Você gosta do cheiro dos livros? O tratam com carinho? Lhes fazem caricias? Gosta de sentir a gramatura de cada pagina os dedos? Aquele barulhinho de spleash? Então você é um apaixonado por livros.
O Mistério é um dos gêneros mais consumidos do mundo e desde que fora introduzido no Japão durante a Era Meiji (1868-1912) quando este se abriu para o mundo, é um dos mais consumidos por lá ao lado da ficção cientifica. As histórias de Mistério fazem parte do cotidiano japonês e isto se nota claramente pela quantidade de conteúdos gerados e adaptados todos os anos para os diversos públicos alvos. Um gênero tão apreciado que um dos tipos de histórias de Mistério mais populares por lá são os mistérios cotidianos que colocam pessoas comuns, como eu e você, no centro da história, desempenhando o papel de detetives. Lá, inclusive, este é um subgênero próprio: nichijou no nazo. A mesma estrutura de, por exemplo, do anime Hyouka, de casos simples, até banais, mas com certa engenhosidade na execução.
Biblia Koshodou no Jiken Techou (algo como ‘Incidentes na Livraria Antiquário Bíblia’) vai mais
além, pois a chave de cada mistério reside nos livros e as histórias que
carregam consigo. Quando você vai a uma biblioteca, já parou pra pensar em
quantas histórias aquelas páginas amareladas tem para contar? Quais mãos
passaram por elas, a relação que mantiveram com aquelas histórias contidas ali,
se aquele livro influenciou em sua vida?
Quando mais nova, pegava alguns livros na biblioteca publica de onde morava em seu vasto acervo, muito maior e mais diversificado que os livros da biblioteca de minha escola ou da estante da minha casa e ficava olhando para todas aquelas assinaturas de pessoas pelas quais o livro já tivera sido emprestado. Ficava pensando se gostaram ou se decepcionaram com aquela leitura. Achava desumano quem ousava macular tais páginas com rascunhos e rabiscos.
Biblia Koshodou é um mergulho de cabeça no universo
literário. Nota-se que seu autor, En Mikami, é um apaixonado por livros. Ele
extrai tantas tramas surpreendentes de um pedaço de papel que não fala, de um
modo tão engenhoso e emocional, que só seria possível para alguém com
intimidade com a leitura. Mais do que isso, há uma relação extremamente afetiva
entre o portador e o livro. Há os que são salvos pela literatura. Os que
encontram as respostas para os seus maiores problemas lendo. Paz interior. Em
outros casos, os livros representam uma lembrança afetiva com outra pessoa.
Ai vai um pequeno causo. Dia desses vi o critico de cinema Plablo
Villaça comentando no twitter que comprara um pequeno livro de poesias num sebo
da década de... 1960 (não me lembro
exatamente) por um preço menor que o de um sorvete. Mas que só o comprara
porque tinha uma dedicatória, algo como “obrigado por tudo, vou te amar pra
sempre”. Não é bonito e instigante?
O desempregado Goura Daisuke (Akira), devido a um fato ocorrido em sua infância, sofre fobia de
livros, fazendo o manter distância deles desde a infância. Mas numa dessas
voltas da vida, ele precisa fazer uma visita à Livraria Antiquário Bíblia,
sendo atendido por uma garota franzina e de aparência frágil, que se veste com
recato e demonstra modos tímidos, chamada Shinokawa (Ayame Gouriki). Goura traz consigo uma pilha de obras completas de
Soseki Natsume para vender a livraria, e dentre essas obras, há um livro que
contém uma assinatura. A coleção fora passada para sua mãe após sua avó
bibliófila falecer. Como nem ele e sua mãe leem livros acharam melhor
vende-los. O que Goura e sua mãe queriam saber é se este livro que contém a
assinatura do famoso escritor da Era Meiji, Natsume Souseki, era autentica. O
que valorizaria o valor do livro.
Porém, Shinokawa leva tanto tempo acariciando e namorando o
livro (em uma sequência impagável!!)
que Goura se sente impaciente. O fato é que ela fica completamente imersa no
livro, o que dá um aspecto até divertido à cena, por ele não compreender o que
se passa com ela que mais parece estar em transe. E nós somos levados aos
mesmos questionamentos que ele. Quando Goura está prestes a deixar os livros
com ela e voltar em outra hora, Shonokawa desperta magicamente num modo
impactante e lhe informa que a assinatura foi feita após a morte de Souseki.
