domingo, 14 de agosto de 2016

NieA_7 e o Preconceito dos Japoneses Contra Estrangeiros – Original X Adaptação

Minha vida meio que anda uma loucura, já faz um bom tempo, então tempo tem sido algo a se valorizar. Ler e assistir em dispositivos móveis se trata de uma realidade na nossa sociedade contemporânea. Todo mundo faz isso. Durante uma espera numa fila ou num ponto, no translado de um ônibus, nos intervalos, etc e etc. 
NieA_7 (NieA Under Seven) é um anime que eu queria assistir há anos, mas com a lista sempre crescente, ele acabou criando teias de aranha em algum lugar obscuro do meu HD, até que eu resolvi resgatá-lo para essa nova empreitada de assistir animes em celulares. E assim foi, o assisti completamente desta forma. Foi uma experiência deveras interessante, pois mesmo em tais circunstâncias não deixei de me sentir envolvida por sua ambientação em nenhum momento.

O anime é uma adaptação do mangá homônimo que conta com a arte do famoso ilustrador Yoshitoshi ABe (que já ilustrou as light novels NHK ni Youkoso!* e All You Need Is Kill, o cultuado doujinshi Haibane Renmei; que também foi adaptado para anime – e também foi character design do anime Texhnolyze e do clássico avant-garde Serial Experiments Lain; por isso não se espante se em diversos planos de câmera do anime de NieA_7 você tiver a nítida impressão de estar vendo a Lain). 

Com animação do estúdio Triangle Staff (o mesmo de Macross Plus), NieA_7 é um anime de animação econômica, e a própria equipe parece brincar com isso com o subtítulo [Pobre animação doméstica], o character design dos personagens não é suave e se mostra bastante bruto, e feio se comparada com a carpintaria original de Abe. Mas funciona, e tem seus momentos de virtuosismo estilístico em que podemos notar a paixão pelo oficio da equipe do Triangle Staff. Dirigido por Tomokazu Tokoro, que também esteve à frente do anime de Haibane Renmei, NieA_7 é um daqueles slice of life clássicos, que parecem extintos hoje em dia, emulando uma atmosfera similar a do anime Azumanga Daoih, um dos três maiores clássicos do gênero quando falamos em animes – ao lado de Aria The Animation e, sim, K-On!. Uma nostalgia irrepreensível. 
Como um legitimo slice of life, NieA_7 não tem subtramas mirabolantes e enredos marcados por plottwists e clifhangers, tampouco uma trama que urge com um fio condutor que irá explodir em seu clímax. A história se trata simplesmente de um pequeno recorte da vida cotidiana de uma garota pobre que vive com uma alienígena travessa e folgada, e todas as demais pessoas que a cercam naquele ambiente. É uma série de grande calmaria e sobre as banalidades cotidianas. No entanto, NieA tem muito mais a dizer do que evidencia em sua superfície. 

O cenário não é sofisticado nem se passa num futuro distante. Na verdade, sua ambientação é contemporânea, num distrito japonês interiorano e subdesenvolvido chamado Enohana, em que seres humanos e alienígenas convivem pacificamente. É sabido que há uns anos atrás uma enorme UFO – nave alienígena – caiu na terra, exatamente no distrito de Enohana, trazendo os alienígenas. O mais inusitado nesta história toda é que os seres humanos, num geral, não dão a menor importância para este acontecimento e acompanharam isso com profundo desinteresse. Assim é estabelecido o cenário de NieA_7, em que os seres humanos simplesmente deixaram de se importar com o fato de estarem vivendo lado a lado com alienígenas. 
Na história, acompanhamos o cotidiano sofrido de Mayuko Chigasaki (Ayako Kawasumi), uma pobre (literalmente) estudante que vive longe dos pais porque se matriculou numa escola que lhe dará mais chances de passar numa faculdade melhor. Para sobreviver e ainda pagar suas contas que são muitas, Mayuko precisa dividir seu tempo entre escola, cursinho e vários empregos, e mesmo assim raramente sobra algum dinheiro para comprar comida. Ela vive com a alien Niea (Yuko Miyamura), personagem título do anime. Não vemos como essa estranha relação de tapas e beijos entre as duas começou, mas logo descobrimos quando Mayuko se mudou para o quartinho,  Niea já estava preguiçosamente instalada no armário. Elas vivem uma casa de banho antiga, que também está sempre no vermelho e dando prejuízo; para pagar sua estadia ali Mayuko desempenha alguns trabalhos no local.

