domingo, 9 de agosto de 2015

Becchin to Mandara – Velveteen & Mandala (2009): Colegiais Vs Zumbis

Garotas de colegiais enfrentando o apocalipse da guerra e dos zumbis, em cotidiano transloucado.
Texto dedicado ao Panino Manino.

A guerra paira sobre a vida cotidiana das metrópoles, levando duas meninas a escaparem deste pesadelo nos arredores bucólicos de Suginami, em uma ribeira onde os espíritos residem – com isto, as garotas; Becchin e Mandara começam a presenciar estranhas anomalias em decomposição – que se podem chamar vulgarmente de zumbis – e um estranho fenômeno provocado pelo local, que serve como uma espécie de aterro sanitário, onde agentes governamentais jogam os detritos da guerra, incluindo aí toda espécie de lixo e até mesmo cadáveres humanos. Neste local, as garotas conhecem o Vigilante – ou simplesmente The Super (superintendente) na tradução da Vertical –, um garoto que anda parcialmente nu e é responsável por limpar a área das estranhas anomalias. Nesta missão, ele contará com a ajuda de Becchin e Madara, as únicas pessoas vivas naquele local, ou assim se acredita. Como os adultos se provaram incapazes, a juventude deve pegar em armas.

O mundo de Becchin to Mandara (Velveteen & Mandara, na adaptação da editora Vertical) é uma distopia. O cotidiano de Becchin e Mandara é uma aventura. E a relação entre as duas é de uma genuína amizade. O que me deixou incrédula em relação a algumas opiniões, que não conseguiram compreender uma natureza tão tempestuosa de uma legitima amizade que cresce em companheirismo, mas também egoísmo e individualismo, alimentando conflitos inevitáveis – a fome é uma situação crítica na qual elas atingem e, passam por isso durante boa parte do percurso do mangá, que me parece improvável qualquer outro quadro diferente deste, incluindo ai inevitáveis rivalidades pelo de comer ou pela falta deste. De uma tonalidade naturalmente lúgubre, muito comum nas histórias do autor Jiro Matsumoto, esta característica não destoa sequer nos momentos mais autenticamente divertidos e felizes entre as duas garotas, pois no plano ao fundo é perceptível o cenário de pobreza/sujeira e esterilidade, ou mesmo no primeiro plano, nas expressões e comportamentos largados das garotas, se vê a cara da morte e violência refletida em instabilidade psicológica e irrevogavelmente em dessincronia com a realidade. Características também comumente nas histórias de Matsumoto. Como se o único refugio possível para um cenário de horrível pesadelo sem fim fosse no escapismo da mente. 



Jiro Matsumoto e sua caracteristica introdução-narrativa vertiginosa.

Se tratando de padrões seguidos na estruturação narrativa de Matsumoto, uma das suas características mais notáveis, e que mais me agradam, é a sua montagem assimétrica dos acontecimentos, com flashbacks inesperados se confundindo com a narrativa em tempo real e eventos sendo contados fora da ordem linear, criando uma inebriante e desconcertante atmosfera metafísica onde fantasia e realidade parecem se misturar. É uma das razões do relacionamento entre Becchin e Mandara crescer tanto e por algum motivo, que só entenderemos ao fim, parecer em certo ponto desconexo. Elas brigam muitas vezes, o tempo todo pra dizer o mínimo, mas é tão sensível e meigo o quanto isto é a representação máxima do carinho que nutrem uma pela outra. Como crianças, que na ausência de palavras, precisam demonstrar seu afeto através de contatos físicos, muitas vezes sendo este violento. Brigar por comida, por ausência de sintonia, e opiniões divergentes é aquilo que mais nos aproxima de uma intimidade verdadeira. 

O que dificulta uma plenitude entre Becchin e Mandara é exatamente aquilo que as une; seus fantasmas internos e combalido estado psíquico-emocional. Assim, elas se atraem e se repelem com a mesma intensidade e violência. As pitadas de humor negro se fazem presentes em conversas descontraídas ou momentos mais densos, mas o que me chamou mais atenção é a naturalidade com a qual elas conversam sobre estarem sem tomar seus medicamentos e os efeitos que notamos sobre isso – para quem observa tal cena de uma perspectiva distante, não pode deixar de sentir uma leveza espiritual contrastada com um sutil sentido de humor trágico que emana de tudo aquilo. Mas, mesmo que Becchin tenha seus traumas e complexos psicológicos que a tornam em certo ponto alucinada/paranóica e uma figura dissonante ao lado de pessoas que julgamos “normais”, ao lado d’o Vigilante e de Mandara, ela soa a pessoa mais centrada e equilibrada do mundo. Enquanto um vive balbuciando frases desconexas e sem sentidos, em sua grande maioria referência a produções do estúdio Ghibli, Mandara é uma personagem com alto grau de paranoia e complexo infantil, com um corpo de uma garota adolescente, mas a mentalidade de uma criança – fato que se constata em como ela usa pronomes de tratamentos e refere-se a se mesma na terceira pessoa, característica usada em produções japoneses que denotam um estado espiritual infantil e aparente distúrbio psiquiátrico, como a Nyu de Elfen Lied, ou a Pipi de The Music of Marie





Mandara sabe botar pressão sobre seu alvo! Sequência sensacional onde Mandara atinge um nível alto de paranoia e a relação entre brincadeira de amigas e seriedade se confundem.