A dúvida de Goura está desvendada, mas Shinokawa se mostra
curiosa pelo fato da posição em que a assinatura de Soseki se encontra no livro
implicar que ele é o receptor, e não doador, como a lógica implica. Isso leva
Shinokawa a fazer diversas perguntas à Goura sobre sua avó, datas de
nascimento, casamento, e então parece chegar a uma resposta que não diz à
Goura. Surpreso ele fica ao chegar em casa, falar com sua mãe, e perceber que
todas as deduções da garota estavam certas. Logo se descobre que sua avó havia
tido um caso secreto e essa era a chave do mistério envolvendo as assinaturas
no livro de Natsume Souseki. Perplexo, ele fica fascinado com a lógica dedutiva
de Shinokawa, de chegar às respostas apenas tocando nos livros, que por sua vez
é cativada pela simpatia de Goura, e o convida para trabalhar na loja. A partir
disso, vários incidentes cotidianos envolvendo livros levam Goura a conhecer um
novo mundo e novas pessoas.
A primeira coisa a ser dita sobre Bíblia Koshodou é que os
mistérios são simples, mas a lógica é inacessível ao espectador. Ou seja, você
não será devidamente exposto às pistas vitais para chegar às mesmas conclusões
lógicas de Shinokawa, sendo que o evidenciado é insuficiente para chegar a
qualquer dedução. A narrativa é estrategicamente elipsa. Desse modo, o papel do
espectador, ao contrário do que acontece normalmente, é passivo. Porém, mesmo
com a omissão das engrenagens do mistério, em alguns casos é possível chegar a
uma resposta lógica, embora os porquês se mantenham acessíveis apenas à
Shinokawa. Os pontos positivos é tanto o mistério quanto a sua condução, serem
lógicos.
A estruturação do enredo é similar à de Sherlock Holmes, com
Shinkowa sendo Holmes e Goura o seu companheiro Watson. Shinokawa raramente sai
investigando, este papel é de Goura e outros personagens, que apenas lhes
relatam os fatos ocorridos, juntando todos os pontos. Como no seriado House,
também inspirado na estrutura Sherlockiana, em que para se chegar a um
diagnostico, é preciso que alguém investigue ou lhe atice o raciocínio com
vários pontos de vistas. Devo dizer que adoro essa faceta do Mistério que se
espelha na máxima da Ciência, de que nenhuma resposta surge do nada ou
magicamente, antes de um inventor chegar a uma conclusão inventiva, houve um
longo caminho de estimulação. De certa forma, me lembra um brainstorming.
Contudo, se engana quem pensa que o atrativo da série seja
os mistérios, ai sim seria um problema. Mas não, o tema da série são os livros
e o exercício de criar tramas emblemáticas através de simples livros com suas
páginas amarelas e o que elas têm para contar. Nos 11 episódios da série,
circulam os mais diversos autores, de Edogawa Rampo, passado por Fujiko Fujio,
a Anthony Burgess, autor de Laranja Mecânica. Nessa estruturação das histórias e
suas abordagens de obras clássicas de autores nacionalmente e
internacionalmente consagrados, algo interessante é como o roteiro envolve
autor e obra num contexto cultural da época, relacionando essas
particularidades com os casos que aborda episodicamente. O episódio de Laranja
Mecânica, por exemplo, ou mesmo o dos livros e mangás de Fuiko Fujio, são
relacionados muitas curiosidades de publicação da época em que foram publicados
e isso se torna importante para determinar a urgência da trama ou mesmo sua
resolução.
Entre os vários temas, está a influência positiva ou
negativa de um livro na índole de cada um, até a verdadeira paixão doentia que bibliófilos
sentem pelos livros. Através dos olhos de Goura, vemos e entendemos, mesmo que
não tem tanta intimidade com livros, a paixão que as pessoas nutrem por eles.
Shinokawa, tímida e introvertida, quando é para falar sobre os livros ou
defende-los, se torna a pessoa mais eloquente do mundo, e ela fala com a
propriedade de uma conhecedora do assunto. Este aspecto mais emocional é o que
mais gostei nessa obra. Vai dizer que você, mesmo sendo uma pessoa mais
introvertida socialmente, não sente o corpo queimar e fala com tanta segurança
que assusta a todos ao redor, quando é pra defender aquilo que costa e conhece
profundamente?
