quinta-feira, 5 de junho de 2014

[+18] Tropical Citron ― Psychedelic Witch Story (2001): Estonteante Contracultura Psicodelica

Uma viagem ácida na década perdida.
Se você pensa inadvertidamente que coming-of-age se resume a cenários colegiais, certamente precisa colocar um pouco a cabeça para fora da caixa. Tropical Citron (Netsutai no Citron) é exatamente este tipo de obra que foge do padrão pop japonês para obras sobre amadurecimento. Com uma miríade de referências à contracultura dos anos 1960 que impactou e influenciou o mundo e sua cultura pop a partir de então, esta obra do Jiro Matsumoto traça uma desnorteante e inquietante narrativa multifacetada acerca da identidade.

Na história, acompanhamos um jovem chamado Soma que é aspirante a fotografo e tem como sonho embarcar para o Vietnã para documentar a Guerra. Não há menção em que período se passa a história, mas pelo contexto politico-cultural é certo que se passe em algum momento entre os anos 60 e 70. Um período em que a contracultura estava eclodindo em todo o mundo, as forças militares americanas ainda estava em peso no Japão (o país ainda comporta uma pequena base americana por lá, como uma ferida que forma uma cicatriz que acompanha seu hospedeiro por toda vida), formando um cenário conflituoso com revoltas estudantis e veículos de guerra circulando pela rua. Os jovens recorrem às drogas e ao sexo incontido.
 
 
Soma é pego pelos americanos e não consegue realizar seu sonho de embarcar para o Vietnã. Frustrado, ele faz uso do famoso ácido “sopa pop” e cai em algum beco imundo transando com uma garota que ele não conhece. A partir de então, Soma começa a entrar em estados alterados de consciência, oscilando entre diversas camadas de realidades, fazendo confusão entre o que é real e o que não é real, sonho e realidade, adentrando em diversas camadas alucinógenas; uma dentro da outra em um mise en abyme abismal. Enquanto faz sexo com uma drogada desdentada, ele começa a visualizar o rosto de uma garota de cabelos pretos que nunca vira antes. Mais tarde, um taxi com um motorista com cabeça de cavalo, Soma vai parar numa realidade espelhada que simula o mundo real, mas com elementos sobrenaturais. Um mundo no qual ele não consegue sair. Em determinado momento, Soma vê a linda garota morena (que se chama Mako) que apareceu em suas alucinações; ela foge; ele vai atrás, mas a perde.

Soma acaba por fazer amizade com Mugiko, uma garota que aparenta deficiência mental, e quanto mais tempo ele fica, mais entrelaçado se torna sua relação com as pessoas e conflitos daquele mundo. Chega a um ponto em que o enredo se torna repleto de subtramas e subtextos abstratos enquanto as diversas realidades vão se fundindo entre si e o universo criado pelas drogas se mistura à realidade aparente.

Tropical Citron nos traz uma instigante brincadeira de signos e arquétipos, além de exercícios interessantes de metalinguagens e narrativas visuais enquanto a história em é bastante simples, embora soe complexa e complicada num primeiro olhar devido à forma desfragmentada que é contada. Jiro Matsumoto foi muito feliz ao utilizar essa temática da contracultura, que vai de encontro a tudo o que o autor gosta de retratar em suas obras; sexo, violência, drogas, miséria, guerra, personagens desajustados socialmente, sonhos, ideologias, identidade e a brincadeira entre o que é real e o que não é.
 
