terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Das Antigas: Cat Soup – Uma Viagem Psicodelica Além da Matéria

Uma obra altamente visual, com alguns balões de fala que adornam a estética mas não fazem diferença no entendimento, que demonstram o potencial de um roteiro transmitido através unicamente da ação pela animação. Uma obra genial, uma das mais criativas já produzidas pela animação, englobando tudo que lhe há de mais caro.

Já ouviram falar da sopa primordial? É uma das teorias acerca da origem do universo, que grosseiramente falando, é como se fosse um grande nada onde a conjunção entre diversos elementos químicos davam origem à vida existente no planeta. Pense numa lousa em branco e em um pincel que lentamente começa a preencher este espaço em branco.

É como um universo cosmogônico, metafisico, onde as leis da física não podem ser aplicadas, algo que é inacessível quando se está preso na materialidade do corpo humano, sendo necessário a transcendência do espirito para atingir tais esferas superiores de consciência. 
 

Esse é o tema de Cat Soup, ou pelo menos, do delirante OVA de 2001 capitaneada pelo bom mestre Tatsuo Sato e carpintada pelo brilhante Masaaki Yuasa (KaibaPing Pong The Animation) – adaptação do emblemático mangá cult  Nekojiru, conhecido especialmente por ser uma cria do underground japonês com a acidez crítica indigerível para o paladar maistream. Cat Soup é um recorte; um retalho com alguns dos momentos mais icônicos da obra original, transportados para um cenário quase original imaginado por Yuasa. Neste aspecto, Cat Soup é uma obra de assinatura autoral e de bastante originalidade, onde a criatividade é a maior característica. 

No making-of da produção ficamos sabendo que Yuasa solicitou aos animadores determinada sequência, relacionada a um pássaro que “engoliu” o céu, e todos ficaram perdidos, justificando que nunca haviam visto um exemplar – obviamente, já que tal criatura mística folclórica só existia na mente de Yuasa; então ele mesmo teve que ir lá dar forma à sua imaginação. 
É uma sequência magnifica, uma das muitas que preenchem Cat Soup de folego e vivacidade. 

É uma obra que cativa por ser excepcional. E o é. Um ensaio, uma peça experimental, seria o que melhor lhe define. 

A saga surrealista e psicodélica dos gatinhos politicamente incorretos tem inicio no anime quando o gatinho antropomórfico Nyatta sofre uma experiência extracorpórea e vê a alma de sua irmã Nyako ser levada por uma estátua de Buda, também antropomórfico. Na tentativa de trazer sua alma de volta e salvar-lhe da morte certa, Nyatta numa disputa surreal com a estátua de Buda, acaba dividindo o espirito dela em dois. Sim! Você não leu errado. O espirito de Nyako é rasgado como se fosse algodão doce, com cada um deles ficando com uma parte. O resultado disto é que Nyako acaba perdendo as capacidades cognitivas, se tornando uma garota irracional e sem suas capacidades motoras – vulgarmente falando em um termo chulo, ela vira uma retardada mental. 

O que observamos a partir de então é um espetáculo fascinante aparentemente nonsense e surrealista, uma jornada espiritual transcendental em um estado alterado de consciência em busca de um aprendizado onde as respostas embora simples nunca são diluídas ao ponto de se tornarem facilmente compreendidas. É tecnicamente um videoclipe, um punhado de cenas mirabolantes e virtuosas que formam uma espécie de colcha de retalhos. É também como define o diretor principal, Tatsuo Sato (Martian Successor Nadesico). Ele diz que não há um sentido exato. Mesmo a sequência onde ocorre um diluvio com Nyako e Nyatta se salvando em um barco com o peixe e um porco (que serve de alimento para os dois gatos numa cena sensacional, onde eles se negam a comer um peixe por motivos bem peculiares), onde observamos ao fundo o ciclo da criação através de metáforas facilmente compreendidas, não é nada mais que um capricho artístico. Ou mesmo a sequência do Grand Guignol, uma espécie de circo dos horrores, onde Deus é um velho sábio carrasco, não quer dizer mais do que se vê na tela. 
 
Mas a intenção do criador não deve ser levada como verdade universal, pois a razão é algo que foge do controle da arte e a imaginação é uma zona formada em grande parte pela subjetividade inconsciente que é alimentada pelo espaço semiótico ao redor. Então, nem sempre o próprio criado entende o que está criando. Ainda, devemos levar em consideração que por mais autoral que seja, é uma obra que traz toda uma bagagem existencialista criada por um outro autor, além de Cat Soup ter a imagética e personalidade de um Yuasa sem rédeas criativas. Ainda sem receber um grande espaço na animação japonesa, Sato quis dar toda a liberdade criativa que Yuasa tinha direito. 

Por mais que exista toda uma ambiguidade interpretativa, como o inicio e o final que podem ser interpretados de maneiras completamente distintas, é inegável a existência de uma estrutura esotérica por sob as camadas de uma obra aparentemente sem sentido lúcido – oras, é uma herança herdada ainda do original em seu teor toxicamente alucinógeno e as experiências difundidas por uma mente doente e cínica. 

O tom de Cat Soup é de transcendência mística de peregrinação em busca do conhecimento do eu e do mundo. Uma das coisas mais interessantemente desconcertantes do OVA é o fato de não haver diálogos na linguagem humana, mas através de miados e zunidos estranhos à nós – há também o curioso recurso da pantomima, que em Cat Soup acaba agregando à sua gênese artesanal. É numa dessas, que, logo no começo do OVA, que o Buda transmite uma importante resposta ao que Nyatto está buscando em sua peregrinação (ou irá buscar), no entanto, naquela hora ele é incapaz de perceber, pois estava absorto em meio aos seus próprios problemas para prestar atenção ao que estava bem adiante de seus olhos. Porém, uma importante lição é que para alguns, a dura jornada em busca de algum sentido é essencial para que possa compreender que o que ele procura está bem diante dos seus olhos. O maior segredo é não haver mistério algum. 

Obs: eu comecei a escrever sobre o mangá, mas pela sua extensão, acho que merece um artigo próprio. 

Nota: 10/10
Duração: 34 min.
Fonte: Mangá
Estúdio: JC Staff
Diretor: Tatsuo Sato
Planejamento da História: Masaaki Yuasa, Tatsuo Sato
Storyboard e diretor de animação: Masaaki Yuasa
Diretor de Arte: Goki Nakamura
Música: Hiroshi Ogasawara

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