Mas então, o que você faria no lugar de Ryuuko se seu corpo
fosse o centro das atenções? Intimidação ou indiferença? Duas mulheres. Duas
formas distintas de se pensar. Ryuuko e Setsuki fizeram todos discutir o tema,
mas o assunto aqui é outro.
"Os homens quando não são forçados a lutar por necessidade, lutam
por ambição."
Niccolo Maquiavel
Ou por pura vingança. Mas será interessante ver Ryuuko ser
descascada e aprofundada, com o simples e genuíno sentimento de vingança dando
lugar a algo mais complexo. Quem sabe? Por hora...
Kill la Kill é uma narrativa tão fragmentada quanto seu
próprio título repleto de analogias e correlações, mas como já comentado,
essencialmente é uma ode aos velhos tempos, ao velhos autores, ao velhos
animes, ao alicerce da atual cultura japonesa.
***
Recato
Esse episódio pode ser dividido em 2 partes distintas que se
complementam. A primeira estava umedecida em um suspense com diversos indícios do
que viria acontecer na segunda parte. Ela torna a compreensão dos atos dos
personagens mais lúcidos à frente. O professor Mikisugi fala sobre Hitler e ascensão
do Terceiro Reich. Satsuki demonstra uma ambição sem limites frente ao poder
absoluto num misto de temor que seus planos de dominação pudessem ser
interrompidos e de rivalização. Se Ryuuko consegue dominar o uniforme, por que
ela não?
É interessante como nos três episódios, o roteiro toca na
tecla do Terceiro Reich, não se resumindo a sociedade distópico, mas um
conceito de dominação mundial. Algumas referências e comentários dos
personagens no episódio passado mais o caráter fascista de Satsuki e as
simbologias deste, faz pensar que os planos dela não se restringem aos limites
da Academia.
Satsuki representa a força opressora. Ryuuko é a força do
povo, vindo de lugar nenhum, do meio da pobreza, apenas com o espirito quente
dos protagonistas shounens dos anos 70. Não poderia este forte desejo de
vingança ser análogo ao desejo dos pobres?
Kill la Kill é a pronuncia para o verbo Kiru (“vestir”, “cortar”). O conceito da história
é sobre a rivalidade entre duas garotas misteriosas que só conhecemos por suas
motivações, onde uma delas tem metade de uma tesoura, que é usada para cortar (e quando essas duas metades se juntarem?).
Ambas vestem uniformes autoconscientes que lhe dão força em troca do sangue de
cada uma. Setsuki veste pela primeira vez o uniforme que simboliza o vestido da
noiva, que por sua vez representa o estado mais puro de uma mulher quando vai
se entregar a um homem. Ao vesti-lo, ela abre mão de sua castidade, simbolizado
pelo sangue que escorre.
Agora, em outra contraparte, Ryuuko discute com o seu
uniforme; “Eu não posso ser vestido por você se eu não beber o seu sangue. (...) Quando você me veste e eu me encaixo a você, é
então que o poder se manifesta”, diz ele. Uma analogia clara ao ato
sexual. Ryuuko sente pudor ao se entregar, exibir seu corpo, sendo que toda a
exposição a que se sujeita é sublinhado como sendo à força/contra a vontade.
Ela não se sente confortável, mas também, quem se sentiria? Setsuko e muitas
outras, mas cada pessoa tem sua própria perspectiva. Enquanto isso Satsuki se
entrega por livre e espontânea vontade e se sente a vontade para apresentar a
melhor performance. Ela não sente rubor
nem pudor, por estar disposta a qualquer coisa para alcançar seus objetivos.
O anime é uma cama da gato! Acho divertido como Kill la Kill
não apenas brinca com diversas possibilidades sobre uma mesma cena ou palavras,
como também desenvolve algo com tantas camadas que cabe diversas visões e
através de detalhes tão pequenos desenvolve seu enredo e personagens. Satsuki
não sente rubor ou pudor porque não acredita que sua pureza e espirito está
sendo manchada pelo simples fato de estar exibindo seu corpo. Seu corpo não diz
nada sobre o que há dentro dela. Ryuuko não pôde se concentrar por estar
desconcertada ao se despudorar fisicamente. Se sente maculada pelo corpo ter se
transformado em objeto sexual (não são
uma, não são duas, nesse episódio mesmo ela questiona o motivo de seu uniforme
ser tão curto). Essa reviravolta é bem calçada, o nome “kamui” (espirito) já diz tudo, o uniforme e
usuária precisam ser um só.