 
 
 

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Contracultura

Nos anos 1950, a sociedade pós-guerra não queria saber de outra senão conforto e materialismo, mas os jovens da década de 60 começariam a questionar essa atitude. Contracultura não foi um movimento pensado, mas o nome que se deu ao fenômeno social em que várias pessoas de diversas partes do mundo começaram a questionar os valores tradicionais da sociedade. Ainda que tenha começado com certa inocência na postura rebelde, o confronto iniciado após a Segunda Guerra Mundial entre Estados Unidos e a União Soviética (que se chamaria de Guerra Fria), que financiavam as guerras ao redor do mundo, ajudou a inflamar a revolta coletiva no final da década de 60 que se estenderia pelos anos 70. E ainda que indiretamente, era um conflito que onde uma nação buscava provar para a outra sua superioridade. Em meio a isso, a sociedade mainstream fechava os olhos e se voltava para sua rotina capitalista. Enquanto isso havia uma grande pressão de algumas alas da sociedade sobre qual seria a postura correta diante do conflito, explodindo então a explosão cultural juvenil, influenciando a sociedade como um todo. As pessoas começaram a se rebelar e surgiram mini-revoluções, que se chama de contracultura, que nada mais é que fugir do senso comum, lutar por direitos iguais, contra as guerras, pobreza, etc. É deste cenário, que surge o uso indiscriminado de drogas, o liberalismo feminino e diversos movimentos estudantis.

Por isso que chamam os anos 60 de anos efervescentes, repleto de explosões culturais que refletiam a sociedade. No conflito é de onde surge as inspirações mais criativas para os artistas, ou algo assim. No Japão, sabemos que o país passava por momentos de instabilidade cultural e reformas politicas. Para quem se enfoca mais no aspecto cultural do Japão, é normal que as questões politicas do país acabem ficando relegados a segundos e terceiros planos de interesse, mas politica e cultura estão interligadas intrinsecamente. Da sociedade vem a cultura e também a politica, e ambas se afetam mutualmente. Nos anos 60 e 70 o Japão ainda sentia os eventos de transição com a influência americana e o destino incerto do país, eventos estes que ressoam em protestos em massa em Tokyo e em todo o país. Surgiam movimentos estudantis, passeatas, e reivindicações. Eles buscavam não apenas um modo de vida alternativa, mas autonomia, frustrar a consolidação autoritária do poder, que o estado olhasse para a parcela mais pobre da população que mais sofria com todos estes conflitos e isto influenciou grandemente a arte contracultura japonesa em todas as mídias.

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Psicodelia
Os anos 60 foram a década da convulsão social e da criatividade, mas também das drogas. Foi só uma consequência inevitável dessa efervescência toda que via na química a possibilidade de uma vida melhor. O que é de certo modo soa paradoxal quando se está protestado contra um estado latente de alienação. As drogas psicodélicas, associadas à beleza, glamour, à sensualidade, formam o símbolo da liberdade individual e das experiências comunitárias. Culto ao hedonismo. Como na época tudo convergia para o universo psicodélico, a indústria cultural tratou logo de mercadejar, tendo como publico alvo o jovem – utilizando exatamente da quebra de comportamentos e valores tradicionais para conquista-los.

Originalmente, Psicodelia é oriundo da subcultura de pessoas que utilizavam drogas psicodélicas e criavam artes psicodélicas, surgidas de experiências de consciência alterada, que visavam mostrar para o outro a experiência vivida por aquele artista enquanto fazia uso de tais alucinógenos. Para muitos que usavam drogas, especialmente as alucinógenas, isto era visto como uma estratégia para abrir as portas da percepção. Muitas culturas utilizam isto para penetrar em esferas místicas e religiosas, ou para descobrir novas dimensões. Seja como for, neste período de reivindicações libertárias e a descoberta do seu papel na sociedade, a estética psicodélica atingiu todas as esferas de arte. Exemplo: Ace wo Nerae! – Explosões de Cores!

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Psychedelic Witch Story
(possíveis spoilers)

É neste intrincado contexto que Matsumoto resolve contar a sua história satírica, utilizando de alguns signos subversivos para tecer uma narrativa com linguagem cinematográfica.

