Uma viagem ácida na década perdida.
Se você pensa inadvertidamente que coming-of-age se resume a
cenários colegiais, certamente precisa colocar um pouco a cabeça para fora da
caixa. Tropical Citron (Netsutai no
Citron) é exatamente este tipo de obra que foge do padrão pop japonês para
obras sobre amadurecimento. Com uma miríade de referências à contracultura dos
anos 1960 que impactou e influenciou o mundo e sua cultura pop a partir de
então, esta obra do Jiro Matsumoto traça uma desnorteante e inquietante
narrativa multifacetada acerca da identidade.
Na história, acompanhamos um jovem chamado Soma que é
aspirante a fotografo e tem como sonho embarcar para o Vietnã para documentar a
Guerra. Não há menção em que período se passa a história, mas pelo contexto
politico-cultural é certo que se passe em algum momento entre os anos 60 e 70.
Um período em que a contracultura estava eclodindo em todo o mundo, as forças
militares americanas ainda estava em peso no Japão (o país ainda comporta uma pequena base americana por lá, como uma
ferida que forma uma cicatriz que acompanha seu hospedeiro por toda vida),
formando um cenário conflituoso com revoltas estudantis e veículos de guerra
circulando pela rua. Os jovens recorrem às drogas e ao sexo incontido.
Soma é pego pelos americanos e não consegue realizar seu
sonho de embarcar para o Vietnã. Frustrado, ele faz uso do famoso ácido “sopa
pop” e cai em algum beco imundo transando com uma garota que ele não conhece. A
partir de então, Soma começa a entrar em estados alterados de consciência,
oscilando entre diversas camadas de realidades, fazendo confusão entre o que é
real e o que não é real, sonho e realidade, adentrando em diversas camadas
alucinógenas; uma dentro da outra em um mise
en abyme abismal. Enquanto faz sexo com uma drogada desdentada, ele começa
a visualizar o rosto de uma garota de cabelos pretos que nunca vira antes. Mais
tarde, um taxi com um motorista com cabeça de cavalo, Soma vai parar numa
realidade espelhada que simula o mundo real, mas com elementos sobrenaturais.
Um mundo no qual ele não consegue sair. Em determinado momento, Soma vê a linda
garota morena (que se chama Mako) que
apareceu em suas alucinações; ela foge; ele vai atrás, mas a perde.
Soma acaba por fazer amizade com Mugiko, uma garota que
aparenta deficiência mental, e quanto mais tempo ele fica, mais entrelaçado se
torna sua relação com as pessoas e conflitos daquele mundo. Chega a um ponto em
que o enredo se torna repleto de subtramas e subtextos abstratos enquanto as
diversas realidades vão se fundindo entre si e o universo criado pelas drogas se
mistura à realidade aparente.
Tropical Citron nos traz uma instigante brincadeira de
signos e arquétipos, além de exercícios interessantes de metalinguagens e
narrativas visuais enquanto a história em é bastante simples, embora soe
complexa e complicada num primeiro olhar devido à forma desfragmentada que é
contada. Jiro Matsumoto foi muito feliz ao utilizar essa temática da contracultura,
que vai de encontro a tudo o que o autor gosta de retratar em suas obras; sexo,
violência, drogas, miséria, guerra, personagens desajustados socialmente,
sonhos, ideologias, identidade e a brincadeira entre o que é real e o que não
é.
2
Contracultura
Nos anos 1950, a sociedade pós-guerra não queria saber de
outra senão conforto e materialismo, mas os jovens da década de 60 começariam a
questionar essa atitude. Contracultura não foi um movimento pensado, mas o nome
que se deu ao fenômeno social em que várias pessoas de diversas partes do mundo
começaram a questionar os valores tradicionais da sociedade. Ainda que tenha
começado com certa inocência na postura rebelde, o confronto iniciado após a
Segunda Guerra Mundial entre Estados Unidos e a União Soviética (que se chamaria de Guerra Fria), que
financiavam as guerras ao redor do mundo, ajudou a inflamar a revolta coletiva
no final da década de 60 que se estenderia pelos anos 70. E ainda que
indiretamente, era um conflito que onde uma nação buscava provar para a outra
sua superioridade. Em meio a isso, a sociedade mainstream fechava os olhos e se
voltava para sua rotina capitalista. Enquanto isso havia uma grande pressão de algumas
alas da sociedade sobre qual seria a postura correta diante do conflito,
explodindo então a explosão cultural juvenil, influenciando a sociedade como um
todo. As pessoas começaram a se rebelar e surgiram mini-revoluções, que se
chama de contracultura, que nada mais é que fugir do senso comum, lutar por
direitos iguais, contra as guerras, pobreza, etc. É deste cenário, que surge o
uso indiscriminado de drogas, o liberalismo feminino e diversos movimentos
estudantis.
