Vamos falar daquilo que molda a sua aparência e a relação conturbada que a linguagem das roupas tem com o corpo.
Continuando o tópico do post anterior (KILL la KILL: Fascismo Alienígena), a idiossincrasia de Kill la Kill é algo notável e em
particular, o comportamento dos personagens quanto ao corpo e suas vestes
sempre foi algo que me despertou particular atenção. A começar por sua ambivalência em torno de
algumas palavras, uma jogada muito sacana de Imaishi e Nakashima (diretor e roteirista), como a palavra ‘moda’
(Fashhon) que pode ser pronunciada
em japonês com a mesma pronuncia de ‘fascismo’ (Fassho), ‘kiru’ que em japa tanto pode significar ‘matar/cortar’ (dando um significado especial à tesoura
dentro da história e o mistério – já elucidado – em torno de si, que
primeiramente levou à morte um ente querido de Ryuuko, entrelaçando-a em
acontecimentos espirais, que “coincidentemente”, revelariam muito sobre ela
mesma, que por fim, toma consciência da sua existência e provavelmente cortará
o fio vermelho do destino com essa própria tesoura) como ‘vestir’ e o obvio
ensejo da palavra seifuku e seu dualismo entre a palavra ‘uniforme’ e ‘dominação
mundial’.
Bom, já comentei sobre isso, aqui (KILL la KILL: O Poder do Uniforme Escolar) e aqui (KILL la KILL – Sexualidade Reprimida). O
uniforme militar possui uma forte representatividade no contexto histórico
japonês após a Segunda Guerra Mundial e sua inerente influência americana, que
moldou definitivamente os rumos do país. Num pequeno país invadido por
militares, em que aquelas figuras ameaçadoras e uniformizadas passaram a fazer
parte do cotidiano – onde até mesmo os uniformes escolares foram remodelados de
modo a assimilarem o militarismo – é natural que não vissem a face de homens,
mas uniformes sencientes (afinal, essa é
a ideia: ter a mesma forma, serem idênticos). Logo, as alusões ao fascismo no
contexto da série, se permitem o uso banalizado da palavra, foi uma epifania genial
do Nakashima (créditos a ele, que conseguiu
pegar um conceito repleto de clichês e previsibilidades que originalmente se
consistiria apenas numa espécie de parodiações do battle shounen e afunilar
substância).
É um assunto atual, que foi atual, e que continuará sendo
enquanto existir humanidade, atemporal. Como diz o ditado popular, a roupa é a nossa
segunda pele. Na evolução do estado primata para o socializado, as roupas
passaram a remeter a indumentárias especificas que estabelecidas pelo código
social, pune com rigidez aquele que não segue a etiqueta social imposta pelo
novo estado.
Eu só escrevi esse texto por causa dessa imagem da Christa, à esquerda. Na época, até escrevi algo sobre de tão apaixonada que fiquei pela imagem e sua expressão, e nem acredito que os deixarei ler isso: Eu achei esse vestido da Christa tão maravilhoso, mas apesar
de lindíssima, ela está com uma expressão tão distante. São olhos que evidencia
que seus pensamentos estão distantes, naquele alguém que sabemos quem. O sol
nasce esbelto e se põe poético todos os dias, independente se tem alguém lhe
admirando ou não, as flores nascem e se tornam lindas, morrem alguém as
apanhando ou não. Mas nós queremos ser vistos e admirados. Você se veste com a
melhor roupa, quer estar deslumbrante, apenas para que aquela pessoa possa te
notar e talvez elogiar. É egocêntrico, mas se você quer ser a lua n céu para
enfeitiçar os olhos do ser amado, é sinal de que está apaixonado, e se isso fosse um crime, e se fosse o caso, eu não me importaria de me declarar culpada.
