A busca pela própria identidade.“Um homem sem rosto só se sente livre na escuridão. Por isso
os peixes do mar são tão feios (risos)”.
O que você normalmente faz quando gostou muito de conhecer
determinada obra, ou ela simplesmente te chamou atenção por algum motivo? Você
vai atrás de outras produzidas pelo mesmo autor. No embalo de The Woman in the
Dunes, fui assistir A Face de Um Outro (Tanin
no Kao/The Face of Another), dois filmes que, ao lado de Pitfall, compõe
uma espécie de trilogia espiritual de obras dirigidas por Hiroshi Teshigahara
adaptadas dos romances clássicos de Kobo Abe. Em comum, ambos os longas trazem
paradoxos existencialistas que eclodem na mente do homem moderno com relação à
liberdade e identidade no meio social. Porém, em comparação com o aclamado The
Woman in the Dunes, este tem um apelo bem menor para o entretenimento de
primeira camada, ele exige que enxergue a segunda camada para que se torne
claro. Ao invés de um enredo repleto de altos e baixos climáticos que mexem com
a psique do espectador, aqui Teshigahara trabalha com signos culturais em uma
longa narrativa calcada em diálogos que só explode no seu grand finale. E que GRANDE FINAL!, devo eu dizer.
Mas, se trata de um filme que é intrinsecamente japonês.
Claro, seus outros filmes também o são, mas A Face de Um Outro fala de um
assunto particularmente japonês [ao contrário de The Woman in the Dunes, que é
capaz de se comunicar com qualquer pessoa, atemporal], e os diálogos são
essenciais para se perceber o quão sedutora é a narrativa visual de Tashigahara
e compreender o seu desfecho final. Para isso, é importante absorver cada
diálogo como algo além do trivial. É um filme difícil, embora belíssimo, e acho
que parte do porque eu não ser tão simpática a ele, é por eu não poder conectar
como se deveria. Apesar disso, as atuações maravilhosas, o jogo visual e o
texto afiadíssimo, conseguem cativar em diversos momentos.
Após ter o seu rosco completamente queimado em um acidente
de trabalho, Okuyama (Tatsuya Nakadai)
se esconde por detrás de uma máscara de bandagem, ficando cada vez mais e mais
alienado de sua esposa (Machiko Kyo),
que demonstra não ter mais interesse em manter relações com ele, ficando sempre
a certa distância, embora atenciosa. Essa situação deixa Okuyama inquieto e irritadiço,
passando a tratar a ela e aos outros ao seu redor com sarcasmo e grosseira,
alienando-se de quase tudo por se sentir humilhado e indesejado. Hipersensível e magoado com sua esposa e
colegas de trabalho, ele se convence de que se tornara um monstro indesejável,
procurando o auxilio do dúbio Dr. Hori (Mikijira
Hiro) para que pudesse ajuda-lo a se suicidar. Hori, no entanto, recusa e
faz uma contra proposta, persuadindo Okuyama a participar de “uma experiência
interessante”, com este tendo que usar uma máscara extremamente realista com o
formato de rosto de algum desconhecido. Isto daria a Okuyama uma nova vida e a
liberdade de ser e fazer o que bem entendesse. Com a condição de que relatasse
a Hori, todas as suas experiências a partir de então.
Okuyama abraça com entusiasmo a possibilidade de fazer o que
quisesse com uma ficha que estaria sempre limpa. Mas a possibilidade de ser um
novo homem passa a entrar em conflito com o desejo intimo de obter de volta o
que é seu, sua velha vida de volta. Okuyama a partir de então entra numa
perigosa espiral de obsessão ao tramar um plano macabro de se vingar de sua
mulher, usando a face de um outro alguém
para tê-la de volta. Hori o alerta para o perigo que isto representa para sua
mente, de duas almas coexistindo no mesmo corpo, enquanto Okuyama se diverte
com a possibilidade de queimar o rosto de sua esposa. Em outra linha narrativa,
que contrapõe a de Okuyama, ele afirma para Hori ter visto uma bela jovem no
cinema e passa a descrevê-la a partir de sua breve percepção. O que ele não
sabe, é que essa bela mulher (Miki Irie)
tem metade do seu rosto horrivelmente queimado, como resultado das bombas
atômicas durante a Segunda Guerra Mundial. Sempre com medo de que ocorra outra
guerra e sem conseguir retomar a sua vida, além de constantemente atormentada
pelos horrores que viveu, ela toma medidas desesperadas para libertar-se das
cicatrizes do passado que nunca irão cicatrizar.
Essas duas histórias trazem dois pontos de vistas sobre o
mesmo conflito. A principio, a Face de Um Outro remete ao mangá Fetish [de
Kaoru Fujiwara], ao clássico Frankenstein [de Mary Shelly], O Homem Invisível
[de H. G. Wells], entre outras tantas histórias que lidam com o conflito da
identidade. A Face de Um Outro é uma alegoria sobre a metamorfose e o paradoxal
dilema entre um passado trágico difícil de se apagar da mente frente um futuro
libertador de infinitas possibilidades, mas que representa a renuncia de suas
particularidades.