Nesse sentido, é absolutamente compreensível o quanto o convívio com Mandara se torna difícil para Becchin. Mandara é uma garota difícil de se lidar, entender e se relacionar – perdida no seu próprio mundo, sua relação com o mundo exterior é desconexo e conflitivo. Principalmente: é Becchin ser em certo grau também uma garota colapsada e solitária, que torna possível que ambas possam se envolver em um relacionamento emocional tão forte sem que precisem expor seus mundos interiores – pois tanto para uma quanto para outra, este já é evidente –, que ao fim, é difícil não sentir pelas duas. Mais, notamos que é Mandara quem escolhe Becchin, embora seja esta quem lhe percebe primeiro; percebemos o valor deste relacionamento ao contrastar o relacionamento anterior de Mandara com suas antigas amigas, no qual ela deixava se enganar numa falsa amizade (dica: Ser Ou Não Ser...A Necessidade de Pertencer), enquanto com Becchin, tudo é mais sincero e conflitivo, dada a natureza de uma amizade verdadeira. 

Ainda assim, penso que a relação entre as duas é uma das coisas mais belas, de uma beleza etérea e pulsante, com uma energia e sinceridade que transcende a tangibilidade. Mas também tão frágil quanto o botão de uma flor. Os capítulos de descobertas, de aventuras episódicas que não possuem exatamente uma sentido linear, trazem diversas experimentações na forma de contar a história, e interações que tornam o relacionamento entre as duas garotas a essência do enredo, ainda que o fio condutor seja outro. Matsumoto atinge um nível excepcional aqui, equilibrando o drama, a tonalidade satírica e o ritmo narrativo, assim como suas mitologias. Principalmente nas sutilezas utilizadas na construção de uma personagem tão rica como Mandara, que de tão sutil, passa-se facilmente despercebido seus trejeitos e maneirismos mais significativos para estruturação da personagem. Como quando, depois de perguntar a natureza do sexo e ficar exposta a uma verdade que tenta fugir, ela mostrar uma tênue carência afetiva ao pedir que Becchin faça sexo com ela – que dá uma resposta extremante ingênua e cândida, ao dizer que não poderia fazer isso, já que não possuía um pênis. Matsumoto resguarda uma pureza, contrastante com o que se segue mais adiante, entre as duas que é envolvente, mas tão delicado que poderia facilmente se perder caso o caminho fosse outro. Afinal, é ali que notamos uma mudança de posicionamento de Mandara, respondendo à suas atitudes inesperadas ao fim da história. É perceptível a tormenta que toma conta do seu estado emocional, e o quanto isto a dilacera por dentro, digladiando contra uma realidade que toma conta do seu estado puro de espírito. A tentativa de afastamento de Becchin e falta de compreensão, para com ela, naquela situação, faz com que ela vá atrás de um antídoto, que é expurgar o lhe está tentando arrastar do seu idílico paraíso interno. Suas ações são, então, para isto, tipicamente infantis e sem grande raciocínio por trás e, embora horrível para uma mente sã e adulta, para Mandara é simples e efetivo. 



Em Becchin & Mandara, apesar da aparente lisergia, a storyboard da narrativa é simples de se seguir e de compreensão, onde mesmo a característica polarização entre realidade e fantasia, se mostra completamente simétrica, nem longe se assemelha a complexa montagem labiríntica de Wendy e Tropical Citron, por exemplo. O uso de visão cinematográfica na composição de plano-sequências e a energia cinética com que a história visual se movimenta continua sendo um dos maiores êxitos de Matsumoto. A arte permanece estilisticamente esboçada, em estado quase bruto, desenhada energicamente em cursos rápidos de caneta, que muitas vezes parece ter sido traçada em movimento único. Personagens criados em linhas finas, queixos pontiagudos e arestas nos contornos. Sombreados levados ao extremo, em formas que revelaram aparências repletas de charme estilístico, mesmo quando o personagem é destinado a ser feio. Eu sou uma apaixonada, por sua arte. É estonteante e tão repleta de vivacidade. Mas por parecer que não está completa, soando sem acabamento final, ela soa profundamente provocante aos nossos instintos. No entanto, acredito que é em Wendy que este tipo de arte melhor se comunica com o conteúdo do enredo.  

