Uma ousada critica social sobre o patriarquismo japonês? Ou
apenas mais um filme doentiamente violento de Takashi Miike?
Sinopse: Sete
anos após a morte da sua esposa, um executivo de uma grande empresa, Aoyama,
com a ajuda de um amigo cineasta, assiste a uma audição para a escolha de uma atriz,
para o papel principal. Essa audição tem indiretamente o propósito de encontrar
uma possível esposa para Aoyama. Imediatamente, Aoyama fica fascinado por uma
das mulheres, Yamazaki Asami, uma bela e misteriosa jovem com formação em balé.
Apesar de Asami não ser selecionada para o filme, Aoyama liga e convida-a para
jantar. Só volta a contata-la mais tarde com medo de acelerar as coisas muito
rapidamente. Asami deixa o telefone tocar. Ela está sozinha, num quarto escuro,
mas, na realidade, não está completamente sozinha… Ao seu lado está uma das
suas vítimas, dentro de um saco, no chão…! Mas Asami parece esconder mistérios
muito mais profundos, que irá se revelando aos poucos em Audition, um
intricando suspense psicológico baseado na novel de Ryu Murakami.
Comentários: Audition
(1999) é um daqueles filmes
perfeitos para ser assistidos sem nenhum conhecimento prévio do enredo, algo
como estar assistindo calmamente o anime Mahou Shoujo Madoka Mágica com a sua
sobrinha de 8 anos e de repente chegar no episódio 03 e sofrer um verdadeiro
atentado psicológico. Ou fazer igual o deputado que levou o seu filho para
assistir o filme do ursinho viciado Ted só porque parecia fofinho. Oras, praticamente
2 terços de Audition são basicamente um passeio por um drama romântico que te
faria questionar o motivo de estar assistindo aquilo, se o longa não estivesse
encharcado por uma atmosfera pesada e um tanto quanto inquietante, somado ao
crescente suspense. Até por isso, muitos chamam Audition de um romantic horror film.
Takashi Miike é um cineasta singular e controverso, com uma
longa lista de filmes (atualmente já
passam os 60) prestados ao cinema japonês, então claro que é uma figura
prestigiada e de respeito. Ele é conhecido por seus filmes emaranhados em uma
atmosfera de horror, não raras vezes repletos de violência explicita, como por
exemplo; Ichi the Killer, que chocariam o publico convencional. Mas Audition
seja talvez o seu filme mais emblemático, e foi com este filme que ele se
tornou conhecido pelo público mainstream no ocidente, com o lançamento
internacional.
Referência quando o assunto é cinema Exploitation [ele inclusive
fez uma aparição em “O Albergue” – Hostel, de 2005], obviamente o filme chocou
o telespectador médio no ocidente, que foram pegos de surpresa pela ótima
montagem do cineasta. Durante a première do filme na Suíça em 2000, houve uma
comoção e uma pessoa passou mal no cinema, médicos foram chamados, fora a polêmica que gerou durante várias mostras de cinema pelo mundo. Audition possui
todas as características marcantes de Miike, mas surpreende mesmo é na
abordagem, onde ele combina drama com terror psicológico em uma narrativa
cadenciada repleta de questionamentos.
Em Audition Miike subverte as expectativas do drama
romântico, chegando ao extremo de desaparecer com a protagonista [Asami,
interpretada por Ryo Ishibashi] na parte mais crucial do filme, que é onde a
história começa pra valer. E podemos dividi-lo em duas partes distintas.
Lado A
Extremamente expositivo, com um longo e lento estudo de
personagens. Pode ser um ponto chato para alguns, mas é onde Miike mais acerta,
construindo na figura de Aoyama [interpretado muitíssimo bem por Eihi Shiina]
um personagem extremamente envolvente. Seu drama, sua solidão, e o
relacionamento afetuoso que nutre por seu filho soam genuínos. A forma como
Miike desenvolve isso cria uma identificação imediata com o espectador,
através de cenas de puro silêncio que parecem aumentar a solidão do personagem
e outras mais descontraídas. As mais divertidas sem dúvidas foram a da audição,
com os personagens a procura da garota perfeita para Aoyama, que seguissem o
pré-requisito de possuírem algum trauma que a impedissem de seguir adiante com
seus sonhos. Uma garota talentosa, mas com finasse o suficiente.
“O Japão está acabado”, diz um executivo de cinema, amigo de
Aoyama, durante uma conversa de bar permeado por um humor seco e alguns
suspiros desanimados. Aqui, Miike parece se auto referenciar e brincar com as questões de gênero.
A: “Você é um homem ocupado”
B: “Você está certo, mas...a margem de lucro
está diminuindo. E quanto a você?”
A: “Então você não sabe? A indústria de cinema
é rentável.”
B: “Sério?”
A: “Não estou mentindo (...)”
B: “Parece ser um futuro promissor”
A: “Mas eu não sei quanto tempo conseguimos
permanecer nele.”
- Neste instante, as garotas numa mesa ao lado, começam a
rir em voz alta.
A: “Garotas horríveis. Sem classe. Esnobes.