Por isso que chamam os anos 60 de anos efervescentes,
repleto de explosões culturais que refletiam a sociedade. No conflito é de onde
surge as inspirações mais criativas para os artistas, ou algo assim. No Japão,
sabemos que o país passava por momentos de instabilidade cultural e reformas
politicas. Para quem se enfoca mais no aspecto cultural do Japão, é normal que
as questões politicas do país acabem ficando relegados a segundos e terceiros
planos de interesse, mas politica e cultura estão interligadas intrinsecamente.
Da sociedade vem a cultura e também a politica, e ambas se afetam mutualmente. Nos
anos 60 e 70 o Japão ainda sentia os eventos de transição com a influência
americana e o destino incerto do país, eventos estes que ressoam em protestos
em massa em Tokyo e em todo o país. Surgiam movimentos estudantis, passeatas, e
reivindicações. Eles buscavam não apenas um modo de vida alternativa, mas autonomia,
frustrar a consolidação autoritária do poder, que o estado olhasse para a parcela
mais pobre da população que mais sofria com todos estes conflitos e isto
influenciou grandemente a arte contracultura japonesa em todas as mídias.
3
Psicodelia
Os anos 60 foram a década da convulsão social e da
criatividade, mas também das drogas. Foi só uma consequência inevitável dessa
efervescência toda que via na química a possibilidade de uma vida melhor. O que
é de certo modo soa paradoxal quando se está protestado contra um estado
latente de alienação. As drogas psicodélicas, associadas à beleza, glamour, à
sensualidade, formam o símbolo da liberdade individual e das experiências
comunitárias. Culto ao hedonismo. Como na época tudo convergia para o universo
psicodélico, a indústria cultural tratou logo de mercadejar, tendo como publico
alvo o jovem – utilizando exatamente da quebra de comportamentos e valores
tradicionais para conquista-los.
Originalmente, Psicodelia é oriundo da subcultura de pessoas
que utilizavam drogas psicodélicas e criavam artes psicodélicas, surgidas de
experiências de consciência alterada, que visavam mostrar para o outro a
experiência vivida por aquele artista enquanto fazia uso de tais alucinógenos.
Para muitos que usavam drogas, especialmente as alucinógenas, isto era visto como
uma estratégia para abrir as portas da percepção. Muitas culturas utilizam isto
para penetrar em esferas místicas e religiosas, ou para descobrir novas
dimensões. Seja como for, neste período de reivindicações libertárias e a
descoberta do seu papel na sociedade, a estética psicodélica atingiu todas as
esferas de arte. Exemplo: Ace wo Nerae! – Explosões de Cores!
4
Psychedelic Witch Story
(possíveis spoilers)
É neste intrincado contexto que Matsumoto resolve contar a
sua história satírica, utilizando de alguns signos subversivos para tecer uma
narrativa com linguagem cinematográfica.
A primeira página abre com 3 planos abertos mostrando a
lenta descida de três bombas e um quarto plano fechado numa tv que mostra os
efeitos devastadores dessa bomba, com sua explosão formando uma nuvem de
cogumelos – como uma clara alusão não apenas ao fantasma da bomba atômica no Japão
como também ao uso de drogas; no mundo místico, o cogumelo é um meio
comunicação com o divino. Essa interpretação surge do fato de que alguns
cogumelos possuem essência tóxica e quando em contato com o cérebro leva a
sérios sintomas e alucinações (um
exemplo é o episódio de Cowboy Bebop onde boa parte dos personagens começam a
alucinar quando experimentam um certo cogumelo com substâncias toxicas. Veja:
Cowboy Bebop – Episódio 17, Mushroom Samba).
