Voltamos com mais uma edição de postagens escritas por convidados, ao qual chamamos de 'guest post'. Com uma figurinha repetida, o Paulista, autor do polêmico texto sobre Steins;Gate. Confiram ai.
Na Europa do séc. XIX surgiu um movimento estético que ficou conhecido como Simbolismo. Mas de certa forma, existe uma linha de continuidade que vinha do romantismo e regava o jardim do Simbolismo. Esse movimento se originou na França com o Mallarmé o Rimbaud e essa galera aí (claro que estou falando do Simbolismo). Pra terminar a contextualização, é importante citar um autor que está tanto da raiz do que se chamou depois de Simbolismo, quanto na própria poesia moderna como um todo. Ele é inferior ao Mallarmé, mas se tornou até mais popular do que ele; o nome desse autor era Charles Baudelaire (a gente deve dizer: Bôdelér, porque em francês se lê assim).
O Baudelaire era um cara louco de verdade (dá uma olhada na cara de mal dele aí embaixo). Ele morreu de sífilis devido às suas contínuas e inumeráveis surubas. Ele foi interditado pela própria mãe também, por seu consumo de álcool e drogas. Mas é por isso que eu citei o romantismo aqui. Porque o Baudelaire era o verdadeiro poeta romântico da geração do “Mal do Século”. Se eu fosse comparar com um jogador, eu diria que ele foi o Eric Cantona (francês também) da poesia; ou se fosse comparar com X-Men, eu diria que ele era o Wolverine (esse canadense, ou seja, semi-francês). Ele era muito sem noção!
Mas o que nos interessa é a publicação de um livro dele. O livro “Flores do Mal” (livro do Baudelaire, não do Wolverine!) foi traduzido pra quase todos os idiomas conhecidos e é um dos livros-modelo do Simbolismo. É um livro que tem um conjunto de pequenos poemas, como esse aqui:
INIMIGO
Meus jovens anos não passaram de intempérie
às vezes clareada por raios solares;
chuva e trovão causaram danos em tal série,
que poucas são as frutas frescas nos pomares.
Agora que chego às ideias de outono,
é necessário recriar com pá e enxada,
onde a água cavou grandes covas de sono,
o solo infértil desta terra desolada!
Quem saberá se as flores novas do agreste
não terão neste campo limpo pela peste
o místico alimento que lhes dá vigor?
Ó dor! Ó dor! enquanto o tempo come a vida,
o obscuro inimigo rói a cor da cor
no coração, feito em pó já tudo e bebida!
Vocês agora entendem de onde eu tirei o título deste meu texto aqui, né!?
Voltando ao assunto. Entre as várias traduções, existe também aquela do idioma japonês – claro! O título “Aku no Hana”, do mangá de Shuuzou Oshimi é exatamente o título do livro do Baudelaire: “Hana” significa flor e “Aku” significa mal (lembrando que em japonês o adjetivo vem primeiro, então nesse “aku no hana” aí, não devemos dizer: “mal da flor”! dizemos: “flor do mal”).
Mas aí você se pergunta: por que o título do mangá é essa porra, caraio? A primeira razão (mais óbvia) é que o protagonista, o Kasuga, vivia pra cima e pra baixo com esse livro de poemas do Baudelaire. Ele é um personagem ultra “kuudere” que se achava diferente de todo mundo só porque lia a merda de um livro de poemas. Claro! Não é qualquer livro, mas o fato de você ler um livro não te qualifica pra abrir o Mar Vermelho, nem dar um pau no Majin-Boo. Um livro é só um livro. Mas, no mangá, fica meio que implícito essa ideia, de que o bostinha do Kasuga é especial, é sensível, é o gostosão da bala chita etc.
Logo no começo do mangá ele conhece a (Nakamura) Sawa, que será a outra personagem central (a história gira em torno da relação entre os dois). Continuando aqui com o “spoiler”... então a Sawa é introduzida de uma forma incomum no enredo: a professora chama ela para entregar a prova (com uma nota ruim e tal) e a Sawa manda essa professora chupar uma jiromba e xinga de tudo que é nome feio. É muito importante esse momento em que a Sawa é apresentada pelo autor e vou explicar porque, mas no final (aqui). Só lembrem-se disso: a maluca vai lá na frente pegar a prova e começa a falar palavrão e isso tem um motivo muito importante.
Depois de “conhecer” essa colega de sala retardada (chamada Sawa), o Kasuga fica dando uma de idiota na história e tal. Ele é apaixonado por uma gostosinha da sala dele (a Nanako) e não tem a moral de dar o papo reto pra ela. Essas coisa aí, que sempre acontecem nos mangás. Mas nessa de gostar da Nanako o Kasuga acaba pegando a calcinha dela pra cheirar. É típico também! A velha historinha do muleke punheteiro que pega uma calcinha suja pra descascar a banana. Mas é como eu digo: “atire a primeira pedra quem nunca”... etc.
O mais importante disso é que a trama sofre uma inflexão com isso. Porque quando o Kasuga viu a sacola da educação física que a Nanako funkeira esqueceu e ele pega a sacola e descobre a calcinha suja dentro do bagulho, ele achava que estava sozinho na sala de aula. O problema é que a Sawa também estava lá (de butuca), e ela acaba usando aquela informação para chantagear o retardado do Kasuga. Aí depois ela abre os caminhos dele etc. É melhor você pegar e ler o mangá nessa parte, véio!
