sábado, 22 de fevereiro de 2014

Tanin no Kao: A Face de Um Outro (1966)

A busca pela própria identidade.Um homem sem rosto só se sente livre na escuridão. Por isso os peixes do mar são tão feios (risos)”.
O que você normalmente faz quando gostou muito de conhecer determinada obra, ou ela simplesmente te chamou atenção por algum motivo? Você vai atrás de outras produzidas pelo mesmo autor. No embalo de The Woman in the Dunes, fui assistir A Face de Um Outro (Tanin no Kao/The Face of Another), dois filmes que, ao lado de Pitfall, compõe uma espécie de trilogia espiritual de obras dirigidas por Hiroshi Teshigahara adaptadas dos romances clássicos de Kobo Abe. Em comum, ambos os longas trazem paradoxos existencialistas que eclodem na mente do homem moderno com relação à liberdade e identidade no meio social. Porém, em comparação com o aclamado The Woman in the Dunes, este tem um apelo bem menor para o entretenimento de primeira camada, ele exige que enxergue a segunda camada para que se torne claro. Ao invés de um enredo repleto de altos e baixos climáticos que mexem com a psique do espectador, aqui Teshigahara trabalha com signos culturais em uma longa narrativa calcada em diálogos que só explode no seu grand finale. E que GRANDE FINAL!, devo eu dizer.

Mas, se trata de um filme que é intrinsecamente japonês. Claro, seus outros filmes também o são, mas A Face de Um Outro fala de um assunto particularmente japonês [ao contrário de The Woman in the Dunes, que é capaz de se comunicar com qualquer pessoa, atemporal], e os diálogos são essenciais para se perceber o quão sedutora é a narrativa visual de Tashigahara e compreender o seu desfecho final. Para isso, é importante absorver cada diálogo como algo além do trivial. É um filme difícil, embora belíssimo, e acho que parte do porque eu não ser tão simpática a ele, é por eu não poder conectar como se deveria. Apesar disso, as atuações maravilhosas, o jogo visual e o texto afiadíssimo, conseguem cativar em diversos momentos.
Após ter o seu rosco completamente queimado em um acidente de trabalho, Okuyama (Tatsuya Nakadai) se esconde por detrás de uma máscara de bandagem, ficando cada vez mais e mais alienado de sua esposa (Machiko Kyo), que demonstra não ter mais interesse em manter relações com ele, ficando sempre a certa distância, embora atenciosa. Essa situação deixa Okuyama inquieto e irritadiço, passando a tratar a ela e aos outros ao seu redor com sarcasmo e grosseira, alienando-se de quase tudo por se sentir humilhado e indesejado.  Hipersensível e magoado com sua esposa e colegas de trabalho, ele se convence de que se tornara um monstro indesejável, procurando o auxilio do dúbio Dr. Hori (Mikijira Hiro) para que pudesse ajuda-lo a se suicidar. Hori, no entanto, recusa e faz uma contra proposta, persuadindo Okuyama a participar de “uma experiência interessante”, com este tendo que usar uma máscara extremamente realista com o formato de rosto de algum desconhecido. Isto daria a Okuyama uma nova vida e a liberdade de ser e fazer o que bem entendesse. Com a condição de que relatasse a Hori, todas as suas experiências a partir de então.
Okuyama abraça com entusiasmo a possibilidade de fazer o que quisesse com uma ficha que estaria sempre limpa. Mas a possibilidade de ser um novo homem passa a entrar em conflito com o desejo intimo de obter de volta o que é seu, sua velha vida de volta. Okuyama a partir de então entra numa perigosa espiral de obsessão ao tramar um plano macabro de se vingar de sua mulher, usando a face de um outro alguém para tê-la de volta. Hori o alerta para o perigo que isto representa para sua mente, de duas almas coexistindo no mesmo corpo, enquanto Okuyama se diverte com a possibilidade de queimar o rosto de sua esposa. Em outra linha narrativa, que contrapõe a de Okuyama, ele afirma para Hori ter visto uma bela jovem no cinema e passa a descrevê-la a partir de sua breve percepção. O que ele não sabe, é que essa bela mulher (Miki Irie) tem metade do seu rosto horrivelmente queimado, como resultado das bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial. Sempre com medo de que ocorra outra guerra e sem conseguir retomar a sua vida, além de constantemente atormentada pelos horrores que viveu, ela toma medidas desesperadas para libertar-se das cicatrizes do passado que nunca irão cicatrizar.

Essas duas histórias trazem dois pontos de vistas sobre o mesmo conflito. A principio, a Face de Um Outro remete ao mangá Fetish [de Kaoru Fujiwara], ao clássico Frankenstein [de Mary Shelly], O Homem Invisível [de H. G. Wells], entre outras tantas histórias que lidam com o conflito da identidade. A Face de Um Outro é uma alegoria sobre a metamorfose e o paradoxal dilema entre um passado trágico difícil de se apagar da mente frente um futuro libertador de infinitas possibilidades, mas que representa a renuncia de suas particularidades.