Veja só essa então:
Desde o interior borbulhante do corpo a toda sequência de
transição desses quadros, Matsumoto demonstra um incrível domínio cinético, do
qual ele faz uso em diversos momentos da história, utilizando de angulações e enquadramentos
inteligentes que dão passam a sensação de se estar assistindo em tela grande. Os
enquadramentos e a utilização do preto e do branco para criar atmosfera são
incríveis! Fora as fotografias reais de um modo que passam despercebidos por um
olhar mais incauto.
Aliás, Matsumoto tem um estilo de arte rebuscada que lembra
muito às do Nihei Tsutomu (Knight of Sidonia) e Naoki Yamamoto (Believers). Há quem diga que é um estilo preguiçoso, e realmente, há casos de arte
rebuscada que não se pode falar que se trata se um estilo próprio do autor, mas
simplesmente deficiência técnica/preguiça. No entanto, no caso de Matsumoto pode se
notar que realmente é a performance visual que ele quer alcançar, apesar que em
alguns momentos ele delineia as curvas das personagens em um jogo de sombras e
nanquim que faz ter vontade de ver uma obra sua somente com esta tamanha
polidez.
Ainda assim, seu rebuscado vai de encontra à atmosfera de
instabilidade psicológica e nonsense de suas histórias, como se fosse o mundo
por uma ótica distorcida. E com um teor tão sujo e subversivo, como o de seus
enredos, sua narrativa consegue caminhar no limiar entre o erótico e hentai.
No primeiro volume de Tropical Citron você percebe uma abundância
maior de sexo, violência e desorientação, enquanto o segundo volume trata de
dar gravidade aos eventos que sucedem e conectar todas as pontas soltas. É quando realmente se sente que a história
tem um proposito bem definido e os personagens brilham.
Se a primeira pagina abre fazendo uma denúncia grave, na
segunda página vemos Soma e uma mulher fazendo sexo, indiferentes ao que
ocorria na tv.
Mako é uma bruxa aprisionada pela figura de um ditador, que
violentou a violentou [quando ainda criança] com aval de sua mãe, tornando-as escravas, enquanto subjugava
a cidade (cidade espelhada) que
protegiam – que agora está sobre o controle de um déspota.
Soma é levado para essa cidade (espelhada, que nada mais é que o reflexo distorcido – pelo
sobrenatural – daquele mundo) pelo homem com cara de cavalo, e espera-se
que ele consiga fazer o que muitos que foram levados até ali falharam: libertar
aquele Estado e seus cidadãos do autoritarismo do ditador. No primeiro momento,
Soma lava as mãos e não se vê interessado em intervir em algo que não lhe diz
respeito. Enquanto isso, uma cadeia de eventos faz com que seu caminho seja
entrecortado com o de 3 garotas rebeldes que lutam pela liberdade daquele mundo
e com o de Mugiko, considerada uma louca idiota pelos demais personagens.
Mugiko acaba ganhando a afeição de Soma, e tanto ela quanto
Mako, se tornam peças-chaves para o despertar de Soma. Tropical Citron brinca
com alguns signos, como na obvia referência ao clássico Alice no País das
Maravilhas. Isto é notável na entrada subida e inesperada em um outro mundo, o
que causa diversos conflitos subjetivos ao protagonista; assim como acontece à
Alice, que diz não saber mais quem é após tantas transformações. A partir de
certa idade, é esperado que o adolescente, agora integrado à sociedade, tome
consciência de suas funções e assuma responsabilidades.
Ainda temos a forte presença da figura do coelho, que
representa a caverna que carregamos dentro de nós mesmos, sendo o coelho aquilo
que se deve procurar numa cova e ao adentrar essa cova, entrar em contato
consigo mesmo. Isto nos leva à outra referência da obra, que é à psicodelia e gnosticismo;
recorrentes no imaginário artístico para representar o absurdo do mundo (crueldade, miséria, malícia) e o
desejo de fugir do inferno que é o mundo físico para estados alterados da
realidade, em um desajuste espiritual. A religião budista interpreta a vida de
forma similar, em que se faz necessário superar os desafios para a iluminação
espiritual e então conseguir retornar para casa. Soma representa o arquétipo do
Estrangeiro que se sente deslocado e em estado de alienação. Ele vê, mas não
compreende, quer registrar a guerra, mas não fazer parte, sem perceber que a
própria manutenção do status quo de um Estado subjugado (os americanos tomando o controle do Japão), o impede de seguir
adiante com seus sonhos.
