Bonita história de uma criança que está reaprendendo a olhar
para os lados.
Contudo, esta não era a primeira vez de Miyori naquela
aldeia rodeada por uma floresta verdejante a perder de vista. Quando bebê, ela
estivera ali com seus pais, e durante um piquenique, ela se perde. Às vezes se
perder significa se encontrar. Então, antes mesmo que ela pudesse se dar conta
anos mais tarde, a verdade já estava ali no seu subconsciente. Ainda bebê,
Miyori tem um encontro inesperado com diversas criaturas que habitavam aquela
floresta. Ao contrário da cena que vemos dela, longe dos olhos dos pais (distantes e lado a lado um do outros, mas
dissonantes, conflitantes; ele despreocupado; ela mal humorada), brincando
com um cachorro durante um piquenique em uma atmosfera de desarmonia, no
interior da floresta as criaturas sobrenaturais a cercam numa cena que aflora
um calor humano que provavelmente ela pouco deve ter sentido em seus poucos
meses de vida.
Enquanto morava em Tokyo, com seus pais, Miyori nunca fora
feliz. Crescendo num lar desestabilizado por discussões frequentes, onde sua
mãe se mostrava extremamente insatisfeita com o casamento. Não apenas com o
casamento, mas com o papel diminuto que exercia nele. Tendo que largar a
profissão promissora ainda jovem para se dedicar à gravidez e ao
recém-casamento, a mãe de Miyori é amargurada e se sente prisioneira em um lar
onde o marido chega sempre tarde e não lhe dar o carinho que pensa merecer. Por
consequência, Miyori é quem acaba sofrendo com suas frustrações e o abandono
afetivo do pai. De fato, ela é muito parecida com sua mãe, em tudo eu diria. Principalmente
no gênio amargo. De personalidade difícil, Miyori nunca fez um amigo sequer:
espantava todos com sua carranca e criava frequentemente desafetos com seu ar
superior. Talvez, até mesmo inconscientemente, ela impedia que se aproximassem,
se mantendo distante.
Ah, a arrogância. Uma arma do infeliz. Mas mais do que uma
arma, a arrogância é um escudo de autodefesa. Antes que te ataquem, você ataca
primeiro. Ao atacar, você se defende. Durantes muitos anos, Miyori se manteve
autossuficiente, e quando ela finalmente retorna ao interior, o que vemos é um
conflito carregado de sutilezas. Miyori cai em abstinência e se debate em
lamentos internos. Ela quer voltar. Sente falta da cidade grande, da Coca-Cola,
do movimento, das lojas de variedades. Ela olha para o celular sem sinal, mas,
quanta tolice, menina. Nós sabemos que não você não tem para quem ligar. Ao
abrir o celular, a única coisa que ela faz é olhar pela ultima vez as fotos
tiradas à distância de seus pais no seio familiar que um dia existiu. A
distância sim, como se fosse um voyeur, como se não fizesse parte daquilo.
Então, simbolicamente, ela fecha o celular e o deixa cair no rio, para que a
correnteza o levasse de volta, numa sequência simbólica que fala por si mesma.
Aquela vida já era. Ficou para trás. Mas que vida? O que ela
sente falta é das distrações que Tokyo lhe oferecia. Aquilo era a sua fuga
diária, onde ela podia negar a sua realidade, fugir e maquiar falsas verdades.
Enquanto no interior, não havia para onde fugir. Sem alternativas, ela só podia
encarar seus pensamentos, olhar para dentro de si mesma. Refletir. Quantas
vezes, na nossa vida cotidiana pós-moderna cercados de tecnologia e distrações,
nos permitimos dialogar com nosso interior? Estamos sempre distraídos com algo.
Uma música, uma rede social, um vídeo, etc. Mesmo ouvindo musica, raramente
estamos de fato prestando atenção em todas as nuances daquela canção. Apenas
nos levamos pelo ritmo. Assistir um filme então!, uma tarefa penosa para se
executar sem pausas esporádicas. Longo demais. Temos que dar algumas ou
diversas pausas para conferir seu perfil virtual. Não há uma imersão absoluta. Logo,
quando tudo isto é tirado de Miyori, ela não tem alternativa. Ela precisa olhar
para si mesma e para as pessoas que estão em volta de si.
É ai que Miyori começa a entrar em conflitos com estes
sentimentos. Negação e isolamento; ela se nega a manter os hábitos interioranos
de seus avós em prol dos mesmos hábitos que compartilha com sua mãe (novamente: elas são muito parecidas),
talvez uma tentativa de manter um vínculo a qualquer custo. Raiva; surge a
revolta por ter sido abandonada, o ressentimento e inconformismo. Cada vez mais
intensa Miyori entra em choque com aquela realidade, fato que podemos
vislumbrar por sua reação paradoxal ao ser recepcionada com as boas vindas,
sendo pega de surpresa por todos os alunos da sua classe em seu primeiro dia de
aula. Ela se sente sem jeito e também irritada por tanto afeto e bajulação. Ela
que nunca recebera tanto carinho em sua vida, de modo que tanto não sabe lidar
com eles, como também se recusa a integrar a essa nova realidade: novamente,
uma desesperada tentativa de manter o vinculo antigo. Sua válvula de escape
está no garoto Daisuke (Yusuke Numata),
que ao contrário de todos, lhe recebe com hostilidade ao sentir que esta estava
menosprezando a eles, meros caipiras, e aquela aldeia, que não estava a sua
altura.