Agora, quando se para pra pensar, uma das coisas mais interessantes desta história são as referências e quebras de quarta parede. São elementos que parecem simplesmente jogados, mas que possuem um significado mais profundo que se alinha à temática da história. Entre diversas referências como Full Metal Panic, as mais significativas dizem respeito à Evangelion (com uma Rei em pé silenciosamente, sempre ao lado de algo mais chamativo, a ponto dela passar quase despercebida. Há um toque de humor silencioso sensacional em suas aparições que só quem assistiu Evangelion consegue captar verdadeiramente), produções do Ghibli, Gundam e Ideon – ambas criações de Yoshiyuki Tomino. A guerrae seus efeitos na sociedade possuem um papel fundamental nas obras de Matsumoto. Em Becchin & Mandara, em particular, este pensamento crítico paira na atmosfera da história, mas pouco soa como uma obra panfletista. A conclusão que se deve chegar, portanto, é de uma natureza muito particular, dado que o autor joga os dados indiretamente, demonstrando o obvio visual, mas sem precisar tornar isto um discurso falado. Além disto, o aspecto satírico suaviza sua abordagem. Becchin & Mandara deve ser visto incialmente como nada mais do que uma pílula de entretenimento escapista, embora aguce a fagulha naqueles já instintivamente despertos e seja irrevogavelmente um material que necessita reflexão, já que sem isto seu apelo se torna vazio de maior sentido, soando naturalmente como um nonsense sem pé nem cabeça. 

É muito obvio o quanto Evangelion reflete um estado apocalíptico do mundo, de pessoas cada vez mais voltadas ao individualismo, e Gundam denota a guerra que envolve e toma de assalto as vidas civis – e ainda assim, talvez, consiga se mostrar como uma visão apaixonada e repleta de glamour nacionalista; de lutar e morrer, viver e sofrer; sacrifícios necessários para um bem maior, e o quanto isto pode ser tão bonito e heróico através das lentes. Produções Ghibli, por sua vez, repercutem a urgência ecológica e a necessidade de um retorno a um estado idílico, que a guerra e os homens tomaram. A ribeira é um leito pacifico e puro, em um ambiente idílico; um dos únicos locais em que se encontra paz. No entanto, está sendo profanado. Deve ser defendido contra os “invasores”. Este lugar contém uma anomalia que naturalmente afasta as pessoas e torna a vida humana improvável, e, no entanto, ele não faz nenhum mal a Becchin ou Mandara. Afinal, elas são garotas diferentes, com um psicológico que as mantém imunes. 
Becchin to Mandara é um dos trabalhos mais cativantes de Matsumoto, com uma mitologia própria encantadora em um ambiente tomado por zumbis, onde as pessoas não sabem que estão mortas – lugar onde jogam objetivos de pessoas vítimas da guerra, ou o corpo destas mesmas pessoas. E então, eles se levantam e se comportam como se não houvessem morrido, denotando um apego, qualquer resquício de uma antiga vida, enquanto se decompõe. Então, percebemos que estas são memórias. Memórias de vidas interrompidas pela guerra, que ainda continuam habitando cada objetivo, foto ou corpo em estado de putrefação. As memórias permanecem vivas, com o espírito impregnando todas as coisas, como se o corpo físico nunca tivesse se rompido. Becchin to Mandara é magnífico neste sentido, eu sinto que poderia falar particularmente sobre todas as coisas que tornam este mangá uma obra muito maior do que ela parece ser, e acho que isto é a melhor evidência de quando algo bate muito forte em você. 
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A minha edição do mangá é a americana, editada e adaptada pela editora Vertica em um volume pequeno e grosso (128mm x 178mm x 24mm – “formatinho livro de bolso”) de 344 páginas. O papel é jornal, como o que se utiliza normalmente por aqui, e a gramatura é bem grossa e boa de manusear. As traduções e adaptações me pareceram adequadas, único ponto negativo é a ausência do posfácio do autor, comentando acerca de algumas possíveis influencias sociais, que deram origem ao enredo desta história. Este mangá eu ganhei do Panino Manino, e o guardo com muito carinho entre meus outros exemplares. Imagino o motivo por ter me dado ESTE mangá, e isto aumenta seu valor afetivo.

Obs.: as traduções nas páginas postadas neste texto são minhas.

Nota: 8/10
Autor: Jiro Matsumoto
Volumes: 1 (finalizado)
Serialização: Manga Erotics F
Demográfico: indefinido/seinen
Licenciado: em inglês - Vertical

Trivia:
-Para o psiquiatra Carl Gustav Jung, as Mandalas eram como expressões do inconsciente, muito provavelmente por estas serem diagramas ou representações esquemáticas e simbólicas do macrocosmo e do interior do ser humano. São muito utilizadas no budismo e hinduísmo e encontradas em todas as tradições religiosas. Partindo do princípio de que tudo começa no nosso campo vibracional e, portanto na nossa mente, e que todas as nossas decisões são tomadas com base no que sentimos e pensamos, as mandalas são poderosas, pois  são capazes de mudar nosso padrão vibracional. Representa a psique e o cosmos em sua infinitude, sendo assim, representando também o eterno retorno dos ciclos da natureza, levando em conta sua esfera circular. Isso implica simplesmente a forte natureza espiritual e casta de Mandara (Mandala, originalmente, já que japoneses pronunciam o L como R).
-Becchin é um hiragana fonético, e tal como o "chan", é uma forma de tratamento (honoríficos) que denota intimidade, carinho ou infantilidade, é utilizado é após o nome inteiro ou abreviado, caracterizando um diminutivo no nome; uma especie de apelido. O diminutivo -chan às vezes é elidida como -chin. Por isso "Becchin".


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