Estúpidas também. Onde estão todas as boas garotas? O Japão está acabado”
A principio parece ser uma critica ao patriarquismo japonês,
a própria audição não passa de uma farsa para atrair mulheres que atendam aos
pré-requisitos de Aoyama: Que façam cursos que lhe possibilitem certa bagagem
cultural, delicadas e desinteressadas. A própria Asami preenche todos os requisitos:
Garota frágil, obediente, resignada, não tem emprego fixo, não tem profissão, tímida,
meio deprimida, ex-bailarina que teve de abandonar seu sonho por causa de uma
lesão no quadril. Ela compara, na descrição de sua ficha, a aceitação de sua
lesão com a resignação de alguém diante da morte. Da mesma forma que ela é
submissa à sua lesão, ela é também submissa socialmente. Essa aparente
fragilidade é o que atraí a atenção de Aoyama, afinal, ela é a personificação
da mulher ideal, forjada a moda antiga.
B (Aoyama): “Porque você é tão negativo sobre ela? O que
há de errado com ela?”
A (amigo): "Eu só acho que a vida não é fácil. Ela
é bela, tem classe, e é muito obediente. Como uma mulher assim não tem um
namorado é inexplicável"
Lado B
Essa dominação masculina inerente à submissão feminina se
torna cada vez mais aparente. E mesmo que Aoyama seja retratado como o elemento
dominador, possessivo e fissurado na figura de Asami, a narrativa nunca se
torna maniqueísta na primeira parte. O drama de Aoyama é realmente tocante, mas
isso é construído de uma forma tão sutil, que pode ser difícil perceber a
manipulação escondida por trás de uma narrativa melancólica de trilha sonora
quase inexpressiva [e por isso, inquietante].
Já na parte final, quando Asami se revela como realmente é,
uma garota que sofreu diversos abusos na infância e agora busca se vingar de
diversos homens, torturando-os, pensamos que estamos diante de uma autêntica
narrativa feminista. Mas é só a reversão do poder sobre a dinâmica do gênero.
Um homem torturando uma garota é algo ultrapassado e chato, mas uma garota se
divertindo ao torturar lentamente um homem é style (por favor, não entendam como uma crítica minha. Mesmo porque, adoro
mesmo ver mulheres torturando homens! Confesso esse fetiche divertido de se
assistir).
O ponto alto que caracteriza esse fetiche é quando Asami
aparece travestida; metade enfermeira, metade açougueira, e com um semblante
que só não é mais angelical porque sua expressão é repleta de malícia. Ela diz
“você
faz as audições, dispensa as candidatas dizendo que não foram aprovadas, mas
depois as chama pra sair, aproveitando de seu estado emocionalmente abalado”
– Enquanto Miike desconstrói a personagem de Asami, a transformando numa
psicopata, Aoyama continua sendo um personagem humano. Caramba, nem sequer foi
ideia dele a tal audição [ao contrário, ele se mostrou contra inicialmente,
embora ele realmente prefira mulheres tradicionais], e seus sentimentos eram
verdadeiros. Ela diz “vocês são sempre os mesmos, dizem às
mulheres que as amam, mas no fundo só querem sexo” – Mas é Asami é quem
se atira e o encosta contra a parede, seduzindo-o. Miike, que não é santo
enquanto cineasta expõe como que se divertindo a face primordial do gênero horror
exploitation: O sexismo. É como se ele dissesse “essa garota é uma desequilibrada, está torturando um homem inocente
amparada em sua mente doentia e distorcida da realidade”. Um ponto que
merece destaque é o fato de que em certo momento, Aoyama é colocado como um
homem tolo já velho, completamente apaixonado por uma garota ainda no auge dos
seus 24 anos, feito completamente de palhaço por ela.
“Doloroso?”
“As palavras criam mentiras. A dor pode ser verdadeira. Certo?”
"Este é o ponto mais doloroso"
"Você só percebe que tipo de homem você é, quando você sente dor.
Você compreende quando você tem uma experiência muito agonizante”
Por isso, embora a aparente crítica à sociedade patriarcal e
à politica sexual em relação às mulheres, isso na verdade não passa de uma
fachada habilmente manipulada por Miike – É como se emocionar com o plot twist
de CLANNAD ~After Story~ e depois perceber que foi magistralmente manipulado. Bem,
não passa de uma brincadeira com convenções de gênero presente principalmente
no horror, e Miike deu aquilo que a plateia mais gosta. Mas, ainda dá pra fazer
uma leitura meio feminista, relacionando a transformação de Asami, de uma
garota vulnerável e passiva, a uma mulher forte e cruel, depois de ter fisgado completamente
a sua presa. Simbolicamente, o receio mais antigo do homem frente a uma mulher,
espelhada como a figura malévola. Inclusive, no clímax do filme, há uma cena
onde isso se torna bem sugestivo [~Possível~ spoiler, selecione: Aoyama acorda de um pesadelo
onde era torturado por Asami, e logo após, ele fica receoso com as caricias
dela e fraqueja com o pedido de casamento que lhe havia feito antes], e
é bem divertido acompanhar a expressão horrorizada de Aoyama.