A dualidade entre Ryuuko e Satsuko é impressionante. Elas
rivalizam, se complementam e se motivam. Afinal, é por Ryuuko que Satsuko
desobedece todas as ordens deixadas por seu pai e veste o “vestido de noiva”. E
é pela determinação de Satsuki, que Ryuuko finalmente entende que precisava se
desprender completamente se quisesse alcançar seu objetivo. E poderíamos continuar
com analogias infinitas porque o roteiro de Kill la Kill é uma espuma, mas
fiquemos apenas com o que importa: metaforicamente, Satsuki se entrega para
Ryuuko. Mesmo os nomes de seus uniformes se auto complementam; Junketsu (pureza) e Senketsu (cheiro de sangue).
Ai, olhamos para a ED do anime e vemos Ryuuko admirando um
vestido de noiva em meio a uniformes escolares que se destacam no convívio social.
Hehehe... já tá liberado shippar as duas?
Aliás, descobri no AnimeSuki que esse encerramento é todo uma referência
ao dorama Sukeban Deka, dos anos 80. Até argumento da história é parecido.
Mas a principal mensagem é pureza de Satsuki que alude ao
conceito de pureza ariana (“ariano” que
deriva da palavra arya; “nobre” em sânscrito). Surgiu no século XIX e acolhida
pelo Partido Nazista no XX. Talvez só mais um indício do futuro desta trama. Não
apenas a construção de Satsuki, mas de seu conselho estudantil se assemelha
muito a este conceito. Ouvi dizer que aparecerão outras escolas, que possivelmente
entrarão em guerra... se for, promete ser empolgante.
***
Promiscuidade revela caráter?
Toda essa discussão sobre o fanservice de Kill la Kill e a temática
desse episódio, faz com que seja impossível não falar novamente de Go Nagai.
Todo mundo sabe que o DNA de Kill la Kill é Nagaisquiano,
sendo a grande influência do roteirista Kazuki Nakashima (“(...) Em particular, eu li tudo
de Go Nagai, começando por suas obras de estreia e depois, quando eu estava no
ensino médio o seu trabalho em Devil Man realmente me surpreendeu. Senti que
estava amadurecendo junto com o desenvolvimento do próprio escritor”).
O que há de mais notável sobre Go Nagai é sua crueza e violência
em imagens de formas perversas e disformes num processo imaginativo muito
dinâmico. É impressionante como artistas com artes nem tão refinadas dos anos
60 aos 80, possuem um timing visual impactante.
Mazinger Z. (1972)
é uma de suas obras mais radicais em amostras explicitas de hiper violência e
sexualidade, um dos seus ingredientes mais recorrentes. A ideia de sua criação
teria surgido tão por acaso quanto a de Kill la Kill. Conta-se que um dia Nagai
estava num engarrafamento, e pensou que se pudessem brotar do carro pernas e
braços, poderia passar por todos os outros carros sem maiores problemas.
Isso revela que o colosso mecânico é projeção idealizada da
necessidade da mente humana de encontrar onipotências idealizadas capazes de
confrontar e superar a impotência real. Como os uniformes de Kill la Kill. Como
as mahou shoujo que precisam de uma roupa de transformação para ter poderes. E a roupa recebendo upgrades quando ficam mais
poderosas.
Kill la Kill e Mazinger Z. possuem muito em comum. Também é
uma história de vingança, mas de Go Nagai, que inflou a historia de alusões
sexuais devido a repressão sexual daquela época e as criticas que recebia. Ele
já havia enfrentado problema similar em Harenshi Gakuen (1968), uma história sobre um colégio interno onde os professores e
alunos possuem o hobbie de ficar espiando as calcinhas e peitinhos das alunas.
Obeveamentê gerou muitas polêmicas, os pais protestaram fervorosamente, Nagai
passou a ser encarado como câncer da sociedade e o mangá teve que ser encerrado
mesmo, mas não sem antes dele jogar mais pimenta ainda na ferida aberta de pais
e mestres: a escola foi invadida por um exercito de pais e professores e todos
foram cruelmente massacrados.
