A essência da animação é tornar reais as maiores loucuras que se pode imaginar. Qualquer coisa que seja impossível ou difícil de dar forma numa filmagem de ação real pode ganhar vida através do processo de animação. Dar vida à imaginação; foi desse desejo que nasceu os desenhos animados.
E é por isso que o surrealismo é uma vertente intrínseca na animação – mesmo em animações que tem a pretensão de serem realistas, como o magnifico Perfect Blue, emprega vários recursos surrealistas; embora sejam explicados pela lógica da confusão mental entre realidade e fantasia. Em especial animadores japoneses, possuem esse fascínio pelo surreal e o nonsense que a animação proporciona em uma escala única, que fariam obras de Salvador Dali e Luis Buñuel soarem lúcidas.
As animações japonesas tendem as ser mais fantasias escapistas de aventura, em sua forma mais simples e pura, do que uma tentativa de confrontação da realidade (embora seja importante ressaltar que mesmo esses esforços com mensagens de fundo de confrontação também são escapismo, entretenimento e diversão). Nobita e Doraemon encontram vários perigos em suas viagens através do tempo e espaço, mas são sonhos sem pesadelos, não são viagens mentais rumo ao completo desconhecido onde a vida e a morte são separadas por uma linha tênue.
Embora o talentoso Masaaki Yuasa se incline dessa caracterização e tenha dificuldades de encarar sua obra de forma séria, preferindo vê-la como um entretenimento despretensioso divertido, Mind Game tem a preocupação de dar forma ao conteúdo em um sentido de preenchimento completo, usando a fantasia escapista como uma ponte para uma mensagem – o que basicamente é o que toda obra de ficção faz; e a razão de eu ressaltar isso é que Mind Game se sobressai bastante nessa proposta apostando no potencial da narrativa de cinema e animação em seu máximo. E o resultado é incrível, provando que a união entre forma e conteúdo não só é possível como também nasceram um para o outro. Afinal, a história que o filme quer contar é muito simplista e é a viagem que torna tudo insano e explosivo – mas uma viagem sem finalidade, é inócua.
Adaptado do mangá homônimo, conta a história de um inseguro aspirante artista de mangá chamado Robin Nishi (Koji Imada), que também é o nome do autor do mangá de Mind Game. Ele fica sabendo que sua amiga e namorada de infância Myon (Sayaka Maeda) está prestes a ficar noiva de um tipo bonito e simpático chamado Ryo (Tomomitsu Yamaguchi) e a sente bem distante do seu alcance ao perceber as obvias diferenças entre ele; imaturo e hesitante, e o namorado dela; confiante e confiável. Nishi dá os parabéns e parece se conformar com este destino, mas se sente arrasado e fracassado. Mas sua autopiedade interna é interrompida por dois yakuza que entram no bar da família de Myon administrado por sua irmã mais Yan (Seiko Takuma) em busca do pai delas (Toshio Sakata), que se esconde. Quando um deles tenta estuprar Myo na frente do namorado quase noivo, as coisas se tornam demasiadamente fora do controle e Nishi é morto do modo mais humilhante na frente dela ao explodir com o criminoso – o que acontece a partir daí é uma viagem insana e psicodélica para os limites do desconhecido da mente.
Talvez você não devesse ter lido essa sinopse. Talvez devesse assistir Mind Game completamente no escuro. Afinal, qualquer coisa que se fale sobre, é de alguma forma um spoiler considerável que entrega os níveis de surpresa que o longa-metragem proporciona em seu decorrer. Por isso vou evitar descrever os menores detalhes possíveis, ainda que mesmo frente a qualquer previsibilidade de sua história, Mind Game continua sendo uma obra brilhante e seminal em todas as suas tramas que compõe o quadro que degustamos com os olhos e a mente, e em sua narrativa e composições visuais.
A narrativa é satírica, então mesmo o cenário ao fundo sendo bastante grave e sério, é imbuído de uma dissonância cognitiva que torna tudo o que vemos mais como um meio – para se alcançar o que vemos a seguir – do que um fim em si, ou seja, para te provocar choque e revolta. É partir disso, e daquilo, e mais isso e aquele outro, que podemos entender e enxergamos como verossímil o conflito de Nishi e, por que não, uma possível identificação ou simplesmente empatia. A sequência onde vemos Nishi se corresponder com Myon do ginásio ao colegial, sem nunca conseguir tomar realmente uma iniciativa incisiva, demonstrando sua insegurança em lidar com as situações, não só é brilhante na forma como Yuasa conta isso através da narrativa visual, como também de um ritmo e timing fantástico, similar à técnica empregada por Mamoru Hosoda em Wolf Child só que num ritmo mais frenético, já que a sensação que ele quer passar é completamente oposta. Outros exemplos formidáveis de técnica narrativa seguem por todo o longa e eu poderia preencher páginas e páginas e nunca perderia o vigor. Yuasa tem um domínio extraordinário de tempo e linguagem. O cara é um monstro, uma lenda viva.