Toda a estrutura de Audition é construída de forma manipulativa,
e a naturalidade habilidade de Miike em trabalhar isso é incrível. Essa segunda
parte contém uma narrativa opressiva e uma montagem que a torna ainda mais
densa. O mais impressionante na direção de Miike, nem é toda a carga de
violência, mas o magistral equilíbrio que ocorre entre as duas partes distintas
[primeira metade, e a metade final] em Audition. Miike desenvolve Aoyama e
Asami com perícia fascinante, do cativante desenho humano que ele havia traçado
para eles, até o ponto sem retorno, onde tudo isso é desfeito. Essa ligação
perfeita entre as duas partes do filme funciona principalmente porque Miike
consegue fazer com o que o espectador se importe com seus personagens.
Geralmente, em filmes de terror, os personagens não são tão
importantes, o publico não precisa senti-lo de forma genuína. E por isso,
tantos e tantos filmes de terror possuem atuações às vezes medíocres. Muitos
filmes de terror não precisam sequer de um bom roteiro, quanto menos um bom
ator! Mas, Audition é mais do que um filme de terror. É um thriller de terror psicológico
pontuado no drama. Acredito que depois de tantos anos (desde de pequenininha, aliás), pouca coisa conseguiria me impactar
atualmente, por isso eu assisti Audition com um enorme sorriso na face, sem me
incomodar. Particularmente não o acho tão chocante como dizem, mas sim, para o
espectador comum e mais frágil, pode ser uma experiência extremamente perturbadora.
O barulhinho do arame de Asami cerrando os ossos de uma de suas vítimas é
deliciosamente repulsivo. Melhor ainda seus risos maliciosos “kiri
kiri kiri kiri kiri”. Você vai terminar esse filme com esse som na
mente. Sim, é para quem tem estômago.
Nota especial para a belíssima interpretação dos atores Ryo
Ishibashi (Asami) e Eihi Shiina (Aoyama),
provando que o cinema japonês possui atores muito mais talentosos dos que são
vistos nas novelas [doramas] e muitos live actions. A estrutura de Audition é
de cinema independente, extremamente autoral. Difere bastante do típico filme
de terror comercial. A própria montagem traz aquele quê de filme Cult, com
enquadramentos meticulosos, e um excelente jogo de câmera. Embora a fotografia
seja atraente, as referências ao estilo Giallo na hora da aplicação de cores
nas cenas mais pontuais, acaba se mostrando completamente fora do lugar. O que
é uma falha de Miike como diretor, pelo fato de sempre abrir mão do
acompanhamento de seus filmes na pós-produção. É como o J. J. Abrams, que por
conta da alta rotatividade e produtividade, acaba não acompanhando de perto
suas séries.
A montagem é bem ao estilo Lynch; onde dois mundos opostos
se misturam de forma confusa em que os personagens envolvidos também estão
confusos. Em Audition, nos imergimos através dos desejos desses personagens.
Sua fuga é um sonho, em uma narrativa que mistura realidade e fantasia de uma
forma embaralhada e confusa, através de cortes abruptos onde é difícil
distinguir o que é passado, o que é futuro e o que é sonho e realidade. Numa
sequência alucinante, Aoyama têm que lidar com três aspectos de sua vida: o
real (seu sentimento de culpa interno,
pela forma como tratou diversas mulheres), o imaginário (onde aparece sua esposa morta), e o
especulativo (o mistério em torno de
Asami). Essa ideia de dualidade e paralelismo é a marca registrada de
Lynch, que tanto influenciou Satoshi Kon. Mas Audition não tem o mesmo primor dos filmes
de Kon, aqui parece ser uma enorme provocação ao cinema industrial, conduzindo o
espectador por um universo confuso e não racional, onde as peças não se juntam perfeitamente
[há uma cena onde Aoyama é inserido num contexto de fantasia que ele nunca
chegou presenciar na realidade].
É como se fosse Miike brincando de metalinguagem ao traçar
uma narrativa fragmentada que não se encaixa de forma racional. Mas e daí? Nem
por isso é menos divertido. Audition é provocante, evoca aquele feeling de irracionalidade, feito para se divertir durante sua execução
apenas.
Nota: 08/10
Clássificação: +16
Clássificação: +16
Direção: Takashi Miike
Ano:1999
Duração: 115 min.
Elenco: Ryo Ishibashi,
EIHI Shiina, Tetsu Sawaki, Miyuki Matsuda, Renji Ishibashi, Junho Junimura
Similar: Kokuhaku (Confessions), Perfect Blue, Honogurai mizu no soko kara (Dark Water), A Tale of Two Sisters (Kim Ji-Wun), Irréversible (IЯЯƎVƎЯSIBLƎ)
review, análise, crítica, resenha, estudo Audition (movie filme 1999), Ôdishon, Horror, Thriller , gore, Takashi Miike
Similar: Kokuhaku (Confessions), Perfect Blue, Honogurai mizu no soko kara (Dark Water), A Tale of Two Sisters (Kim Ji-Wun), Irréversible (IЯЯƎVƎЯSIBLƎ)
Curta o Elfen Lied Brasil no Facebook
e nos Siga no Twitter