A primeira página abre com 3 planos abertos mostrando a lenta descida de três bombas e um quarto plano fechado numa tv que mostra os efeitos devastadores dessa bomba, com sua explosão formando uma nuvem de cogumelos – como uma clara alusão não apenas ao fantasma da bomba atômica no Japão como também ao uso de drogas; no mundo místico, o cogumelo é um meio comunicação com o divino. Essa interpretação surge do fato de que alguns cogumelos possuem essência tóxica e quando em contato com o cérebro leva a sérios sintomas e alucinações (um exemplo é o episódio de Cowboy Bebop onde boa parte dos personagens começam a alucinar quando experimentam um certo cogumelo com substâncias toxicas. Veja: Cowboy Bebop – Episódio 17, Mushroom Samba).
Veja só essa então:
 
 
Desde o interior borbulhante do corpo a toda sequência de transição desses quadros, Matsumoto demonstra um incrível domínio cinético, do qual ele faz uso em diversos momentos da história, utilizando de angulações e enquadramentos inteligentes que dão passam a sensação de se estar assistindo em tela grande. Os enquadramentos e a utilização do preto e do branco para criar atmosfera são incríveis! Fora as fotografias reais de um modo que passam despercebidos por um olhar mais incauto.

Aliás, Matsumoto tem um estilo de arte rebuscada que lembra muito às do Nihei Tsutomu (Knight of Sidonia) e Naoki Yamamoto (Believers). Há quem diga que é um estilo preguiçoso, e realmente, há casos de arte rebuscada que não se pode falar que se trata se um estilo próprio do autor, mas simplesmente deficiência técnica/preguiça. No entanto, no caso de Matsumoto pode se notar que realmente é a performance visual que ele quer alcançar, apesar que em alguns momentos ele delineia as curvas das personagens em um jogo de sombras e nanquim que faz ter vontade de ver uma obra sua somente com esta tamanha polidez.
Ainda assim, seu rebuscado vai de encontra à atmosfera de instabilidade psicológica e nonsense de suas histórias, como se fosse o mundo por uma ótica distorcida. E com um teor tão sujo e subversivo, como o de seus enredos, sua narrativa consegue caminhar no limiar entre o erótico e hentai.

No primeiro volume de Tropical Citron você percebe uma abundância maior de sexo, violência e desorientação, enquanto o segundo volume trata de dar gravidade aos eventos que sucedem e conectar todas as pontas soltas.  É quando realmente se sente que a história tem um proposito bem definido e os personagens brilham.

Se a primeira pagina abre fazendo uma denúncia grave, na segunda página vemos Soma e uma mulher fazendo sexo, indiferentes ao que ocorria na tv.
Mako é uma bruxa aprisionada pela figura de um ditador, que violentou a violentou [quando ainda criança] com aval de sua mãe, tornando-as escravas, enquanto subjugava a cidade (cidade espelhada) que protegiam – que agora está sobre o controle de um déspota.
 
Soma é levado para essa cidade (espelhada, que nada mais é que o reflexo distorcido – pelo sobrenatural – daquele mundo) pelo homem com cara de cavalo, e espera-se que ele consiga fazer o que muitos que foram levados até ali falharam: libertar aquele Estado e seus cidadãos do autoritarismo do ditador. No primeiro momento, Soma lava as mãos e não se vê interessado em intervir em algo que não lhe diz respeito. Enquanto isso, uma cadeia de eventos faz com que seu caminho seja entrecortado com o de 3 garotas rebeldes que lutam pela liberdade daquele mundo e com o de Mugiko, considerada uma louca idiota pelos demais personagens.

Mugiko acaba ganhando a afeição de Soma, e tanto ela quanto Mako, se tornam peças-chaves para o despertar de Soma. Tropical Citron brinca com alguns signos, como na obvia referência ao clássico Alice no País das Maravilhas. Isto é notável na entrada subida e inesperada em um outro mundo, o que causa diversos conflitos subjetivos ao protagonista; assim como acontece à Alice, que diz não saber mais quem é após tantas transformações. A partir de certa idade, é esperado que o adolescente, agora integrado à sociedade, tome consciência de suas funções e assuma responsabilidades.