Violence Jack (1973)
tem tanta violência e sexo que coloca muito guro aí no chinelo. Kekko Kamen (1974) é a história de uma justiceira
mascarada que pra derrotar os caras maus dá chave de pussy neles! De roupa, só
usa os acessórios [como luva, a mascara, a bota...rs]. Nagai é maluco, suas
histórias são mais ainda e ele peitou toda a sociedade e seus valores
comportamentais.
Mas ele tem muitas faces. Cutie Honey (1973) é um dos seus mangás mais charmosos. Robôs que se combinam; robôs
tribulados; hipersexualização em mangás para crianças; e agora... garotas
mágicas. Antes de Cutie Honey, os mahou shoujo eram exclusivamente para o publico
feminino e sempre com abordagens infantis. Então veio Cutie Honey, um mahou
shoujo voltado para o publico masculino – ou seja, as crianças que compravam ou
assistiam o anime –, o percussor do igualmente clássico Sailor Moon. Foi Cutie
Honey que formou esse enorme filão de mahou shoujo voltados para otakus que
existe hoje.
A protagonista frequente uma escola católica (olha o escarnio) onde todas as alunas
e professoras são lésbicas! A terra é invadida por monstras lésbicas
ameaçadoras! A própria Honey não é uma mahou shoujo convencional, pois não
possui habilidades oriundas de magias. Na verdade ela é uma androide!
A parte boa é agora! Honey está a maior parte do tempo
seminua, com seus decotes salientes e as inimiga! usam roupas fetichistas, mas
ao contrário de uma heroína virginal, Nagai nos dá uma personagem abertamente
sexual que usa sua sexualidade para lutar pelo bem. Ela dança, faz charminho,
conquista, é apaixonante, sem qualquer traço de moralidade ou punição.
Nos 70 a ingenuidade dos mangás de Tezuka sucumbiria a abordagens
mais... digamos, perniciosas. O próprio começou a fazer um filão com heroínas sedutoras,
típicas mulheres fatais. Da tragédia, da insegurança, da repressão fez surgir
uma áurea de experimentação imaginativa que permeou todos os meios artísticos. Cutie
Honey com seu corpinho cheio de curvas e graciosidade era autoconfiante em seu
sexo, se orgulhava do ter sexy appeal, revelando suas formas femininas quase
que dizendo “se eu que sou uma máquina e me orgulho do meu corpo, porque vocês
não se orgulham e se envergonham dos seus?”. O mais interessante, é que apesar
da sexualização obvia, Honey tinha personalidade e um poder que a deixava praticamente
imponente.
Sailor Moon tem como duas grandes inspirações os Super
Sentai e Cutie Honey. Sailor Moon foi vendido para uma audiência mista, há
coisas controversas na série, mas também há emancipação feminina. Cada obra
representa o espirito da sua época. Hoje Cutie Honey seria apenas gratuito, mas
no passado teve seu papel de destaque como avant-garde. Há um episódio de
Sailor Moon que um vilão pergunta para a Sailor Moon e para Chibi-Usa se elas
não se envergonham de usarem saias tão curtinhas. A Chibi então responde
sinceramente e sem qualquer pudor que... não.
***
Kill la Kill satiria, parodia e rende homenagens ao que veio
antes. A mensagem do episódio é essencialmente esta, de que não há porque se
envergonhar de estar exibindo o seu corpo. Um reflexo de Cutie Honey. Isso cabe
mais discussão, mas não aqui. Chega.
Como curiosidade, só gostaria de acrescentar que foi Cutie
Honey quem trouxe as transformações em que as personagens ficam nuas durante a
metamorfose. Que se seguiu com Sailor Moon e...
O gênero mahou shoujo já foi reiventado várias vezes. Cutie
Honey, Sailor Moon, Magic Knight Rayearth, Shoujo Kakumei Utena e o atual,
Madoka Mágica – apenas citando os mais expressivos. Mesmo Kill la Kill, como
não poderia deixar de ser, tem um quê muito forte de magical girl subvertido
que segue de perto o caminho deixado por Utena. Então quando Kill la Kill diz
que não há porque Ryuuko se envergonhar, é olhando as bravas guerreiras lá
atrás que não se preocupam em expor seus corpos para salvar o mundo e a elas
mesmo diversas vezes.
E eu gostaria de dizer que eu amo a Mako!!!!!!
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