domingo, 17 de janeiro de 2016

Guest Post: OBSCURO INIMIGO DA COR: mangá Aku no Hana

Voltamos com mais uma edição de postagens escritas por convidados, ao qual chamamos de 'guest post'. Com uma figurinha repetida, o Paulista, autor do polêmico texto sobre Steins;Gate. Confiram ai.
Por Paulista

Na Europa do séc. XIX surgiu um movimento estético que ficou conhecido como Simbolismo. Mas de certa forma, existe uma linha de continuidade que vinha do romantismo e regava o jardim do Simbolismo. Esse movimento se originou na França com o Mallarmé o Rimbaud e essa galera aí (claro que estou falando do Simbolismo). Pra terminar a contextualização, é importante citar um autor que está tanto da raiz do que se chamou depois de Simbolismo, quanto na própria poesia moderna como um todo. Ele é inferior ao Mallarmé, mas se tornou até mais popular do que ele; o nome desse autor era Charles Baudelaire (a gente deve dizer: Bôdelér, porque em francês se lê assim).

O Baudelaire era um cara louco de verdade (dá uma olhada na cara de mal dele aí embaixo). Ele morreu de sífilis devido às suas contínuas e inumeráveis surubas. Ele foi interditado pela própria mãe também, por seu consumo de álcool e drogas. Mas é por isso que eu citei o romantismo aqui. Porque o Baudelaire era o verdadeiro poeta romântico da geração do “Mal do Século”. Se eu fosse comparar com um jogador, eu diria que ele foi o Eric Cantona (francês também) da poesia; ou se fosse comparar com X-Men, eu diria que ele era o Wolverine (esse canadense, ou seja, semi-francês). Ele era muito sem noção!
Mas o que nos interessa é a publicação de um livro dele. O livro “Flores do Mal” (livro do Baudelaire, não do Wolverine!) foi traduzido pra quase todos os idiomas conhecidos e é um dos livros-modelo do Simbolismo. É um livro que tem um conjunto de pequenos poemas, como esse aqui:

INIMIGO

   Meus jovens anos não passaram de intempérie
às vezes clareada por raios solares;
chuva e trovão causaram danos em tal série,
que poucas são as frutas frescas nos pomares.
   Agora que chego às ideias de outono,
é necessário recriar com pá e enxada,
onde a água cavou grandes covas de sono,
o solo infértil desta terra desolada!
   Quem saberá se as flores novas do agreste
não terão neste campo limpo pela peste
o místico alimento que lhes dá vigor?
   Ó dor! Ó dor! enquanto o tempo come a vida,
o obscuro inimigo rói a cor da cor
no coração, feito em pó já tudo e bebida!

Vocês agora entendem de onde eu tirei o título deste meu texto aqui, né!?

Voltando ao assunto. Entre as várias traduções, existe também aquela do idioma japonês – claro! O título “Aku no Hana”, do mangá de Shuuzou Oshimi é exatamente o título do livro do Baudelaire: “Hana” significa flor e “Aku” significa mal (lembrando que em japonês o adjetivo vem primeiro, então nesse “aku no hana” aí, não devemos dizer: “mal da flor”! dizemos: “flor do mal”).

Mas aí você se pergunta: por que o título do mangá é essa porra, caraio? A primeira razão (mais óbvia) é que o protagonista, o Kasuga, vivia pra cima e pra baixo com esse livro de poemas do Baudelaire. Ele é um personagem ultra “kuudere” que se achava diferente de todo mundo só porque lia a merda de um livro de poemas. Claro! Não é qualquer livro, mas o fato de você ler um livro não te qualifica pra abrir o Mar Vermelho, nem dar um pau no Majin-Boo. Um livro é só um livro. Mas, no mangá, fica meio que implícito essa ideia, de que o bostinha do Kasuga é especial, é sensível, é o gostosão da bala chita etc.

Logo no começo do mangá ele conhece a (Nakamura) Sawa, que será a outra personagem central (a história gira em torno da relação entre os dois). Continuando aqui com o “spoiler”... então a Sawa é introduzida de uma forma incomum no enredo: a professora chama ela para entregar a prova (com uma nota ruim e tal) e a Sawa manda essa professora chupar uma jiromba e xinga de tudo que é nome feio. É muito importante esse momento em que a Sawa é apresentada pelo autor e vou explicar porque, mas no final (aqui). Só lembrem-se disso: a maluca vai lá na frente pegar a prova e começa a falar palavrão e isso tem um motivo muito importante.

Depois de “conhecer” essa colega de sala retardada (chamada Sawa), o Kasuga fica dando uma de idiota na história e tal. Ele é apaixonado por uma gostosinha da sala dele (a Nanako) e não tem a moral de dar o papo reto pra ela. Essas coisa aí, que sempre acontecem nos mangás. Mas nessa de gostar da Nanako o Kasuga acaba pegando a calcinha dela pra cheirar. É típico também! A velha historinha do muleke punheteiro que pega uma calcinha suja pra descascar a banana. Mas é como eu digo: “atire a primeira pedra quem nunca”... etc.