Como dorama, traz os problemas clássicos do gênero, como a
interpretação muito afetada ou sem muita expressividade em cena. Felizmente
isso é minimizado ao máximo na composição de cada personagem. Por exemplo, a Ayame
Gouriki mesmo com claras limitações interpretativas, consegue convencer como uma
garota introspectiva e nerd. Akira tem bastante carisma e se sente
completamente à vontade diante das câmeras, não comprometendo em nenhum
momento.
Acho que o que eu mais detesto em doramas é frequentemente o
fato de que os atores ficam perdidos diante das câmeras, não sabendo para onde
olhar ou onde colocar os braços, algo meio travado que são uns trejeitos
típicos de japoneses diante das câmeras, como o clássico “eh!?”. São artistas
que, em sua maioria, são vendidos como atores por suas produtoras para fins de
promoção. Mas é lindo ver como todos os adores de Bíblia são carismáticos e como incorporam os personagens com veracidade, que mesmo com limitações, de um modo geral convencem.
E a série traz também bons interpretes, como Kosuke Suzuki
que faz o afeminado e divertidíssimo Akio Fujinami e Narumi Yasuda como Chieko
Shinokawa, mãe de Shioriko Shinokawa, nossa heroína.
Inclusive, traz ao fundo um interessante conflito entre mãe
e filha, envolvendo justamente essa paixão avassaladora por livros, uma vez que
a mãe de Shinokawa a abandona e desaparece sem deixar vestígios à procura de um
livro extremamente raro. Essas discussões envolvendo até onde é saudável amar
tanto livros está sempre em voga, mas infelizmente é algo que nunca é visto por
outro viés, pela série tratar os livros como uma entidade sagrada digna de
adoração suprema. Então, por mais que seja notável os efeitos negativos, sempre
encontrarão um jeito de justificar aquilo. Como em um episódio em que se
discute a influência negativa de Laranja Mecânica – por um momento, achei que
culminaria numa boa discussão, mas o roteiro subverte minhas expectativas ao
conduzir o tema de modo absorver o livro de qualquer má influência. Claro, o
desfecho se revela em um bom argumento de todo modo, mas a série acaba que
nunca sai de sua zona de conforto.
Enfim, Bíblia no Koshodou é absorvente, principalmente para
quem curte livros. Se os pontos negativos superam os negativos, é algo inerente
a cada um, mas para amantes de livros e boas histórias de mistério cotidiano, é
uma série apaixonante. Se por um lado a narrativa é lenta, por outro, sua
estimulação é excepcional e sólida, apresentando gradualmente os personagens ao
mesmo tempo em que também têm uma história para contar envolvendo livros,
criando uma atmosfera absorvente. O destaque e consenso sem dúvidas ficam para
a direção de fotografias, é simplesmente fabulosa. A produção técnica é incrível e merecia um texto a parte, mas fiquemos por aqui.
Trivia
Em tempo, eu li o pouco que tem a light novel traduzida e os capítulos do mangá disponíveis. Há muitas diferenças entre ambas as mídias, evidentemente. O original é um best-seller que já vendeu milhões de unidades em 4 volumes (ainda em andamento). En Mikami tem uma escrita envolvente e romântica na descrição. Com mais de 30 livros publicados, o motivo do sucesso extremo de algo tão especifico como Biblia se encontra na sua abordagem temática e o fato de ser orientado para o publico maduro. No Japão, há diversas categorias de light novel. A de Bíblia é orientada para o Young Adult, que são jovens acima da faixa dos 18, fisgado a faixa dos 20 a 35 anos. Esse tipo de literatura tem como característica uma escrita mais madura, menos centrada na estrutura otaku das light novels juvenis. Autores como o da série de Durarará, de Tatami Galaxy, geralmente escrevem para esse faixa (o que faz de autores como Nisio Isin, autênticos provocadores, por abordar e descontruírem essas diversas estruturas das light novels). A adaptação de mangá conta 3 volumes em andamento e uma arte caprichosa, mas abordagem menos séria. A protagonista se torna mais moe e menos intocável, por ser retratada de forma mais aberta, carismática e caricata. Ambas adaptação são boas e carregam características de cada mídia. No dorama a linguagem é mais realista e formal, o que fica bem explicitado pelo ótimo look dos personagens.
Nota: 07/10
Episódios: 11
Direção: Hiroaki Matsuyama, Shogo Miyaki
Roteiro: Tomoko Aizawa, Kaeko Hayafune
Produção: Fuji Tv
AsianWiki: http://goo.gl/DsqGzj