quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Kikumana (2001): A Solidão De Quem Só Tem Memórias

Ganhador do Japan Digital Animation Festival: premio Tomushito, Kikumana é um curta-metragem independente do diretor Yoshiura Yasuhiro sobre uma garota presa num quarto, onde diversos fragmentos contidos ali montam seu quebra-cabeça.
Experimental, tanto no que se refere a conceitos quanto a modo de produção, Kikumana é o segundo curta-metragem produzido por um Yasuhiro Yoshiura (Harmonie, Eve no Jikan, Patema Inverted) em inicio de carreira, e também o projeto de fundação do seu estúdio de animação, o Studio Rikka. Uma história de exercício de narrativa visual onde o texto pouco importa e a falta de informações dá asas à imaginação. Portanto, é uma trama sobre uma absorvente atmosfera. Ao contrário de Noisy Birth (2000), produzido inteiramente sozinho, Kikumana conta com o auxilio de profissionais de sonoplastia – que se mostrou essencial para o bom desempenho de uma produção tão atmosférica. Mas, novamente é ele quem produz sozinho a animação, com PowerMac G3 350MHz, Photoshop e alguns outros softwares básicos.



Assisti Kikumana algumas muitas vezes e sempre fico me sentido desnorteada. O conceito é fascinante e trabalha sobre os mesmos temas que vemos em todas as obras de Yoshiura, evidenciando seu enorme potencial como um diretor autoral. Uma menina desperta em um quarto delimitado por uma biblioteca de proporções absurdas, paredes repletas de sombras, molduras com retratos, mas o que chama a atenção mesmo é a enorme diversidade de livros espalhados pelo local. Ela dá uma volta pelo quarto e eventualmente começa a folhear um livro. Uma estranha figura de cubo sai deste livro e a menina se vê tragada por uma cadeia de imagens em um universo fantástico no que parece ser uma realidade alterada.

O que há de mais incrível e instigante em Kikumana é a sua atmosfera inquietante e a sua narrativa visual. A história mostra o fetiche de Yoshiura por múltiplas realidades, mundos, universos, o insustentável vazio do ser em busca de um sentido para o que sentimos e vemos. Estaria Kikumana vivenciando o sobrenatural ou vivendo uma experiência extra-sensorial? Isto não importa tanto quando o próprio autor deixa o caminho aberto para interpretações várias, mas podemos aproximar padrões.

Embora Kikuma tenha uma narrativa visual surrealista, Yoshiura é um aficionado por sci-fi, sendo influenciado por ícones do gênero, o que se reflete em suas produções. Porém ele se mostra mais interessado nas implicações humanas do que propriamente na tecnologia. Aqui nós temos um peixe mecânico, um tropo que reconhecidamente relaciona o homem a espiritualidade. Kikumana na realidade palpável utiliza uma espécie de mascara facial branca, como se fosse uma pintura, mas quando tomada pelo fluxo da subjetividade, ela é retratada com o rosto limpo e à mostra em meio a diversos lapsos temporais oníricos. Ora caindo por um tubo, cercada de recordações [molduras], ora estática enquanto diversas pessoas representadas por sombras passam por ela indiferentes à sua presença. Kikumana conta ainda com outros tropos simbólicos, como o espelho. Que é utilizado por Yoshiura tanto para refletir as emoções internas da garota – o campo psíquico no qual se passa todos os seus maiores conflitos – como para representar a ligação entre o universo físico e onírico, caracterizado pela quebra do espelho, com Kikumana adentrando neste universo desfragmentado, inconsciente e inconstante.

