A história de
amor entre duas pessoas onde cada um tem um segredo a esconder. Enquanto um
gosta de apanhar, o outro curte infringir a dor.
Depois de
tantas versões pós-modernas de Romeu e Julieta, não imaginei que alguma ainda
pudesse me fazer arquear as sobrancelhas só de passar o olho pela sinopse. Kick-Heart
ser tão pouco convencional e comercial não causa espanto quando vemos que se
trata do mesmo diretor de Kaiba (já
comentado porcamente aqui no ELBR: Kaiba: Um conto de fadas Cyberpunk e melancólico para crianças adultas), Kemonozume, Mind Game e Tatami Galaxy. Masaaki
Yuasa gosta de nadar contra a corrente, como o próprio define, gosta de fugir
do que é popular por achar que é saudável para a indústria a diversidade. O que
é uma ótima visão.
A história tem
como cenário o Wrestling profissional onde os lutadores escondem sua identidade
e criam fama como se fossem super heróis. Maskman M (Tatsuhisa Suzuki) é um lutador que esconde o fato de gostar de ser espancado no
ringue. Secretamente, ele sonha em duelar com a lutadora sadista Lady S (Takako Honda). Por uma coincidência
do destino, Lady S vem a descobrir a verdadeira identidade de Maskman e quando
finalmente os dois se encontram no palco, voam faíscas e... hormônios.
Se você estava
curioso de como algo assim pudesse se desenvolver, eu diria que vai pelo
caminho mais obvio e não deixa de ser excitante por causa disso. Um dos maiores
estímulos do BDSM é a sensação de proibido, de estar burlando as regras
impostas pela sociedade. É um jogo sexual muito mais psicológico e físico do
que a simples exposição de órgãos sexuais. E Yuasa consegue tecer uma teia de
relações sem precisar dizer muito, apenas mostrando ou insinuando. O conceito
de Romeu e Julieta da história está no proibido. A identidade secreta de Maskman
M é o altruísta Romeo Maki (nada disso é
spoiler), benfeitor de um orfanato de crianças humildes caindo aos pedaços,
e Lady S é a noviça irmã Juliet que é designada para este orfanato. Dessa
forma, suas máscaras e trajes justíssimos soam como artefatos BDSM e o ringue
se transforma no palco dessa relação.
Em uma de suas
entrevistas, Yuasa diz ter se inspirado ao se questionar porque lutadores
profissionais iriam dedicar suas vidas para serem espancados, e então se
perguntou se não havia nenhum tipo de prazer masoquista naquilo. Em Kick-Heart
ele desenvolve essa linha de pensamento. O mundo do Wrestling profissional pode
parecer bizarro, mas é altamente disciplinado e traz consigo uma alta carga
emocional como uma válvula que dá vazão a um dos instintos mais primitivos do
ser humano. O mesmo para o BDSM, eu diria. Nunca se sentiu preso às mordaças
das convenções sociais [que são necessárias para uma melhor convivência
pacifica]? A arte é um dos meios que se permite extravasar todos estes
sentimentos contidos, assim como os esportes [que também são uma forma de arte].
Kick-Heart
transmite sentimentos de sexo e desejo através de sua arte abstrata, o que é
bem estranho de se sentir, porque as ações e a arte não são nem um pouco
atraentes. Os movimentos, a ação, a arte, tudo isso vai do áspero ao cartunesco
com flexibilidade. Isso é porque não é o visual, mas a ideia daquilo que excita a mente. É puramente
abstrato, pura abstração. Kick-Heart tem uma das melhores sequências de sexo e orgasmo
já vistas em uma animação (este ano ainda teve aquela excitante cena do pé em Kotonoha no Niwa, provando que há muitas formas interessantes de se mostrar sexo), e eu advirto: não é todos que vão perceber, nem ao
menos sentir este timing. Perto do
clímax [da luta e de suas atividades promiscuas, já que ambos estavam cientes
que estavam dando prazer um ao outro], a respiração de Lady S vai ficando cada
vez mais pesada e Yuasa propositalmente cessa a trilha sonora, tornando a ação
ofegante muito mais expressiva, e embora a obvia conotação sexual, a interpretação
de sua seiyuu não tem aquelas nuances sexuais. Ambos estão completamente
esgotados fisicamente, mas ela insiste em pular em cima dele e desnorteá-lo por
completo, como dois parceiros copulando violentamente. A cada contato físico, uma explosão de cores
que expressam os sentidos dos personagens.