Niea é como um gatinho de estimação, preguiçosa que só faz travessuras e vive atrás de comida, uma garota que se veste e se comporta como um garoto (tal qual a Ed de Cowboy Bebop) – inclusive ela realmente se parece bastante com a Ed, até mesmo na personalidade; excêntrica, muito hiperativa e sagaz, logo descobrimos que apesar de arteira que só Niea parece bastante inteligente na construção e elaboração de UFOs, para o desespero de Mayuko, pois para isso a garota alien enche o quartinho de lixo e destrói o pouco que elas possuem com invenções que nunca dão certo. 

Esse é o tipo de humor de NieA_7 que permeia todos os episódios, uma espécie de humor negro, que não é verbal, mas implícito em ações, algo parecido como aquilo de pessoas que vivem em desgraça e em uma vida miserável saberem rir da própria condição. Há um tom bastante de genuíno na forma como isso é abordado, com a caracterização sendo levada para contornos mais caricatos para que a série não perca seu ponto – razão pela qual Niea e Mayuko às vezes soarem como a Magali e outras vezes como o Chaves, sendo este um aspecto mais grave. No entanto, o efeito às vezes pode ser o oposto, pois em diversos momentos me flagrei em completo desalento pelas condições de extrema pobreza que afligia Niea e Mayuko, de não terem nem o que comer e dividindo um quartinho destruído [por Niea]. Isso pode lhe soar bastante cruel, dependendo de sua sensibilidade. 
O anime inclusive parte de uma proposta de ser mais leve e superficial em relação a isso, embora seja uma adaptação fiel. Já o mangá é bastante denso neste aspecto, ainda que nunca perca seu timing cômico, o âmago e situações intrinsicamente dramáticas parecem andar de mãos dadas com o humor em uma sincronicidade que jamais perde o seu ritmo, onde cada momento respeita a atmosfera do outro, e mesmo quando há a evasão, ambas se misturam de tal forma que se torna difícil distinguir. Escrito pelo autor desconhecido de pseudônimo gK, NieA traça um retrato profundo de uma parcela da população mais pobre do Japão, que raramente é retratada em obras mais midiáticas. Partindo pela arte de ABe, que desenha um cenário rico em detalhes de um autentico distrito japonês subdesenvolvido e dominado pela desigualdade social, em que as casas formam verdadeiras favelas através de uma visão espacial. 

Em contrapartida, enquanto no anime você pode notar essa sugestão, você jamais terá a exata dimensão disto quanto se têm no mangá pela arte do Abe – já que o cenário construído para Enohana no anime é absolutamente clean e vazia, apesar de a região da cratera – onde caiu a nave-mãe dos aliens e local mais pobre de Enohana, tido como uma favela – ainda estar lá, sua presença é meramente formal. O anime demonstra um claro desinteresse em abordar tal profundidade, ao ponto de alguns laços nunca serem atados devidamente em sua narrativa, fazendo com que algumas ações soem abruptas e repentinas, sem um arco dramático que o justifique. Há certas situações que às vezes passa a impressão de que você perdeu alguma coisa. 
Mayuko é uma boa personagem no anime, assim como todo o elenco de personagens que compõe este cenário, mas no mangá sua construção e caracterização é uma coisa absurdamente fantástica. Percebemos o quão complexa ela é, que sua introversão e timidez encontram ecos numa personalidade incrivelmente insegura, e a razão do porque ela e Niea terem uma relação afetiva tão intima e envolvente – algo bem sugestionado no anime, mas sem a mesma densidade e ternura. Mayuko, em termos introspectivos, é uma grande contradição de sentimentos, um retrato magnifico de um ser humano. 

Acompanhar NieA_7 não é esperar para ver a resolução dos seus conflitos internos e externos, embora haja a vontade, é algo que nunca iremos ver, é como uma história que você pega pela metade e não fica sabendo de seu fim. Uma crônica do cotidiano. Bela e breve. NieA é uma obra repleta de sentimentos e verdades humanas. Quente e envolvente.  

