sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Kick-Heart (2013): O S&M de Masaaki Yuasa


A história de amor entre duas pessoas onde cada um tem um segredo a esconder. Enquanto um gosta de apanhar, o outro curte infringir a dor.

Depois de tantas versões pós-modernas de Romeu e Julieta, não imaginei que alguma ainda pudesse me fazer arquear as sobrancelhas só de passar o olho pela sinopse. Kick-Heart ser tão pouco convencional e comercial não causa espanto quando vemos que se trata do mesmo diretor de Kaiba (já comentado porcamente aqui no ELBR: Kaiba: Um conto de fadas Cyberpunk e melancólico para crianças adultas), Kemonozume, Mind Game e Tatami Galaxy. Masaaki Yuasa gosta de nadar contra a corrente, como o próprio define, gosta de fugir do que é popular por achar que é saudável para a indústria a diversidade. O que é uma ótima visão.

A história tem como cenário o Wrestling profissional onde os lutadores escondem sua identidade e criam fama como se fossem super heróis.  Maskman M (Tatsuhisa Suzuki) é um lutador que esconde o fato de gostar de ser espancado no ringue. Secretamente, ele sonha em duelar com a lutadora sadista Lady S (Takako Honda). Por uma coincidência do destino, Lady S vem a descobrir a verdadeira identidade de Maskman e quando finalmente os dois se encontram no palco, voam faíscas e... hormônios.


Se você estava curioso de como algo assim pudesse se desenvolver, eu diria que vai pelo caminho mais obvio e não deixa de ser excitante por causa disso. Um dos maiores estímulos do BDSM é a sensação de proibido, de estar burlando as regras impostas pela sociedade. É um jogo sexual muito mais psicológico e físico do que a simples exposição de órgãos sexuais. E Yuasa consegue tecer uma teia de relações sem precisar dizer muito, apenas mostrando ou insinuando. O conceito de Romeu e Julieta da história está no proibido. A identidade secreta de Maskman M é o altruísta Romeo Maki (nada disso é spoiler), benfeitor de um orfanato de crianças humildes caindo aos pedaços, e Lady S é a noviça irmã Juliet que é designada para este orfanato. Dessa forma, suas máscaras e trajes justíssimos soam como artefatos BDSM e o ringue se transforma no palco dessa relação.  

Em uma de suas entrevistas, Yuasa diz ter se inspirado ao se questionar porque lutadores profissionais iriam dedicar suas vidas para serem espancados, e então se perguntou se não havia nenhum tipo de prazer masoquista naquilo. Em Kick-Heart ele desenvolve essa linha de pensamento. O mundo do Wrestling profissional pode parecer bizarro, mas é altamente disciplinado e traz consigo uma alta carga emocional como uma válvula que dá vazão a um dos instintos mais primitivos do ser humano. O mesmo para o BDSM, eu diria. Nunca se sentiu preso às mordaças das convenções sociais [que são necessárias para uma melhor convivência pacifica]? A arte é um dos meios que se permite extravasar todos estes sentimentos contidos, assim como os esportes [que também são uma forma de arte].

Kick-Heart transmite sentimentos de sexo e desejo através de sua arte abstrata, o que é bem estranho de se sentir, porque as ações e a arte não são nem um pouco atraentes. Os movimentos, a ação, a arte, tudo isso vai do áspero ao cartunesco com flexibilidade. Isso é porque não é o visual, mas a ideia daquilo que excita a mente. É puramente abstrato, pura abstração. Kick-Heart tem uma das melhores sequências de sexo e orgasmo já vistas em uma animação (este ano ainda teve aquela excitante cena do pé em Kotonoha no Niwa, provando que há muitas formas interessantes de se mostrar sexo), e eu advirto: não é todos que vão perceber, nem ao menos sentir este timing.  Perto do clímax [da luta e de suas atividades promiscuas, já que ambos estavam cientes que estavam dando prazer um ao outro], a respiração de Lady S vai ficando cada vez mais pesada e Yuasa propositalmente cessa a trilha sonora, tornando a ação ofegante muito mais expressiva, e embora a obvia conotação sexual, a interpretação de sua seiyuu não tem aquelas nuances sexuais. Ambos estão completamente esgotados fisicamente, mas ela insiste em pular em cima dele e desnorteá-lo por completo, como dois parceiros copulando violentamente.  A cada contato físico, uma explosão de cores que expressam os sentidos dos personagens.