Por isso que Tropical Citron lembra tanto as obras de Philip
K. Dick, pois Matsumoto bebe das mesmas fontes de Dick [e outros que utilizam a
mesma linguagem], que era gnóstico, que por sua vez abrange temas comuns do
psicodelismo [que nasceu da força da contracultura]; a fuga, sexo, drogas, lisergia,
a busca interior pela identidade. A busca do Homem por significado e o desejo
da liberdade incontida, de escolher seguir o próprio caminho. A liberdade
individual e a identidade são os grandes temas desse mangá. Características
próprias que são marcantes no povo Japonês, que naquele período se sentia
confuso e deslocado; o que fez surgir tantas obras esperançosas no futuro voltadas
para o orgulho de ser japonês, como Ashita no Joe e Space Battleship Yamato.
Da mesma forma que o individual é uma característica
importante para o Japonês, as experiências coletivas em prol de um bem comum (o compromisso com o país, a sociedade, as
tradições) também o são (ou... eram).
Soma precisou do amparo de diversos personagens para que pudesse amadurecer e
tomar consciência do seu papel social. No fim, embate entre o ditador [que se
transforma na figura de um coelho] é estilizado e metafisico, afinal de contas
matar o coelho [que reflete o próprio eu interior], significa dar um passo
seguinte abandonando a velha concha de inercia e medo. Se matar o coelho,
estará matando uma parte de si mesmo, que ficará para trás. E ao fazer isso,
encontrará o caminho de volta para casa.
O final não é glamoroso, pelo contrário, é bem pé no chão e
pelo fato de ilustrar que não somos tão especiais quanto pensamos ser (entre tantos, Soma foi mais um, de tantos,
que recorreram para tentar quebrar o ciclo de tirania e foi este esforço
conjunto que convergiu no resultado final), se torna um desfecho até meio
melancólico e talvez anticlimático. Afinal, se espera que a jornada do herói
termine com uma grande catarse e, no entanto, Tropical Citron mostra que seu
herói não era virtuoso, mas um homem comum movido pelas próprias ambições que,
ao passar pela difícil transição da adolescência para a vida adulta, viveu uma
vida sem graça e mundana. No fim das contas, Tropical Citron é mais divertido
pela experiência do que pelo que tem a dizer; que é bastante simples:
amadurecer e tomar consciência do seu papel no mundo.
Trivia
Como nota de rodapé, a escolha do título e o fato do clímax da obra ocorrer durante o carnaval são escolhas perspicazes. Durante a Era Edo, usava-se as festividades de carnaval para acalmar os ânimos do povo, que revoltosos pela situação em que se encontravam, começavam a se rebelar. Para conter, o senhor feudal recorreria às festividades carnavalescas para fazer o povo se distrair e relaxar. Na história, é durante o carnaval que o protagonista passa a ser persuadido a abandonar sua investida e também o duelo marcado entre ele e o coelho.
Trivia
Como nota de rodapé, a escolha do título e o fato do clímax da obra ocorrer durante o carnaval são escolhas perspicazes. Durante a Era Edo, usava-se as festividades de carnaval para acalmar os ânimos do povo, que revoltosos pela situação em que se encontravam, começavam a se rebelar. Para conter, o senhor feudal recorreria às festividades carnavalescas para fazer o povo se distrair e relaxar. Na história, é durante o carnaval que o protagonista passa a ser persuadido a abandonar sua investida e também o duelo marcado entre ele e o coelho.
Nota: 08/10
Autor: Jiro Matsumoto
Ano: 2001
Volumes: 02 (finalizado)
Demografia: Não definida
Antologia: Manga Erotics F
Ano: 2001
Volumes: 02 (finalizado)
Demografia: Não definida
Antologia: Manga Erotics F
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