domingo, 28 de outubro de 2012

Audition – Anjo ou Demônio?


Uma ousada critica social sobre o patriarquismo japonês? Ou apenas mais um filme doentiamente violento de Takashi Miike?

Sinopse: Sete anos após a morte da sua esposa, um executivo de uma grande empresa, Aoyama, com a ajuda de um amigo cineasta, assiste a uma audição para a escolha de uma atriz, para o papel principal. Essa audição tem indiretamente o propósito de encontrar uma possível esposa para Aoyama. Imediatamente, Aoyama fica fascinado por uma das mulheres, Yamazaki Asami, uma bela e misteriosa jovem com formação em balé. Apesar de Asami não ser selecionada para o filme, Aoyama liga e convida-a para jantar. Só volta a contata-la mais tarde com medo de acelerar as coisas muito rapidamente. Asami deixa o telefone tocar. Ela está sozinha, num quarto escuro, mas, na realidade, não está completamente sozinha… Ao seu lado está uma das suas vítimas, dentro de um saco, no chão…! Mas Asami parece esconder mistérios muito mais profundos, que irá se revelando aos poucos em Audition, um intricando suspense psicológico baseado na novel de Ryu Murakami.

Comentários: Audition (1999) é um daqueles filmes perfeitos para ser assistidos sem nenhum conhecimento prévio do enredo, algo como estar assistindo calmamente o anime Mahou Shoujo Madoka Mágica com a sua sobrinha de 8 anos e de repente chegar no episódio 03 e sofrer um verdadeiro atentado psicológico. Ou fazer igual o deputado que levou o seu filho para assistir o filme do ursinho viciado Ted só porque parecia fofinho. Oras, praticamente 2 terços de Audition são basicamente um passeio por um drama romântico que te faria questionar o motivo de estar assistindo aquilo, se o longa não estivesse encharcado por uma atmosfera pesada e um tanto quanto inquietante, somado ao crescente suspense. Até por isso, muitos chamam Audition de um romantic horror film.

Takashi Miike é um cineasta singular e controverso, com uma longa lista de filmes (atualmente já passam os 60) prestados ao cinema japonês, então claro que é uma figura prestigiada e de respeito. Ele é conhecido por seus filmes emaranhados em uma atmosfera de horror, não raras vezes repletos de violência explicita, como por exemplo; Ichi the Killer, que chocariam o publico convencional. Mas Audition seja talvez o seu filme mais emblemático, e foi com este filme que ele se tornou conhecido pelo público mainstream no ocidente, com o lançamento internacional.

Referência quando o assunto é cinema Exploitation [ele inclusive fez uma aparição em “O Albergue” – Hostel, de 2005], obviamente o filme chocou o telespectador médio no ocidente, que foram pegos de surpresa pela ótima montagem do cineasta. Durante a première do filme na Suíça em 2000, houve uma comoção e uma pessoa passou mal no cinema, médicos foram chamados, fora a polêmica que gerou durante várias mostras de cinema pelo mundo. Audition possui todas as características marcantes de Miike, mas surpreende mesmo é na abordagem, onde ele combina drama com terror psicológico em uma narrativa cadenciada repleta de questionamentos.  

Em Audition Miike subverte as expectativas do drama romântico, chegando ao extremo de desaparecer com a protagonista [Asami, interpretada por Ryo Ishibashi] na parte mais crucial do filme, que é onde a história começa pra valer. E podemos dividi-lo em duas partes distintas.

Lado A

Extremamente expositivo, com um longo e lento estudo de personagens. Pode ser um ponto chato para alguns, mas é onde Miike mais acerta, construindo na figura de Aoyama [interpretado muitíssimo bem por Eihi Shiina] um personagem extremamente envolvente. Seu drama, sua solidão, e o relacionamento afetuoso que nutre por seu filho soam genuínos. A forma como Miike desenvolve isso cria uma identificação imediata com o espectador, através de cenas de puro silêncio que parecem aumentar a solidão do personagem e outras mais descontraídas. As mais divertidas sem dúvidas foram a da audição, com os personagens a procura da garota perfeita para Aoyama, que seguissem o pré-requisito de possuírem algum trauma que a impedissem de seguir adiante com seus sonhos. Uma garota talentosa, mas com finasse o suficiente.

*todas as imagens miniaturas do texto são ampliáveis*

“O Japão está acabado”, diz um executivo de cinema, amigo de Aoyama, durante uma conversa de bar permeado por um humor seco e alguns suspiros desanimados. Aqui, Miike parece se auto referenciar e brincar com as questões de gênero.