Já na primeira sequência que abre o filme, Teshigahara tece
um belo poema visual num romance entre texto e imagem que se repetiria muitas
vezes durante o filme, onde o Dr. Hori manipula membros artificiais de um
boneco e se questiona se a mente aceitaria ou rejeitaria a sobreposição da face
de um outro. Viver como um monstro ou aceitar uma nova cara, mas será tão fácil
fugir daquilo que se é? Muda-se a face, mas as memórias continuam lá. Dr. Hori
é bem capaz em realizar todos os tipos de procedimentos de reparos físicos nos
corpos de seus pacientes, mas como o mesmo afirma, ele na verdade é um
psiquiatra que preenche as lacunas da mente. Já Okuyama representa a psique
frágil de um Japão que precisa lidar com mais do que exteriores desfigurados,
mas fantasmas persistentes que nunca vão embora.
A Face de Um Outro nasceu de um período de um forte
transição japonesa, do seu passado imperialista ao militarismo que lhe rendeu
as cicatrizes de Hiroshima e Nagasaki, sucumbindo à pressão e aceitando uma
nova face de um outro, e então, tendo que se reconstruir impulsionado pela tecnologia
rumo a um futuro mais individualista. Okuyama representa a face instável de um
Japão pós-guerra e a perda da sua “face”. Teshigahara foi muito feliz na composição
visual, uma característica que eu acho fabuloso para um filme preto e branco. Como
no realismo das cenas externas e da casa de Okuyama, em contraste com o
surrealismo da clinica do Dr. Hori, evidenciando ali a faceta psíquica do
filme, mas que também podemos ver como uma dualidade entre os delírios da mente
frente à realidade irredutível. Neste aspecto, também chama atenção a trilha
sonora, mostrado a mistura que o diretor faz entre tradição japonesa e
modernismo ocidental.
O que dizer então da sequência onde Dr. Hori e Okuyama estão
numa cervejaria e este lhe pergunta, se a máscara já o possuiu – mostrando ai uma
destreza de câmera orgasmatica em um dos melhores momentos do filme, em que ele
alterna entre uma câmera intimista com os dois personagens dialogado ao pé da
orelha; demonstrando introspecção, com todos os ruídos ao redor reduzidos, onde
as trevas dominam, mas retornando ao som ambiente quando estes passam a tratar
de outros assuntos.
Esposa: Eu tinha perguntado: por que as mulheres usam
maquiagem?
Okuyama: Bem, para casar com os homens, não (risos)?
Esposa: Está enganado. No Genji Monogatari, se considerava
virtuoso cobrir a face. As mulheres só mostram os cabelos longos. O mesmo acontece
agora nos países árabes.
Okuyama: As pessoas não são o que parecem.
Esposa: Mas devemos respeitar as aparências
Okuyama: A liberdade é sempre solitária.
Esposa: A maquiagem também é um tipo de máscara.
Esposa: Para ser humilde...
Okuyama: humilde?
Esposa: ...Nenhuma mulher deveria mostrar sua face sem
maquiagem.
Okuyama: Esse seu sarcasmo...
A sequência dessa imagem acima é o ponto alto do filme, em
que percebemos as muitas máscaras de vergonha que uma pessoa pode criar. É
preciso não sentir e a mentira tem que se tornar verdade. É preciso abrir mão
da sua vida e individualidade e se tornar uma massa inexpressiva, caso
contrário a ferida na face, e consequentemente na alma, se tornará angustiante,
e tomados de vergonha (tanto Okuyama,
quanto a bela mulher) pelas cicatrizes do corpo e por suas ações
humilhantes, é preferível o suicídio à desonra da alma. Dessa forma, A Face de
um Outro é uma perfeita analogia ao código samurai, que para muitos, fora o que
levou às consequências horripilantes da Segunda Guerra em solo japonês. O que é
uma fabula dramática incrível. Principalmente se você pegar, por exemplo,
depoimentos de gente como Yoshinobu Nishizaki (criador de Space Battleship Yamato), que comenta ter havido uma
fase onde toda a história japonesa fora negada, com as crianças sendo ensinadas
que a cultura japonesa havia declinado, assumindo a ideologia do adversário.
Para Nishizaki, “eles não tiveram a oportunidade de cultivar seu próprio senso de
identidade”. Resta a cada um a decisão se é preferível ou não morrer assumindo sua vergonha, a se negar e viver sob uma mascara, esse embate entre duas formas de pensamento é um dos grandes méritos do filme, que mostra as consequências para cada escolha.
Nota: 8, 5
Direção: Hiroshi Teshigahara
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Nota: 8, 5
Roteiro: Kobe Abe
Estúdio: Tokyo Film
Duração: 122 Min.
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