Ainda temos a forte presença da figura do coelho, que representa a caverna que carregamos dentro de nós mesmos, sendo o coelho aquilo que se deve procurar numa cova e ao adentrar essa cova, entrar em contato consigo mesmo. Isto nos leva à outra referência da obra, que é à psicodelia e gnosticismo; recorrentes no imaginário artístico para representar o absurdo do mundo (crueldade, miséria, malícia) e o desejo de fugir do inferno que é o mundo físico para estados alterados da realidade, em um desajuste espiritual. A religião budista interpreta a vida de forma similar, em que se faz necessário superar os desafios para a iluminação espiritual e então conseguir retornar para casa. Soma representa o arquétipo do Estrangeiro que se sente deslocado e em estado de alienação. Ele vê, mas não compreende, quer registrar a guerra, mas não fazer parte, sem perceber que a própria manutenção do status quo de um Estado subjugado (os americanos tomando o controle do Japão), o impede de seguir adiante com seus sonhos.

Por isso que Tropical Citron lembra tanto as obras de Philip K. Dick, pois Matsumoto bebe das mesmas fontes de Dick [e outros que utilizam a mesma linguagem], que era gnóstico, que por sua vez abrange temas comuns do psicodelismo [que nasceu da força da contracultura]; a fuga, sexo, drogas, lisergia, a busca interior pela identidade. A busca do Homem por significado e o desejo da liberdade incontida, de escolher seguir o próprio caminho. A liberdade individual e a identidade são os grandes temas desse mangá. Características próprias que são marcantes no povo Japonês, que naquele período se sentia confuso e deslocado; o que fez surgir tantas obras esperançosas no futuro voltadas para o orgulho de ser japonês, como Ashita no Joe e Space Battleship Yamato.
Da mesma forma que o individual é uma característica importante para o Japonês, as experiências coletivas em prol de um bem comum (o compromisso com o país, a sociedade, as tradições) também o são (ou... eram). Soma precisou do amparo de diversos personagens para que pudesse amadurecer e tomar consciência do seu papel social. No fim, embate entre o ditador [que se transforma na figura de um coelho] é estilizado e metafisico, afinal de contas matar o coelho [que reflete o próprio eu interior], significa dar um passo seguinte abandonando a velha concha de inercia e medo. Se matar o coelho, estará matando uma parte de si mesmo, que ficará para trás. E ao fazer isso, encontrará o caminho de volta para casa.

O final não é glamoroso, pelo contrário, é bem pé no chão e pelo fato de ilustrar que não somos tão especiais quanto pensamos ser (entre tantos, Soma foi mais um, de tantos, que recorreram para tentar quebrar o ciclo de tirania e foi este esforço conjunto que convergiu no resultado final), se torna um desfecho até meio melancólico e talvez anticlimático. Afinal, se espera que a jornada do herói termine com uma grande catarse e, no entanto, Tropical Citron mostra que seu herói não era virtuoso, mas um homem comum movido pelas próprias ambições que, ao passar pela difícil transição da adolescência para a vida adulta, viveu uma vida sem graça e mundana. No fim das contas, Tropical Citron é mais divertido pela experiência do que pelo que tem a dizer; que é bastante simples: amadurecer e tomar consciência do seu papel no mundo. 

Trivia

Como nota de rodapé, a escolha do título e o fato do clímax da obra ocorrer durante o carnaval são escolhas perspicazes. Durante a Era Edo, usava-se as festividades de carnaval para acalmar os ânimos do povo, que revoltosos pela situação em que se encontravam, começavam a se rebelar. Para conter, o senhor feudal recorreria às festividades carnavalescas para fazer o povo se distrair e relaxar. Na história, é durante o carnaval que o protagonista passa a ser persuadido a abandonar sua investida e também o duelo marcado entre ele e o coelho. 

Nota: 08/10
Autor: Jiro Matsumoto
Ano: 2001
Volumes: 02 (finalizado)
Demografia: Não definida
Antologia: Manga Erotics F
Perfil: MangaUpdates

Recomendação de Leitura:
-Throw Out Your Books

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