Um tempo atrás, comentando no twitter que desci na portaria
do meu prédio com a mesma roupa que acabara de me levantar – ou seja, naquelas
– um colega comentou do caso de uma conhecida dele, que foi expulsa da padaria
de um bairro nobre por estar usando pijamas. Pode parecer que nunca se discutiu
tanto sobre roupas e gêneros quanto atualmente, mas a cada geração sempre se
discute a relação do sujeito e o modo de se vestir no meio social. Um tempo
atrás explodiu nas redes sociais sobre o caso do funcionário que foi trabalhar de saia porque no prédio era proibido que homens entrassem usando bermudas. Alguns poucos dias antes
disso, estudantes de uma faculdade protestavam a favor do direito de homens
usarem saias sem serem rechaçados socialmente. Nesse ínterim, se esquentou a
discussão em torno dos direitos igualitários nos ambientes de trabalho: no caso
em questão, pede-se a adesão de empresas para aceitarem que os homens possam ir
trabalhar de bermudas, uma vez que as mulheres possuem o direito de irem de
saias. Pode parecer algo novo, mas se no século XIX a bermuda era associada a
garotos, no século seguinte ela passou a ser amplamente adotada por homens
adultos, chegando ao novo milênio com status elevado entre membros da alta
sociedade, não sendo mais associado com exclusividade a homens da classe mais
pobre.
A moda define tendências e explora a identidade do sujeito
através do uso dessa segunda pele. Olhando pelas lentes certas, é perceptível o
quão estreita é a relação entre moda e fascismo, que nos é condicionada desde o
nascimento.
Nas origens do Homem, este buscou na pele de animais um modo
de se proteger contra o frio, de perigos eminentes do cotidiano primitivo e
para fins de caça. No berço da humanidade, as pessoas de castas baixas e
escravos andavam quase ou completamente nus, enquanto as castas mais altas usavam
tecidos bem desenhados e alinhados, de acordo com a estação. Nascia não apenas
o senso estético, mas a segregação de classes sob a ótica dos signos das
indumentárias, que passa a demarcar papéis e lugares sociais [e culturais] (sacerdotes, chefes, guerreiros, nobres,
plebeus, homens, mulheres, burguesia, proletariado, etc).
É como se a roupa tivesse vida própria e impulsionasse a
ambição e criatividade humana desde o momento que pela primeira vez se usou
pele de animais para que seu cheiro de sangue fizesse sua presença passar
despercebida pelas feras, não tardando a descoberta de sua eficácia na proteção
contra o frio. Uma simbionte a partir de então indissociável.
A pele sempre fora associada à indumentária, desenvolvendo
através de pinturas e perfurações diversos signos de uma linguagem que
identifique o sujeito na sociedade. O corpo passa a ser uma tela humana onde
qualquer humor ou ideologia poderia ser expresso. As roupas, a moda, vieram
como um adorno perfeito, uma mascara definidora de personalidades e
teatralidade de arquétipos. A roupa passa a ser uma armadura brindada, uma
concha que te protege da exposição social, sinônimo de poder.
"Os humanos são
seres tão frágeis. Quando estamos nuas assim, o nervosismo domina. Faz
querermos cobrir os nossos corpos nas maravilhas conhecidas como roupas" –
Ragyo
Se você estudou revolução industrial, deve saber como esse
pensamento ficou muito mais imponente depois disto. A moda possui, entre outras
facetas singulares, a busca pela individualidade e a necessidade de integração (a Ryuuko é um bom exemplo neste processo).
É assim que nasceu as tribos urbanas; com roqueiros sentindo a necessidade de
virar as costas para aquele sistema de etiquetas estilísticas e expressando sua
rebeldia e insatisfação com um estilo unicolor e desalinhado, e hippies que simbolizavam sua ideologia contrária à
guerra com roupas simples de branco e algodão. A corrida espacial entre Estados
Unidos e Rússia na década de 1960 que estimularam estilistas a criarem roupas
revolucionárias que provocaram furor na sociedade, com a mistura de tecidos com
fibras sintéticas derivadas do petróleo e design espacial metalizado (imortalizados pelas modelos e artistas da
época). Os anos 1970 que sugiram transitórios no embalo da segunda onda
feminista com as mulheres querendo se vestir iguais aos homens e o surgimento
do estilo unissex. Décadas antes a sociedade ainda passou pela revolução das
cores, onde com as indústrias precisavam fazer com que as pessoas consumissem
mais, e por isso passaram a adotar cores distintas para cada gênero, abortando,
por exemplo, o rosa para garotos e azul para garotas, invertendo os costumes.
O vestir e a moda são intrinsecamente relacionáveis, e tal quais
universais, mutantes e com personalidade própria. Moda e corpo expressam tanto
uma palavra escrita ou uma pintura. Essa sinergia é a responsável por fomentar
o fenômeno da moda e dos costumes culturais, que dita o que você deve ou não
vestir e vai se transformando de acordo com sua posição sociocultural.