A: “Você é um homem ocupado”
B: “Você está certo, mas...a margem de lucro está diminuindo. E quanto a você?”
A: “Então você não sabe? A indústria de cinema é rentável.”
B: “Sério?”
A: “Não estou mentindo (...)”
B: “Parece ser um futuro promissor”
A: “Mas eu não sei quanto tempo conseguimos permanecer nele.”
- Neste instante, as garotas numa mesa ao lado, começam a rir em voz alta.
A: “Garotas horríveis. Sem classe. Esnobes. Estúpidas também. Onde estão todas as boas garotas? O Japão está acabado”

A principio parece ser uma critica ao patriarquismo japonês, a própria audição não passa de uma farsa para atrair mulheres que atendam aos pré-requisitos de Aoyama: Que façam cursos que lhe possibilitem certa bagagem cultural, delicadas e desinteressadas. A própria Asami preenche todos os requisitos: Garota frágil, obediente, resignada, não tem emprego fixo, não tem profissão, tímida, meio deprimida, ex-bailarina que teve de abandonar seu sonho por causa de uma lesão no quadril. Ela compara, na descrição de sua ficha, a aceitação de sua lesão com a resignação de alguém diante da morte. Da mesma forma que ela é submissa à sua lesão, ela é também submissa socialmente. Essa aparente fragilidade é o que atraí a atenção de Aoyama, afinal, ela é a personificação da mulher ideal, forjada a moda antiga.

B (Aoyama): “Porque você é tão negativo sobre ela? O que há de errado com ela?”
A (amigo): "Eu só acho que a vida não é fácil. Ela é bela, tem classe, e é muito obediente. Como uma mulher assim não tem um namorado é inexplicável"


Lado B

Essa dominação masculina inerente à submissão feminina se torna cada vez mais aparente. E mesmo que Aoyama seja retratado como o elemento dominador, possessivo e fissurado na figura de Asami, a narrativa nunca se torna maniqueísta na primeira parte. O drama de Aoyama é realmente tocante, mas isso é construído de uma forma tão sutil, que pode ser difícil perceber a manipulação escondida por trás de uma narrativa melancólica de trilha sonora quase inexpressiva [e por isso, inquietante].

Já na parte final, quando Asami se revela como realmente é, uma garota que sofreu diversos abusos na infância e agora busca se vingar de diversos homens, torturando-os, pensamos que estamos diante de uma autêntica narrativa feminista. Mas é só a reversão do poder sobre a dinâmica do gênero. Um homem torturando uma garota é algo ultrapassado e chato, mas uma garota se divertindo ao torturar lentamente um homem é style (por favor, não entendam como uma crítica minha. Mesmo porque, adoro mesmo ver mulheres torturando homens! Confesso esse fetiche divertido de se assistir).
O ponto alto que caracteriza esse fetiche é quando Asami aparece travestida; metade enfermeira, metade açougueira, e com um semblante que só não é mais angelical porque sua expressão é repleta de malícia. Ela diz “você faz as audições, dispensa as candidatas dizendo que não foram aprovadas, mas depois as chama pra sair, aproveitando de seu estado emocionalmente abalado” – Enquanto Miike desconstrói a personagem de Asami, a transformando numa psicopata, Aoyama continua sendo um personagem humano. Caramba, nem sequer foi ideia dele a tal audição [ao contrário, ele se mostrou contra inicialmente, embora ele realmente prefira mulheres tradicionais], e seus sentimentos eram verdadeiros. Ela diz “vocês são sempre os mesmos, dizem às mulheres que as amam, mas no fundo só querem sexo” – Mas é Asami é quem se atira e o encosta contra a parede, seduzindo-o. Miike, que não é santo enquanto cineasta expõe como que se divertindo a face primordial do gênero horror exploitation: O sexismo. É como se ele dissesse “essa garota é uma desequilibrada, está torturando um homem inocente amparada em sua mente doentia e distorcida da realidade”. Um ponto que merece destaque é o fato de que em certo momento, Aoyama é colocado como um homem tolo já velho, completamente apaixonado por uma garota ainda no auge dos seus 24 anos, feito completamente de palhaço por ela.

“Doloroso?”

“As palavras criam mentiras. A dor pode ser verdadeira. Certo?”


"Este é o ponto mais doloroso"


"Você só percebe que tipo de homem você é, quando você sente dor. Você compreende quando você tem uma experiência muito agonizante”


"Este fio corta ossos tão facilmente"


Por isso, embora a aparente crítica à sociedade patriarcal e à politica sexual em relação às mulheres, isso na verdade não passa de uma fachada habilmente manipulada por Miike – É como se emocionar com o plot twist de CLANNAD ~After Story~ e depois perceber que foi magistralmente manipulado. Bem, não passa de uma brincadeira com convenções de gênero presente principalmente no horror, e Miike deu aquilo que a plateia mais gosta. Mas, ainda dá pra fazer uma leitura meio feminista, relacionando a transformação de Asami, de uma garota vulnerável e passiva, a uma mulher forte e cruel, depois de ter fisgado completamente a sua presa. Simbolicamente, o receio mais antigo do homem frente a uma mulher, espelhada como a figura malévola. Inclusive, no clímax do filme, há uma cena onde isso se torna bem sugestivo [~Possível~ spoiler, selecione: Aoyama acorda de um pesadelo onde era torturado por Asami, e logo após, ele fica receoso com as caricias dela e fraqueja com o pedido de casamento que lhe havia feito antes], e é bem divertido acompanhar a expressão horrorizada de Aoyama.