A
expressividade visual de Kick-Heart é muito divertida, é só um curta bobinho de
12 minutos, mas que nem por isso deixa de contar uma história e apresentar seus
personagens. Ter consciência que se trata de um curta, é o que torna Kick-Heart
tão divertidinho. Yuasa usa com sabedoria o tempo que tem. A animação é
colorida, bem fluída, e a ação é dinâmica e bem humorada. A trilha sonora é
envolvente, já começa com um ritmo bem “jungle” e animalescamente bem humorada,
aludindo à natureza selvagem que há no interior desses personagens – e durante
o percurso, a mesma peça volta com um arranjo ligeraimente modificado, deixando
pra trás o ritmo percussionista e se tornando mais grave. Um grande é mérito
jaz na apresentação dos personagens. Eles nunca nos soam como degenerados, mas
como figuras muito empáticas e simpáticas. Nos primeiros minutos há uma
sequência hilária de Maskman M apático enfrentando uma lutadora com obesidade mórbida,
quando enfim na substituição de pares ele recebe um nocaute no peito de Lady S,
formando um coração reluzente no local, mas para o seu desespero, antes que
pudesse voltar ao ringue e receber os tapinhas da S, seu parceiro toma seu
lugar e a acaba levando a sova que deveria ser dele.
Este curta tem
um cenário de fundo que é meio deprimente, formando uma linha contrastante
entre miséria e riqueza. Maskman M começa a história recebendo provavelmente
pela primeira vez a oportunidade de competir em um torneio maior do que está
acostumado, mas sob a pressão de uma grande liga e precisando seguir um roteiro
pré-estabelecido, em que seria necessário deixar o outro time ganhar, o que explica
a apatia de Maskman M nos primeiros minutos frente à sua adversária. No
entanto, ao ser golpeado por Lady S, algo acende dentro dele, que vence a luta
que deveria perder. Agora ele está de volta à sarjeta. Kick-Heart narra sua
volta por cima e a chance de ajudar financeiramente na reconstrução do
orfanato, mas pode se dizer que é mais do que isto, é a chance de voltar a se
sentir vivo dentro dos ringues, expressado por sua rivalidade com Lady S. Neste
caso, mesmo uma hipotética derrota, poderá representar uma vitória.
Ele é
masoquista. Ela uma dominatrix sádica. Quanto mais dor ele sente, mais contente
e mais forte se sente. Ela quanto mais dor inflige, mais satisfeita fica. Diante
de um estimulo tão forte, nem mesmo a natureza manipulada de um resultado pode
pará-lo. Para Yuasa, ele é um herói que transforma a pressão em poder,
funcionando como uma metáfora para a pressão que a sociedade exerce sobre as
pessoas. Particularmente eu vejo como um retrato da própria visão do Yuasa
quanto a indústria. Declarações queixosas por parte do diretor não são raras,
ele já disse que o cinema está ortodoxo demais, com muitas formulas prontas,
que seus trabalhos não dão retorno comercial e por isso os investidores não
colocam fé no que produz. Assim, nem é tão difícil perceber a velha cartilha de
Joe do Amanhã sendo aplicado aqui refletindo a própria realidade em torno da
excentricidade do diretor.
É difícil
fazer uma leitura sobre Lady S, mas segundo Yuasa, há planos de levar a história
adiante. Me permitam dizer o que sei: o pai de Juliet é a figura que manipula
os resultados (aparentemente o senhor
misterioso que é visto fumando charutos do alto da plateia), talvez sem
saber que sua principal contratada, Lady S, seja na verdade a sua filha. Essa
que por sua vez se torna freira pelo carinho paterno que sente pelo padre, que
foi um lutador e principal rival de seu pai no ringue, e também fora dele pelo
amor de uma lutadora, que se tornou a freira do orfanato, mas ambos agora estão
velhos. A história é toda amarrada em uma série de coincidências abençoadas
pela ficção. Claro, eu não poderia saber desses detalhes do enredo só
assistindo, foi Yuasa quem disse em algum lugar tempos atrás, mas isso mostra
como a trama se revela mais pelo visual do que pelos diálogos, porque depois do
spoiler, é fácil perceber todos esses elementos alinhados numa narrativa em que
se torna preciso se manter atento para pegar as nuances.
Então, talvez
não seja equivocado ler Lady S como uma mulher que expressa através da violência,
a sua insatisfação com as coisas ao seu redor. Lady S seria um alter ego que a
possibilita ser, ao contrário de Juliet. Enfim, não deixa de ser curioso todos
estes projetos pilotos recentes, que estreiam como um termômetro para medir seu
potencial frente ao publico na internet. Recentemente Kyousougiga depois da
série de curtas ganhou um anime para tv, e é questão de tempo até Little Witch Academia se tornar uma série maior, e Kick-Heart possui a mesma pretensão.
Seria este o caminho a partir de agora para produções mais autorais em busca de
financiamentos?
Tipo:
Curta-metragem
Duração: 12
min. e 46 seg.
Direção,
roteiro: Masaaki Yuasa
Estúdio:
Production I.G.
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