O mais importante disso é que a trama sofre uma inflexão com isso. Porque quando o Kasuga viu a sacola da educação física que a Nanako funkeira esqueceu e ele pega a sacola e descobre a calcinha suja dentro do bagulho, ele achava que estava sozinho na sala de aula. O problema é que a Sawa também estava lá (de butuca), e ela acaba usando aquela informação para chantagear o retardado do Kasuga. Aí depois ela abre os caminhos dele etc. É melhor você pegar e ler o mangá nessa parte, véio!

O essencial aí é que o Kasuga é um inútil que fica lendo um livro inútil, mas quando ele conhece a Sawa, ele se torna um vida-loka (não no sentido estrito do termo). Mas, depois que o casalzinho (Sawa/Kasuga) faz um trupé da porra e ameaça se matar “coletivamente”, a vida volta ao normal e os respectivos pais (da Sawa e do Kasuga) separam os dois. Na verdade, é a família do Kasuga que caiu no mundo, porque ele fez a galera passar uma vergonha da porra (e no Japão, até hoje, a vergonha é um sentimento muito sério).

Depois começa a segunda parte da trama e o Kasuga conhece outra gostosa: a Aya Tokiwa (mangá é sempre assim, tem um idiota que a mulherada fica caindo matando e isso é inexplicável). Ela era metida a escrever umas merdas lá, mas não tinha a moral de assumir o lance, porque ela era popular também. Tipo é o dilema da “bonita/inteligente”: ela era bonita e, portanto popular, mas era inteligente (o que faria dela uma otaka). A Tokiwa resolve o dilema, fingindo que é só bonita e guarda seus sentimentos e ideias para si mesma; pelo menos até conhecer o Kasuga.
A partir daí, eles vão se acertando e tal, mas a gente se pergunta: e a Sawa? Por que ela sumiu do enredo (e olha que ela era muito interessante)? Nesse ponto, o autor reintroduz a Nanako (que teve a calcinha estuprada lá, no começo) e a Nanako traz as lembranças da trágica amizade (namoro?) entre o Kasuga e a Sawa. Resumindo: ele volta pra cidade da tragédia. A Tokiwa vai junto e lá ocorre um encontro frio entre a Sawa e o Kasuga (com a Aya no meio, segurando a vela).

A moral da história é simples. Assim como ocorre em outros mangás “seinen” ou “josei” (não tenho certeza de onde o “Aku no Hana se insere”), como o “Solanin” por exemplo, a vida é uma bosta. As pessoas, nesse caso, são como varejeiras cercando a vida (Kkkk! Parece aquele negócio do Scandella, no séc. 14, dizendo que o mundo era um queijo e os anjos seus vermes).

E é só isso? Não, porque tem uma coisa nesse mangá que faz dele muito original. Mais importante do que essa moral da história, é aquilo que acontece quando termina o enredo principal: que é o enredo no qual o Kasuga é o protagonista.

Com o final desse enredo, voltamos ao ponto em que a Sawa era introduzida na história. É então que temos a surpresa: ela enxerga tudo distorcido, como se as pessoas fossem monstros e, depois que ela está na rua, ela olha para cima e o céu também está distorcido e tal. Como explicar essas distorções? Por incrível que pareça, eu vinha acompanhando esse mangá (que acabou no ano passado, inclusive!) e também li muitos topix sobre a história, mas não vi ninguém que comentasse esse fato importantíssimo. Apenas uma maluca norte-americana escreveu uma coisa inteligente. Dizia ela que essa visão da Sawa podia ser duas coisas: 1)alegoria ou 2)loucura. Para mim é sem dúvida: loucura. A Sawa é simplesmente esquizofrênica. A distorção não pode ser uma alegoria (como, por exemplo, o personagem “Punpun”, daquele mangá do Inio Asano) porque a chave de leitura do mangá (Aku no Hana) é totalmente realista. O autor não introduziria um desfecho fantástico (típico de Realismo Mágico) num mangá realista. Portanto, a resposta é óbvia: a menina era doida.
Tá bom! Mas e daí? Daí que o sentido, na vida do protagonista (Kasuka), só veio a emergir no momento em que ele teve esse contato com o “outro mundo” (que existia atrás daquelaas montanhas que a Sawa sempre quis ir ver). Esse outro mundo passa pela loucura da Sawa (claro!), mas provavelmente, o autor quer nos dizer uma outra coisa; uma coisa mais sútil.

Então eu aponto o título daquele livro de novo: “Flores do Mal”. A flor tem uma simbologia muito própria, porque ela é bonita e delicada. Então, frequentemente, a flor está associada à ideia de beleza e de poesia; como no poema do Celan onde a “Schweigsame” (a Silenciosa) vem (“kommt”) e poda as tulipas (“und die Tulpen köpft”). Porém, a gente está falando de flores que são “do mal” – o que parece contraditório – mas é apenas uma metáfora para uma coisa que o Kant chamava de “Sublime”. O Sublime (em Kant) era melhor do que o Belo, porque o Sublime arrebata, comove, extasia. A “flor do mal” é facilmente pensável a partir dessa ideia do Sublime. 

Enfim, a Sawa era esse “Sublime” e é isso o que ela traz na vida daquele bostinha. Ah! Tem mais outra coisa: ela e ele não shipam! Talvez porque a vida seja uma bosta mesmo! E tipo, a intensidade do Sublime se torne demais pra um bostinha (como o Kasuga) suportar.

Paulista

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