Toda a estrutura de Audition é construída de forma manipulativa, e a naturalidade habilidade de Miike em trabalhar isso é incrível. Essa segunda parte contém uma narrativa opressiva e uma montagem que a torna ainda mais densa. O mais impressionante na direção de Miike, nem é toda a carga de violência, mas o magistral equilíbrio que ocorre entre as duas partes distintas [primeira metade, e a metade final] em Audition. Miike desenvolve Aoyama e Asami com perícia fascinante, do cativante desenho humano que ele havia traçado para eles, até o ponto sem retorno, onde tudo isso é desfeito. Essa ligação perfeita entre as duas partes do filme funciona principalmente porque Miike consegue fazer com o que o espectador se importe com seus personagens.

Ele está se masturbando enquanto vê ela cortar o cara com um arame

Geralmente, em filmes de terror, os personagens não são tão importantes, o publico não precisa senti-lo de forma genuína. E por isso, tantos e tantos filmes de terror possuem atuações às vezes medíocres. Muitos filmes de terror não precisam sequer de um bom roteiro, quanto menos um bom ator! Mas, Audition é mais do que um filme de terror. É um thriller de terror psicológico pontuado no drama. Acredito que depois de tantos anos (desde de pequenininha, aliás), pouca coisa conseguiria me impactar atualmente, por isso eu assisti Audition com um enorme sorriso na face, sem me incomodar. Particularmente não o acho tão chocante como dizem, mas sim, para o espectador comum e mais frágil, pode ser uma experiência extremamente perturbadora. O barulhinho do arame de Asami cerrando os ossos de uma de suas vítimas é deliciosamente repulsivo. Melhor ainda seus risos maliciosos “kiri kiri kiri kiri kiri”. Você vai terminar esse filme com esse som na mente. Sim, é para quem tem estômago.

Nota especial para a belíssima interpretação dos atores Ryo Ishibashi (Asami) e Eihi Shiina (Aoyama), provando que o cinema japonês possui atores muito mais talentosos dos que são vistos nas novelas [doramas] e muitos live actions. A estrutura de Audition é de cinema independente, extremamente autoral. Difere bastante do típico filme de terror comercial. A própria montagem traz aquele quê de filme Cult, com enquadramentos meticulosos, e um excelente jogo de câmera. Embora a fotografia seja atraente, as referências ao estilo Giallo na hora da aplicação de cores nas cenas mais pontuais, acaba se mostrando completamente fora do lugar. O que é uma falha de Miike como diretor, pelo fato de sempre abrir mão do acompanhamento de seus filmes na pós-produção. É como o J. J. Abrams, que por conta da alta rotatividade e produtividade, acaba não acompanhando de perto suas séries.



A montagem é bem ao estilo Lynch; onde dois mundos opostos se misturam de forma confusa em que os personagens envolvidos também estão confusos. Em Audition, nos imergimos através dos desejos desses personagens. Sua fuga é um sonho, em uma narrativa que mistura realidade e fantasia de uma forma embaralhada e confusa, através de cortes abruptos onde é difícil distinguir o que é passado, o que é futuro e o que é sonho e realidade. Numa sequência alucinante, Aoyama têm que lidar com três aspectos de sua vida: o real (seu sentimento de culpa interno, pela forma como tratou diversas mulheres), o imaginário (onde aparece sua esposa morta), e o especulativo (o mistério em torno de Asami). Essa ideia de dualidade e paralelismo é a marca registrada de Lynch, que tanto influenciou Satoshi Kon.  Mas Audition não tem o mesmo primor dos filmes de Kon, aqui parece ser uma enorme provocação ao cinema industrial, conduzindo o espectador por um universo confuso e não racional, onde as peças não se juntam perfeitamente [há uma cena onde Aoyama é inserido num contexto de fantasia que ele nunca chegou presenciar na realidade].

É como se fosse Miike brincando de metalinguagem ao traçar uma narrativa fragmentada que não se encaixa de forma racional. Mas e daí? Nem por isso é menos divertido. Audition é provocante, evoca aquele feeling de irracionalidade, feito para se divertir durante sua execução apenas. 

Nota: 08/10
Clássificação: +16
Direção: Takashi Miike                
Ano:1999
Duração: 115 min.
Elenco: Ryo Ishibashi, EIHI Shiina, Tetsu Sawaki, Miyuki Matsuda, Renji Ishibashi, Junho Junimura

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