Dos trabalhos que já vi onde Yuasa é creditado, a grande maioria possui o seu toque artístico e visual único. Cat Soup, que inclusive já comentei aqui no ELBR, onde Yuasa trabalhou como animador chefe pode ser visto como um protótipo do que ele faria em Mind Game com sua criatividade sem limites. Aqui abro um parêntese para um quote do autor;
“O projeto surgiu por causa do mangá, então eu não tinha intenção de me desviar dele. Mas, para ser perfeitamente honesto me desviei um pouco do mangá na segunda parte, de modo que tratei isso de uma forma que fez mais sentido para mim pessoalmente. Se você não sabe do por que você está fazendo o que está fazendo, os resultados podem ser desastrosos. Tomemos por exemplo Cat Soup. O mangá original é uma sátira mordaz de toda a brutalidade que existe no mundo. Pessoalmente há muitas coisas que eu não pude seguir lá. Então o que eu fiz foi escolher uma vinheta que parecia oferecer um pingo de esperança, e moldar a história em torno disso. Então, ao invés de brutalidade por causa da brutalidade, a brutalidade está lá para dar um peso realista para a mensagem de esperança que se encontra no núcleo. Dessa forma eu era capaz de encontrar uma abordagem que fez sentido para mim. No caso de Mind Game, essa mensagem não está exatamente oculta, ela é falada em voz alta – muito vocalmente, na verdade. Neste caso, eu pensei que era importante ser alto e claro. Há muitas coisas na vida que não podem ser realizadas a menos que você as leve dessa forma”.
"Sua vida é o resultado de suas próprias decisões" |
Mind Game tem essa atmosfera e mensagem escancarada de que você pode fazer qualquer coisa se você tentar. Embora isto seja bastante evidente e ganhe forma nas ações e diálogos dos personagens, isto nunca é passado de uma forma artificial e explicitamente verbal – pobremente através de diálogos de exposição – ao invés disso, ela é explicitamente implícita, há sempre metáforas, diálogos correlacionados, e principalmente através da amplificação caricatural permitida pela animação , tornando possível acreditar intimamente naquele espirito que o longa quer passar. É uma poderosa demonstração visual de uma jornada de crescimento e amadurecimento – coming of age – da juventude e o potencial escondido dentro de cada um. A trilha sonora de Seiichi Yamamoto conta com inusitada direção de curadoria de Shinichiro Watanabe (Cowboy Bebop), que recebeu o convite diretamente de Yuasa, justamente por Watanabe ser conhecido por seu apuro técnico em relação à composição musical em harmonia com a animação. É uma trilha sonora substancial e evocativa, que auxilia nesta atmosfera explosiva de positividade e otimismo, refletindo exatamente o que vemos na tela. No clímax do filme, ela surge homogênea à animação como um orgasmo desenfreado e furioso como uma transa selvagem. Yeah, é o estupor.
É importante ressaltar que Mind Game não tenta fazer isso parecer fácil ou simples, mas sim ressaltar o valor da persistência. Viver sem arrependimentos, autodeterminação, acreditar em si próprio e controlar seu próprio destino, mas que tudo será muito difícil e quebrará a cara muitas e muitas vezes. Descrevendo soa piegas pra caralho, e este é o ponto forte do longa: jamais colocar isso em palavras exatas. Seria um equivoco que arruinaria tudo.
“O mangá original diz: ‘Faça isso! Vá em frente! Não deixe nada te parar! Você pode fazer qualquer coisa se você tentar!’. Bem, eu, pessoalmente, não tenho essa confiança toda, então eu meio que freei a mensagem um pouco. Por isso, ainda é ‘Você pode fazer qualquer coisa se você tentar!’ mas temperada com; ‘Eu terei que bater muito a minha cabeça na parede’. Mesmo se você falhar, o importante é tentar. O resultado não é importante. O importante é apreciar o processo de lutar.” Masaaki Yuasa
O aspecto mais interessante neste subtexto, ao menos para mim, acaba sendo o simbolismo em torno do simulacro dentro da barriga da baleia, que é um símbolo espiritual, utilizado na ficção como metáfora do útero materno, que é quentinho e protegido do mundo externo. Traduz-se como o escapismo da realidade criando um simulacro em torno de si. O ato de sair do seu ventre alude ao renascimento, uma segunda chance, ressurgindo das cinzas mais forte do que antes. Para nós ocidentais talvez seja uma questão que não tenha o mesmo peso que para nativos japoneses que vivem aquela cultura:
“Curiosamente, houve pessoas na equipe que me perguntaram por que Nishi gostaria de deixar a barriga da baleia. Eu pensei que seria natural querer sair. Mas fiquei surpreso como muitas pessoas pensavam que teria sido mais divertido [e seguro] ficar na barriga da baleia. Isso realmente me levou a pensar, a pensar do porque as pessoas perguntavam da razão de Nishi querer deixar a barriga da baleia. (...) Por que queremos viver no mundo? Porque é interessante. Eu coloco Nishi deixando isso muito claro no filme. Porque é maravilhoso viver em um mundo cheio de pessoas diferentes que se misturam e vivem todos os tipos de vida diferentes. Através de nossas interações com essas pessoas, todos nós participamos do ato de criar o mundo que nos rodeia. Não importa mesmo se nós não tenhamos um grande papel nisto tudo. Eu acho que já é uma coisa maravilhosa apenas fazer parte nesse processo. Essa é uma das mensagens que eu quero repercutir. (...) Quando ele sai, ele tem esse sentimento muito positivo de que ele pode fazer qualquer coisa. O mundo coloca vários tipos de obstáculos em seu caminho, nem tudo é diversão e jogos. Mas você pode encontrar a força para superar isso”.