Em Kill la Kill, o roteiro tenta jogar com a ideia de que as
pessoas estão sendo escravizadas por esta roupa fascista. A resistência
liderada pelo Nudist Beach defende a ideologia de que os seres humanos só são
verdadeiramente livres quando abnegam de suas vestes. Em determinado episódio,
a alpinista família Mankanshoku tem a chance de subir na vida e passam a ser
completamente dominados pela ambição sem limites, sendo reprovados por Satsuki,
que desde o começo manipula a situação apenas provar seu ponto de vista de que
pessoas são facilmente corrompidas quando recebem poder em suas mãos (os uniformes com Fibras de Vida/Life
Fibers), chegando a oferecer um uniforme para Mako duelar contra Ryuuko,
caso esta quisesse manter seu estilo de vida. Só que a prosperidade cobrou seu
preço com a desunião familiar (a
dificuldade une as pessoas e a abastança lhes traz a necessidade do
individualismo ), e no final, eles renegam o poder oferecido despindo-se
daquelas roupas símbolo da prosperidade e escravismo e saem correndo, agora
livres, felizes e desinibidos.
A moda traz consigo o paradoxo de individualidade e a
necessidade da integração social, assim como a própria sociedade japonesa (Shingeki no Kyojin representa bem essa
dualidade, como aponta este artigo). Ryuuko não consegue se encontrar nem
se sincronizar com Senketsu enquanto não começa a abraçar sua individualidade,
não mais se envergonhando da forma curtíssima que seu uniforme ficava após a
transformação, deixando partes intimas do seu corpo expostas ao voyeurismo. Ela
começa a aceitar sua individualidade, ou seja, que ela é um corpo diferente
naquela comunidade e que, obviamente, chama a atenção dos demais. Ao parar de
se preocupar/envergonhar com suas roupas e a atenção que elas chamavam para si,
Ryuuko consegue se conectar espiritualmente com Senketsu, extraindo o máximo de
poder das Fiber Lifes.
É a mesma disposição de Satsuki, que se centra no seu
objetivo e ignora o carnal. Em ambos os casos, a hiper sexualização objetificada
em Ryuuko e Satsuki quando elas estão vestindo seus uniformes transformados, expõe
o quão nocivo é o condicionamento à simples peças de panos que, cobrem pouco,
mas o suficiente para deixar uma pequena margem de curiosidade com seu design
fetichista. Na evolução da humanidade e das roupas, apenas o corpo desnudo já
não satisfaz mais, as pessoas querem ter suas fantasias estimuladas e as roupas
íntimas passam a ser desenhadas com o intuito de estingar o prazer das zonas
erógenas. E então, quem tá seduzindo é a roupa o corpo que a traja? É uma
relação simbiótica afinal de contas, um corpo estimulante com peças íntimas piegas
pode ter o efeito inverso em alguns, e um corpo que não desperta a libido com
peças sedutoras, também pode ocorrer o oposto do esperado.
Verdadeiramente livres não serão aqueles que independem da
roupa para manter uma vida sexual plenamente ativa e diversificada?
O Japão, depois da influência americana e com as censuras
impostas ao sexo no entretenimento, criou uma indústria soberana do fetiche
sexual, motivo este de, por exemplo, o swimsuit; os próprios uniformes
escolares, o Zettai Ryouiki (que surgiu
com Evangelion), serem algo tão popular por lá na indústria do
entretenimento. Um pedaço de pano que faz toda a diferença e sexualiza mais do
que a simples nudez.
As colegiais, que transformaram e mudaram para sempre a
indústria de consumo japonesa, ainda na década de 1980, transformando o outrora recatado uniforme escolar em um
PRODUTO erotizado que lhes atribuiu a individualidade tão sonhada.