II

Algo interessante a se discutir em relação à NieA_7 é o seu subtexto politico e comentário social. ABE e gk constroem uma obra de fantasia com configuração de ficção cientifica, razão pela qual a origem e a razão não importam – afinal, este é um conto; uma fabula fantástica do cotidiano, onde não importa a razão pela qual caiu uma enorme UFO abrindo uma cratera na terra nem como diabos uma única UFO seria capaz de trazer milhares de alienígenas de algum ponto e se misturar em todo Japão.

Há muitas perguntas que se você se perguntar, obviamente não fazem sentido, são elementos que estão lá em função do estilo narrativo. Por exemplo, os aliens possuem antenas, absolutamente inúteis, que eles não fazem a menor ideia da razão de a possuírem a não ser o fato de que servem para captar ondas eletromagnéticas, característica que nunca se torna importante para o andamento ou algum ponto da história. Tanto que em certo momento, a nave-mãe simplesmente desaparece e sua ausência não é sequer sentida, a não ser pela personagem-título Niea – sua importância é simbolista e segue como um signo dentro do contexto e posso elaborar diversos possíveis significados tais como ser um manifesto da essência efêmera da vida, mas em nenhum momento consegui chegar a um consenso comigo mesma de qual seria a intenção autoral ou seu papel por trás daquela passagem tão emblemática para a narrativa, ainda que no ambiente dos personagens fosse retratado como nada significativamente especial. 

Todas essas confusões existem porque NieA_7 é também, de certa forma, uma alegoria. Uma figura de linguagem. O que quer dizer: a obra aponta em uma direção, mais intrinsecamente quer dizer outra coisa. Ou ambas as coisas ao mesmo tempo. 
NieA_7 pode ser encarado como uma crítica ao cenário japonês da época – 1990 a 2000 – que estava cada vez mais sendo invadido por estrangeiros. Desde a abertura dos portos ao ocidente, no Período Edo (1853-1937), que o Japão não experimentava um choque tão grande de cultura e presença física de ocidentais em seu meio quanto foi nos indos da década de 1990 e virada do milênio. Para a maior parte dos países ocidentais, isso parece algo estranho a se pensar, mas para um país como o Japão que passou mais de 200 anos fechado para o mundo e com uma cultura social xenofóbica tão forte, a globalização e a “facilidade” que estrangeiros encontraram para residir no Japão – e não apenas a turismo – na virada do século certamente foi algo que trouxe desconforto interno para muitos membros daquela sociedade, especialmente os mais tradicionais. O país vivia –e ainda vive – um dilema paradoxal em relação à imigração e miscigenação, nesse sentido ainda é um país bastante fechado.

A intenção aqui não é exatamente criticar e tacas pedras, é um assunto complexo que não se discute profundamente sem considerar muitos fatores, tampouco é algo que irá dissipar do dia para a noite em seu ambiente. Mas sim ilustrar superficialmente o contexto no qual a obra faz sua referência não apenas histórica, mas como um produto daquele meio e daquele próprio tempo, uma série produzida naquele exato período de tantas mudanças e conflitos. 

Esse comentário social da obra se torna nítido quando nos perguntamos a razão da qual os alienígenas serem catalogados pelos japoneses em um sistema de castas, como a existente na Índia (inclusive a série estabelece uma conexão curiosa, e talvez um tanto preconceituosamente jocosa, com a cultura indiana e suas pessoas de pele escura). A Niea, por exemplo, é uma alienígena sem antena, razão pela qual ela é constantemente vitima de preconceito e racismo entre seus iguais alienígenas; ela é o nível mais baixo entre os alienígenas, sendo caracterizada como uma sub 7 (explicando ai a razão do título “under seven”) que sequer tem registro no sistema. Para o governo, Niea simplesmente não existe. 

Niea é desconsiderada e colocada abaixo até mesmo entre seus iguais, acentuando que o sistema de castas criado se trata basicamente de uma hierarquia imposta na forma como são tratados internamente naquele Japão, afinal, há uma grande diferença do ponto de vista social entre um americano e um latino (seja mexicano ou brasileiro). Niea seria então uma latina. 