Eu dediquei todo o texto a falar sobre a história, e o enredo, apesar de as tramas serem simples e obvias. Mas é nos detalhes e fragmentações que Mind Game realmente se torna grande. Como a caracterização dos personagens, que realmente soam como pessoas inseridas em um universo adulto. Eles falam uma linguagem normal para um jovem, não uma língua alienígena que estamos acostumados a ver em diversos animes para TV exibidos durante a madrugada. Yuasa quebra até mesmo convenções clássicas como demonstrações de afeto, beijo e sexo – tudo tratado como uma naturalidade assustadora, afinal é algo pouco comum em uma animação japonesa, que tende a tratar a interrelação entre sexos de uma distância segura. Aqui é apenas normal, parte do ritual. Todos os personagens relevantes possuem camadas e subtramas próprias, que tornam a mensagem do filme como uma forma preenchida de conteúdo, não apenas uma concha vazia que conta tão somente com a nossa boa vontade de acreditar.
Além disso – e principalmente sendo o audiovisual sua maior força – é também um exemplar impar de animação que explora todas as suas possibilidades de linguagem do meio, assim como fizeram Space Dandy, Cowboy Bebop, Cat Soup, entre outros. Fruto do esforço colaborativo de uma equipe muito pequena em um estúdio pequeno, que rendeu uma produção de 2 anos, Mind Game não busca o caminho mais fácil para contar a sua história, mas as vastas possibilidades do experimentalismo pelo qual o Studio 4°C se tornou conhecido e as habilidades técnicas de grandes profissionais. O resultado não poderia ser outro, que não um fruto tão pouco ortodoxo e diferente de tudo que você já viu.
Yuasa busca angulações absurdas de câmera que tornam a vida dos animadores um inferno, mas de um resultado esplêndido. Movimentos de câmera 3D sobreposta à animação tradicional, composições de layout cinematográficos, efeitos de iluminação, foto-colagens que forma um efeito visual semelhante a estilos de narrativa visual presente em obras como a de Inio Asano e Jiro Matsumoto. Há cortes de ação real com os dubladores dos personagens intercalando os desenhos de animação tradicional e efeitos 3D, que mudam de um corte a outro em menos tempo que se pode piscar – como quando Nishi está falando com Deus (!!!), e Deus vai mudando de forma a cada dois segundos.
Assim, Mind Game é seguramente o primeiro grande anime filme do Século XXI, revolucionário em contar uma história de uma forma que jamais fora feita anteriormente, e olha que estamos falando de animadores japoneses, que já nos deram perolas como Belladonna Of Sadness, Cleopatra (a versão do Osamu Tezuka de 1970), Dead Leaves, entre outras produções extremamente experimentais. A animação de Mind Game se sente palpavelmente áspera e rustica. Selvagem. É Yuasa em seu estado mais bruto, mais genuíno, e por isso mesmo, selvagem. Esse sentimento desperto só é possível graça ao character design do diretor de animação Yuichiro Sueyoshi, que leva a arte original do mangá ao nível ainda mais extremo, traduzindo o estado de espirito de Yuasa. O resultado é pura abstração. Ah, sim, o cenário é situado em plena época de copa do mundo e olimpíadas, definindo o marco de uma época, o que torna curioso o processo de percepção de algumas referências esportivas. Para quem assistiu Ping Pong, a mais recente série de TV do Yuasa, poderá ser divertido perceber as semelhanças temáticas, e se olhar mais profundamente, também será capaz de enxergar um link com todas as suas outras séries, como Kaiba e Kick-Heart.
Nota: 09/10
Fonte: Adaptação (Mangá)
Direção e roteiro: Masaaki Yuasa
Música: Seiichi Yamamoto
Diretor de Animação e Character design: Yuichiro Sueyoshi
Diretor de arte: Tooru Hishiyama
Diretor de CGI: : Keisuke Sasagawa
Estúdio: Studio 4°C
Tipo: Filme
Duração: 104 minutos
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