Da revolução industrial até os tempos atuais, as roupas foram
sistematizadas a tal ponto, que elas se tornaram também uma arma para se lutar
contra o sistema. As colegiais japonesas insatisfeitas com a uniformidade, se
rebelaram rasgando, encurtando e mostrando muito, mas sem expor tudo, chocando
a sociedade e atraindo a atenção que tanto desejavam. Os artistas se rebelavam
contra a censura social (esta muito mais
opressiva que a oficial, do governo) com violência e sexualização em materiais
destinados às crianças. O sutiã se torna símbolo de libertação e depois de
opressão; são queimados por mulheres reivindicando direitos iguais. O Pin Up surge
objetificando mulheres e ao mesmo tempo sendo a oportunidade frente ao
descontentamento e impossibilidade de muitas atingirem os ideais impostos pela
moda, sem a ditadura da silhueta perfeita. A partir de então, mulheres de
variados tamanhos robustos puderam exibir sua sensualidade dentro do fenômeno
Pin Up, ainda que causando desconforto social. Por não exigir um corpo perfeito
e representar a libertação de diversos paradigmas, o feminismo se tornou um
forte pilar da cultura e atitude Pin Up.
Pode parecer contraditório, mas como o corpo da mulher
sempre fora sexualizado e até considerado como algo sagrado e casto, ao se
despirem das roupas que escravizam e demarcam papeis hierárquicos, estão
dizendo à sociedade que controlam o próprio corpo, que eles são seus, não bens
da comunidade. O ato de mostrar os seios, símbolo de feminilidade e maternidade
(e que sempre gera controvérsias diversas)
é um gesto de pegar o ícone de mercantilização e exploração feminina e lhe
dar um sentido de revolta e emancipação. A própria sexualização do corpo pode
se tornar uma arma para evidenciar algo que cause repudio em velhos dogmas,
embora essa seja uma palavra constantemente negativada.
Na sociedade civilizada a nudez é ultrajante. Faz-se
necessário o mínimo de roupa que seja. Mas elas logo ganham vida própria,
conferindo poder ao seu portador. No primeiro cour de Kill la Kill, isso é
mostrado com extremismo, e supreendentemente, no segundo cour este tom
desaparece por completo, deixando de focar nos closes ginecológicos para então
conferir um plano amplo no perfil das personagens. Isso não quer dizer que Kill
la Kill é uma série pró-feminismo, como vi alguns afirmando, eu diria que é
muito pelo contrário. A série apenas está trabalhando seu argumento de que
roupas são espécimes alienígenas não naturais ao corpo humano, e que ao
adorná-lo, está ampliando sua capacidade de SER (visto os arquétipos que uma pessoa incorpora e as portas que lhe são
abertas com um simples modo de se trajar), mas também restringindo a sua
liberdade.
Satsuki sente-se desprotegida e frágil ao se desnudar para
sua mãe, aludindo ao aos sentimentos mais primitivos de medo e desconforto, ao passo
que o contato com a sua intimidade é o que lhe propicia um prazer extremo capaz
de restabelecer suas forças internas. Ryuuko enfim atinge o seu pico de
sincronia com Senketsu quando olha para dentro de si mesma pela primeira vez e
encontra o motivo para ser forte e continuar lutando, não no seu eu individual,
mas na integração com aqueles que estavam ao seu lado e que de algum modo
significavam alguma coisa para ela (algo
que valia a pena proteger). Satsuki não tem particularmente algo a
proteger, mas busca honrar a alma daqueles que amou com um golpe de estado
sobre sua mãe, símbolo máximo de alguém que abandonou a humanidade para abraçar
imortalidade das Life Fibers. Agora, tem a chance de se reintegrar ao social.
Essa dicotomia entre a busca pela individualidade e a necessidade da integração
social é um dilema presente no próprio modo de vestir. Você rejeita o que lhe é
imposto pelos padrões sociais, mas também é incapaz de lidar com a solidão,
fazendo com que se encontre em tribos urbanas/grupos que adotem um uniforme que
expresse nos panos a sua ideologia.
No fim das contas, o ser humano condicionado a civilidade
não conseguiria abrir mão das maravilhas da sua revolução tecnológica, e sempre
insatisfeita, vai procurar se expressar com o corpo. Porém, eu acho que a série nos diz sobre a necessidade de
tomar consciência de si mesmo e de determinações internas solidas, para não se
perder na efemeridade das personas impostas pelas roupas. A roupa por si só é
apenas uma peça, um artigo qualquer, se o seu significado não for acompanhado
da substância (o corpo). Assim como as Life Fibers.
Leitura Complementar:
-Sob o Domínio das Colegiais (Shoujo Café)
-O Discurso da Direita em Shingeki no Kyojin (Nihon Go)
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