A expressividade visual de Kick-Heart é muito divertida, é só um curta bobinho de 12 minutos, mas que nem por isso deixa de contar uma história e apresentar seus personagens. Ter consciência que se trata de um curta, é o que torna Kick-Heart tão divertidinho. Yuasa usa com sabedoria o tempo que tem. A animação é colorida, bem fluída, e a ação é dinâmica e bem humorada. A trilha sonora é envolvente, já começa com um ritmo bem “jungle” e animalescamente bem humorada, aludindo à natureza selvagem que há no interior desses personagens – e durante o percurso, a mesma peça volta com um arranjo ligeraimente modificado, deixando pra trás o ritmo percussionista e se tornando mais grave. Um grande é mérito jaz na apresentação dos personagens. Eles nunca nos soam como degenerados, mas como figuras muito empáticas e simpáticas. Nos primeiros minutos há uma sequência hilária de Maskman M apático enfrentando uma lutadora com obesidade mórbida, quando enfim na substituição de pares ele recebe um nocaute no peito de Lady S, formando um coração reluzente no local, mas para o seu desespero, antes que pudesse voltar ao ringue e receber os tapinhas da S, seu parceiro toma seu lugar e a acaba levando a sova que deveria ser dele.

Este curta tem um cenário de fundo que é meio deprimente, formando uma linha contrastante entre miséria e riqueza. Maskman M começa a história recebendo provavelmente pela primeira vez a oportunidade de competir em um torneio maior do que está acostumado, mas sob a pressão de uma grande liga e precisando seguir um roteiro pré-estabelecido, em que seria necessário deixar o outro time ganhar, o que explica a apatia de Maskman M nos primeiros minutos frente à sua adversária. No entanto, ao ser golpeado por Lady S, algo acende dentro dele, que vence a luta que deveria perder. Agora ele está de volta à sarjeta. Kick-Heart narra sua volta por cima e a chance de ajudar financeiramente na reconstrução do orfanato, mas pode se dizer que é mais do que isto, é a chance de voltar a se sentir vivo dentro dos ringues, expressado por sua rivalidade com Lady S. Neste caso, mesmo uma hipotética derrota, poderá representar uma vitória.

Ele é masoquista. Ela uma dominatrix sádica. Quanto mais dor ele sente, mais contente e mais forte se sente. Ela quanto mais dor inflige, mais satisfeita fica. Diante de um estimulo tão forte, nem mesmo a natureza manipulada de um resultado pode pará-lo. Para Yuasa, ele é um herói que transforma a pressão em poder, funcionando como uma metáfora para a pressão que a sociedade exerce sobre as pessoas. Particularmente eu vejo como um retrato da própria visão do Yuasa quanto a indústria. Declarações queixosas por parte do diretor não são raras, ele já disse que o cinema está ortodoxo demais, com muitas formulas prontas, que seus trabalhos não dão retorno comercial e por isso os investidores não colocam fé no que produz. Assim, nem é tão difícil perceber a velha cartilha de Joe do Amanhã sendo aplicado aqui refletindo a própria realidade em torno da excentricidade do diretor.
É difícil fazer uma leitura sobre Lady S, mas segundo Yuasa, há planos de levar a história adiante. Me permitam dizer o que sei: o pai de Juliet é a figura que manipula os resultados (aparentemente o senhor misterioso que é visto fumando charutos do alto da plateia), talvez sem saber que sua principal contratada, Lady S, seja na verdade a sua filha. Essa que por sua vez se torna freira pelo carinho paterno que sente pelo padre, que foi um lutador e principal rival de seu pai no ringue, e também fora dele pelo amor de uma lutadora, que se tornou a freira do orfanato, mas ambos agora estão velhos. A história é toda amarrada em uma série de coincidências abençoadas pela ficção. Claro, eu não poderia saber desses detalhes do enredo só assistindo, foi Yuasa quem disse em algum lugar tempos atrás, mas isso mostra como a trama se revela mais pelo visual do que pelos diálogos, porque depois do spoiler, é fácil perceber todos esses elementos alinhados numa narrativa em que se torna preciso se manter atento para pegar as nuances.

Então, talvez não seja equivocado ler Lady S como uma mulher que expressa através da violência, a sua insatisfação com as coisas ao seu redor. Lady S seria um alter ego que a possibilita ser, ao contrário de Juliet. Enfim, não deixa de ser curioso todos estes projetos pilotos recentes, que estreiam como um termômetro para medir seu potencial frente ao publico na internet. Recentemente Kyousougiga depois da série de curtas ganhou um anime para tv, e é questão de tempo até Little Witch Academia se tornar uma série maior, e Kick-Heart possui a mesma pretensão. Seria este o caminho a partir de agora para produções mais autorais em busca de financiamentos?

Nota: 09/10
Tipo: Curta-metragem
Duração: 12 min. e 46 seg.
Direção, roteiro: Masaaki Yuasa
Estúdio: Production I.G.


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