora: Asaha Sonorama
Revista: Nemuki
Demográfico: Josei
Licenciado: Em inglês

Leia Também:
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-O Estranho Mundo de Junji Ito
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