O essencial aí é que o Kasuga é um inútil que fica lendo um livro inútil, mas quando ele conhece a Sawa, ele se torna um vida-loka (não no sentido estrito do termo). Mas, depois que o casalzinho (Sawa/Kasuga) faz um trupé da porra e ameaça se matar “coletivamente”, a vida volta ao normal e os respectivos pais (da Sawa e do Kasuga) separam os dois. Na verdade, é a família do Kasuga que caiu no mundo, porque ele fez a galera passar uma vergonha da porra (e no Japão, até hoje, a vergonha é um sentimento muito sério).
Depois começa a segunda parte da trama e o Kasuga conhece outra gostosa: a Aya Tokiwa (mangá é sempre assim, tem um idiota que a mulherada fica caindo matando e isso é inexplicável). Ela era metida a escrever umas merdas lá, mas não tinha a moral de assumir o lance, porque ela era popular também. Tipo é o dilema da “bonita/inteligente”: ela era bonita e, portanto popular, mas era inteligente (o que faria dela uma otaka). A Tokiwa resolve o dilema, fingindo que é só bonita e guarda seus sentimentos e ideias para si mesma; pelo menos até conhecer o Kasuga.
A partir daí, eles vão se acertando e tal, mas a gente se pergunta: e a Sawa? Por que ela sumiu do enredo (e olha que ela era muito interessante)? Nesse ponto, o autor reintroduz a Nanako (que teve a calcinha estuprada lá, no começo) e a Nanako traz as lembranças da trágica amizade (namoro?) entre o Kasuga e a Sawa. Resumindo: ele volta pra cidade da tragédia. A Tokiwa vai junto e lá ocorre um encontro frio entre a Sawa e o Kasuga (com a Aya no meio, segurando a vela).
A moral da história é simples. Assim como ocorre em outros mangás “seinen” ou “josei” (não tenho certeza de onde o “Aku no Hana se insere”), como o “Solanin” por exemplo, a vida é uma bosta. As pessoas, nesse caso, são como varejeiras cercando a vida (Kkkk! Parece aquele negócio do Scandella, no séc. 14, dizendo que o mundo era um queijo e os anjos seus vermes).
E é só isso? Não, porque tem uma coisa nesse mangá que faz dele muito original. Mais importante do que essa moral da história, é aquilo que acontece quando termina o enredo principal: que é o enredo no qual o Kasuga é o protagonista.
Com o final desse enredo, voltamos ao ponto em que a Sawa era introduzida na história. É então que temos a surpresa: ela enxerga tudo distorcido, como se as pessoas fossem monstros e, depois que ela está na rua, ela olha para cima e o céu também está distorcido e tal. Como explicar essas distorções? Por incrível que pareça, eu vinha acompanhando esse mangá (que acabou no ano passado, inclusive!) e também li muitos topix sobre a história, mas não vi ninguém que comentasse esse fato importantíssimo. Apenas uma maluca norte-americana escreveu uma coisa inteligente. Dizia ela que essa visão da Sawa podia ser duas coisas: 1)alegoria ou 2)loucura. Para mim é sem dúvida: loucura. A Sawa é simplesmente esquizofrênica. A distorção não pode ser uma alegoria (como, por exemplo, o personagem “Punpun”, daquele mangá do Inio Asano) porque a chave de leitura do mangá (Aku no Hana) é totalmente realista. O autor não introduziria um desfecho fantástico (típico de Realismo Mágico) num mangá realista. Portanto, a resposta é óbvia: a menina era doida.
Tá bom! Mas e daí? Daí que o sentido, na vida do protagonista (Kasuka), só veio a emergir no momento em que ele teve esse contato com o “outro mundo” (que existia atrás daquelaas montanhas que a Sawa sempre quis ir ver). Esse outro mundo passa pela loucura da Sawa (claro!), mas provavelmente, o autor quer nos dizer uma outra coisa; uma coisa mais sútil.
Então eu aponto o título daquele livro de novo: “Flores do Mal”. A flor tem uma simbologia muito própria, porque ela é bonita e delicada. Então, frequentemente, a flor está associada à ideia de beleza e de poesia; como no poema do Celan onde a “Schweigsame” (a Silenciosa) vem (“kommt”) e poda as tulipas (“und die Tulpen köpft”). Porém, a gente está falando de flores que são “do mal” – o que parece contraditório – mas é apenas uma metáfora para uma coisa que o Kant chamava de “Sublime”. O Sublime (em Kant) era melhor do que o Belo, porque o Sublime arrebata, comove, extasia. A “flor do mal” é facilmente pensável a partir dessa ideia do Sublime.
Enfim, a Sawa era esse “Sublime” e é isso o que ela traz na vida daquele bostinha. Ah! Tem mais outra coisa: ela e ele não shipam! Talvez porque a vida seja uma bosta mesmo! E tipo, a intensidade do Sublime se torne demais pra um bostinha (como o Kasuga) suportar.
Paulista
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