Já na primeira sequência que abre o filme, Teshigahara tece um belo poema visual num romance entre texto e imagem que se repetiria muitas vezes durante o filme, onde o Dr. Hori manipula membros artificiais de um boneco e se questiona se a mente aceitaria ou rejeitaria a sobreposição da face de um outro. Viver como um monstro ou aceitar uma nova cara, mas será tão fácil fugir daquilo que se é? Muda-se a face, mas as memórias continuam lá. Dr. Hori é bem capaz em realizar todos os tipos de procedimentos de reparos físicos nos corpos de seus pacientes, mas como o mesmo afirma, ele na verdade é um psiquiatra que preenche as lacunas da mente. Já Okuyama representa a psique frágil de um Japão que precisa lidar com mais do que exteriores desfigurados, mas fantasmas persistentes que nunca vão embora.
A Face de Um Outro nasceu de um período de um forte transição japonesa, do seu passado imperialista ao militarismo que lhe rendeu as cicatrizes de Hiroshima e Nagasaki, sucumbindo à pressão e aceitando uma nova face de um outro, e então, tendo que se reconstruir impulsionado pela tecnologia rumo a um futuro mais individualista. Okuyama representa a face instável de um Japão pós-guerra e a perda da sua “face”. Teshigahara foi muito feliz na composição visual, uma característica que eu acho fabuloso para um filme preto e branco. Como no realismo das cenas externas e da casa de Okuyama, em contraste com o surrealismo da clinica do Dr. Hori, evidenciando ali a faceta psíquica do filme, mas que também podemos ver como uma dualidade entre os delírios da mente frente à realidade irredutível. Neste aspecto, também chama atenção a trilha sonora, mostrado a mistura que o diretor faz entre tradição japonesa e modernismo ocidental.

O que dizer então da sequência onde Dr. Hori e Okuyama estão numa cervejaria e este lhe pergunta, se a máscara já o possuiu – mostrando ai uma destreza de câmera orgasmatica em um dos melhores momentos do filme, em que ele alterna entre uma câmera intimista com os dois personagens dialogado ao pé da orelha; demonstrando introspecção, com todos os ruídos ao redor reduzidos, onde as trevas dominam, mas retornando ao som ambiente quando estes passam a tratar de outros assuntos.

Esposa: Eu tinha perguntado: por que as mulheres usam maquiagem?
Okuyama: Bem, para casar com os homens, não (risos)?
Esposa: Está enganado. No Genji Monogatari, se considerava virtuoso cobrir a face. As mulheres só mostram os cabelos longos. O mesmo acontece agora nos países árabes.
Okuyama: As pessoas não são o que parecem.
Esposa: Mas devemos respeitar as aparências
Okuyama: A liberdade é sempre solitária.
Esposa: A maquiagem também é um tipo de máscara.
Esposa: Para ser humilde...
Okuyama: humilde?
Esposa: ...Nenhuma mulher deveria mostrar sua face sem maquiagem.
Okuyama: Esse seu sarcasmo...
A sequência dessa imagem acima é o ponto alto do filme, em que percebemos as muitas máscaras de vergonha que uma pessoa pode criar. É preciso não sentir e a mentira tem que se tornar verdade. É preciso abrir mão da sua vida e individualidade e se tornar uma massa inexpressiva, caso contrário a ferida na face, e consequentemente na alma, se tornará angustiante, e tomados de vergonha (tanto Okuyama, quanto a bela mulher) pelas cicatrizes do corpo e por suas ações humilhantes, é preferível o suicídio à desonra da alma. Dessa forma, A Face de um Outro é uma perfeita analogia ao código samurai, que para muitos, fora o que levou às consequências horripilantes da Segunda Guerra em solo japonês. O que é uma fabula dramática incrível. Principalmente se você pegar, por exemplo, depoimentos de gente como Yoshinobu Nishizaki (criador de Space Battleship Yamato), que comenta ter havido uma fase onde toda a história japonesa fora negada, com as crianças sendo ensinadas que a cultura japonesa havia declinado, assumindo a ideologia do adversário. Para Nishizaki, “eles não tiveram a oportunidade de cultivar seu próprio senso de identidade”. Resta a cada um a decisão se é preferível ou não morrer assumindo sua vergonha, a se negar e viver sob uma mascara, esse embate entre duas formas de pensamento é um dos grandes méritos do filme, que mostra as consequências para cada escolha.

Nota: 8, 5
Direção: Hiroshi Teshigahara
Roteiro: Kobe Abe
Estúdio: Tokyo Film
Duração: 122 Min.

Temas Relacionados:
-O Mundo Descontente de Inio Asano
-Barbara: O Lado Perverso e Doentio da Mente Humana
-Scary Story: Human Clock - Ascensão & Queda dos Mangás de Alugueis
-Journey to the End of the World - Jornada Para o Fim do Mundo




***

Curta o Elfen Lied Brasil no Facebook e nos Siga no Twitter