Logo vemos múltiplas escadarias infinitas suspensas por cabos – no que eu acredito se tratar de uma referência à infinidade de histórias, fragmentos e experiências contidas numa biblioteca, que se assemelha a capacidade da memória humana em internalizar dentro de si as experiências que vive no mundo material – onde homens com aparência de bonecos sobem uma escada para então se jogarem no abismo infinito, enquanto ela permanece imóvel no limiar entre as duas ações. O que talvez seja o melhor reflexo do seu emocional, com ela querendo abrir mão da vida, mas com o corpo ainda incapaz de dar o passo seguinte ao ato fatal. A edição é fundamental para compreendermos o ato seguinte. Com apenas um corte, Yoshiura nos mostra o estopim que culminou no que veríamos na cena seguinte, onde vários bonecos humanos se enfileiram e percebemos que ela finalmente se jogou. 
O trabalho que Yoshiura faz para ilustrar esse universo onírico de Kikumana é fantástico, com todas as características fragmentárias de um daqueles sonhos surreais e bizarros que experimentos ao menos uma vez na vida. Os efeitos de fundo e a trilha sonora pesada dá um aspecto aterrador de pesadelo a este sonho. O corte com Kikumana adormecida sobre o livro e as batidas do relógio ressoando no denso silêncio e então seu despertar novamente com a expressão facial de uma máscara, para mim são o suficiente para entender que ela estava sonhando. A sequência dessa trama é ainda mais fantástica, pois ilustram [embora de modo rebuscado] um acontecimento que, ao que parece, foi fundamental para levar Kikumana a se fechar para o mundo [como reflete o ambiente ao seu redor, o quarto claustrofóbico, a máscara, etc]. É quando as emoções internas se tornam praticamente tangíveis e o curta ganha ares daquelas tramas típicas orquestradas por Satoshi Kon, onde espaço e tempo, abstrações psíquicas e mundo material se confundem. Mas na nossa realidade, os únicos e monstros e fantasmas que nos perturbam a noite são aqueles criados por nós mesmos em nosso subconsciente. A cena da mão que Kikumana havia visto anteriormente – como um fantasma –, mas que na verdade é a sua mão apontando para ela mesma, permanece sendo uma das mais enigmáticas e sedutoras deste curta. A impressão que ficou é que Kikumana se culpa por algo, deixando de viver por este fardo fantasma do passado.

O mundo que enxergamos a nossa volta é sensorial e como tal, modifica-se a cada perspectiva pessoal. Kikumana é retratada em um quarto escuro, fechado, solitário e ela com um ar melancólico afetando toda a atmosfera. Logo, as impressões subjetivas que possui ao entrar em contato com novos universos contidos nos livros, porta-retratos repletos de memórias afetivas e objetos, afeta seu estado emocional e transforma sua percepção de espaço e tempo naquele momento. Sendo as estranhezas que vemos nada mais que frutos do seu psicólogo. Pelo menos é a conclusão que cheguei, a ausência de certezas sobre um contexto envolvendo a garota é o que possibilita a imersão e amplas interpretações a este projeto. A abstração de Kikumana é como o canto da sereia, que perseguimos com extremo esplendor. A melancolia do inverso, a obscuridade de um quarto fechado por dentro repleto de recordações. Simplesmente belo.

Destaque para a tecnologia 3DCG, o uso de CG e a integração com o 2D. A fotografia em preto e branco com pincelados com tons de cinza colabora bastante para a atmosfera melancólica e o aspecto fundamental da narrativa que são as lembranças, uma vida retida ao passado (no arquivo original, o cinza é mais substancial). O contraste de luz e sombras evocam o surrealismo presente na atmosfera. Também fiquei admirada com a movimentação da “câmera” que gira em círculos com suas diferenciadas perspectivas e profundidade de campo, que fazia soar como uma produção com atores real. A tecnologia 3DCG com as camadas de 2D somadas à animação desenhada a mão, certamente é o que possibilitou essa experiência visual.

Como última nota de pensamento, achei impressionante como Kikumana é expressiva, mesmo sem uma única linha de texto. Sua respiração pesada, olhares vagos que expressão sua solidão e abandono, o sentimento insuperável de perda são características que ressoam. 

Avaliação: ★    ★
Ano: 2001
Estúdio: Rikka
Duração: 06 minutos
Páginas: ANN, MAL

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