Os alienígenas da história poderiam ser qualquer pessoa comum na história, não fossem as antenas e as orelhas ligeiramente alongadas, mas falam a mesma língua e possuem basicamente a mesma aparência. Outra característica curiosa é o fato de eles possuírem nacionalidades, como por exemplo, o alien de pele negra de origem indiana e a chinesa, ambos representados como estrangeiros (alienígenas), causando no ambiente desconforto e desigualdades sociais. Há no texto, apesar da narrativa satirizada e humor estereotipado, um certo temor generalizado em relação ao futuro em que isso poderia levar e como os próprios japoneses são prejudicados por esta politica, seja perdendo oportunidades de emprego ou vagas nas universidades. 

O texto descreve a situação como ‘problema de imigração’ severa e um sério problema para a sociedade japonesa. Essa atmosfera acaba culminando, na história, em muito preconceito e xenofobia contra os estrangeiros, que no anime é suavizado, mas se encontra efusivamente no mangá. Principalmente no que tange à cor da pele do alien indiano, visto como algo anormal pela Mayuko, que nunca sequer tinha visto alguém com essa tonalidade de pele escura – nesse sentido ele é caracterizado como marginalizado, estranho e ameaçador. Reflete em menor ou maior grau, um desconto e temor geral do japonês no contado direto com pessoas de outra cultura e como isso poderia lhes ser prejudicial. Assim sendo, o termo alienígena e sua caracterização tem um sentido bastante ambíguo, uma vez que alienígena implica tudo que é desconhecido, diferente e aberrante que provoca certo temor.




Temas Relacionados
-Barbara: O Lado Perverso e Doentio da Mente Humana
[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 05[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 06[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 07[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 18[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 20[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 24[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 33[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 44[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 52[TNNAC]_NieA_Under_7_-_01 54[TNNAC]_NieA_Under_7_-_02 09[TNNAC]_NieA_Under_7_-_02 27[TNNAC]_NieA_Under_7_-_02 28[TNNAC]_NieA_Under_7_-_02 30[TNNAC]_NieA_Under_7_-_02 59[TNNAC]_NieA_Under_7_-_03 21[TNNAC]_NieA_Under_7_-_03 22[TNNAC]_NieA_Under_7_-_03 29[TNNAC]_NieA_Under_7_-_03 44[TNNAC]_NieA_Under_7_-_04 10[TNNAC]_NieA_Under_7_-_04 17[TNNAC]_NieA_Under_7_-_04 19[TNNAC]_NieA_Under_7_-_04 40[TNNAC]_NieA_Under_7_-_04 52[TNNAC]_NieA_Under_7_-_05 54[TNNAC]_NieA_Under_7_-_05 62[TNNAC]_NieA_Under_7_-_05 63[TNNAC]_NieA_Under_7_-_05 64[TNNAC]_NieA_Under_7_-_06v2 28[TNNAC]_NieA_Under_7_-_06v2 36[TNNAC]_NieA_Under_7_-_06v2 61[TNNAC]_NieA_Under_7_-_08 10[TNNAC]_NieA_Under_7_-_08 22[TNNAC]_NieA_Under_7_-_08 45[TNNAC]_NieA_Under_7_-_08 56[TNNAC]_NieA_Under_7_-_08 59[TNNAC]_NieA_Under_7_-_08 60[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 08[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 09[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 10[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 14[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 17[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 27[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 39[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 57[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 58[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 61[TNNAC]_NieA_Under_7_-_09 62[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 09[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 10[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 14[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 20[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 21[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 23[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 39[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 51[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 60[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 61[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 64[TNNAC]_NieA_Under_7_-_10 66[TNNAC]_NieA_Under_7_-_11 25[TNNAC]_NieA_Under_7_-_11 26[TNNAC]_NieA_Under_7_-_11 29[TNNAC]_NieA_Under_7_-_11 39[TNNAC]_NieA_Under_7_-_11 50[TNNAC]_NieA_Under_7_-_11 55[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 19[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 31[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 36[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 57[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 58[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 60[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 61[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 62[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 63[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 64[TNNAC]_NieA_Under_7_-_12 66

resenha, análise, crítica, review, comentários