É por causa da hostilidade de Daisuke, que Miyori consegue
finalmente estravar toda a sua frustração. Entrando em um duelo físico com ele,
mais do que colocar para fora a frustração que sentia, finalmente conseguia
respirar, sendo ela mesma: de atos grosseiros e mal humorada, enfim ela não
precisava mais manter nenhum sorriso plástico na face. Aquela era ela e cabia a
todos agora, a aceitar ou não. Certamente Miyori pensou que a partir de então,
ela seria repudiada, mas ao contrário disso, ela foi acolhida. Aos poucos, com
a interação entre os seres da floresta e seus colegas, algo em Miyori começa a
mudar.
A aldeia corre risco de ser submergida por uma represa que
pretendem construir no lugar, e junto dela, a destruição de toda a floresta. Em
meio a isto, a mãe de Miyori retorna, tentando leva-la de volta para que possam
morar juntas em Tokyo. Esse é um dos momentos que mais me fascinaram em Miyori
no Mori. Com mãe e filha frente a frente, e sendo ambas tão parecidas, podemos
notar o quanto Miyori evoluiu emocionalmente naquele curto espaço de tempo. Ela
ainda tenta barganhar (este que é o
terceiro estágio dos 5 Estágios da aceitação), quer abraçar tanto o vinculo
familiar (ela diz para mãe que só
retorna para Tokyo, se ela e seu pai voltarem a morar juntos, como uma família),
quanto o novo vinculo criado (no ato de
tentar achar uma maneira de salvar a floresta dos humanos gananciosos).
Nisto, se nota que Miyori ainda tem um longo caminho pela
frente no que diz respeito a amadurecer emocionalmente. Ela sempre se culpou pela
desestruturação de sua família e por não ter sido capaz de mantê-los unidos.
Enquanto seu pai a levava para o interior, ela lhe dizia que havia falhado como
filha, afinal, não conseguira nem ao menos mantê-los unidos. Parte disse se
deve à sua idade, e parte aos valores culturais japoneses com relação à família
– tanto que para Miyori, naquelas circunstâncias, não importa a felicidade e
bem estar da sua mãe, mas o da entidade familiar (Dica: A Relação Entre Pais & Filhos nos Animes). Sua
independência? Para Miyori é sinônimo de solidão e fracasso. Seu lugar é ao
lado do pai, exercendo o papel de uma mãe dona de casa, não importando se ambos
estão felizes com aquela situação, incluindo ali a própria Miyori: pelo que
fica subtendido, o tempo em que seus pais moraram juntos foram infernais para
ela, com tantas agressões verbais e abandono afetivo. Mas ela ainda coloca a
entidade familiar acima disto tudo.
E sabermos que Miyori no Mori é uma obra extremamente
tradicional e voltada para o publico infanto-juvenil, é importantíssimo para
compreendermos melhor a estrutura do longa-metragem especial para tv. Mas o
melhor é constatarmos no rápido, porém bastante revelador encontro entre mãe e
filha, é que para a mãe, sua individualidade é mais importante que aquela
estrutura arcaica, ainda que ela seja punida com a “solidão”, por essa
independência (dica: Otona Joshi noAnime: Hora do Drama das Mulheres Adultas). Também por esse reencontro,
podemos ver que apesar do amadurecimento de Miyori, ao contrastar com sua mãe,
ela ainda tem muito que amadurecer. Aliás, ao se refletirem, os problemas que
ambas enfrentam se tornam nítidos. E essa dualidade entre as duas é fabuloso,
porque por um lado, podemos ver em Miyori, que esta encontrou um vinculo que a
mãe ainda esta a procura. Essa questão fica em aberto, mesmo que deem a
entender que para ficar com a filha a mãe possa repensar a questão do divorcio,
o que faz este drama crescer em complexidade.
A primeira vez há uns bons anos, quando assisti Miyori no
Mori, me surpreendeu a maturidade de uma menina de apenas 11 anos, mas ao
acompanharmos durante a projeção todos os seus conflitos internos, é fácil
compreender a sua personalidade forte e o fato de ser muito madura. Oras! Ela
certamente há de ter vivido muito mais coisas do que muitas pessoas de 20 e
tantos anos. Porém, sua maturidade no modo de se portar refletia intensamente
sua instabilidade e ingenuidade emocional. Num dos grandes momentos do filme,
numa climática discussão com Daisuke, ela desfere nele palavras duras, dizendo
que odeia covardes que ficam julgando as pessoas e fugindo dos problemas,
quando então este lhe diz que a própria Miyori estava se descrevendo naquelas
palavras. É exatamente a partir deste momento que ela se dá conta do grande
equivoco que vinha cometendo e começa a demonstrar mudanças em suas ações e
modo de pensar.
Ela é tão orgulhosa e decidida que não se deu tempo para
lamentar, mas procurar refletir e mudar suas atitudes. Por isso sua força e
maturidade são genuínas e não apenas afetações de uma garotinha. Ela foi capaz
de perceber o quão imatura estava sendo, e isto só é perceptível com certa
maturidade. Miyori é fantástica!
Miyori no Mori é um
especial bancado pela Fuji TV e animado pelo estúdio Nippon Animation, para ser
exibido durante férias escolares. A história, adaptada do mangá homônimo de
Hideji Oda de 3 volumes já completos, traz o velho mantra da necessidade dos
vínculos com a natureza para que possa se reencontrar. Você já deve ter visto
isto em muitos filmes japoneses, muito destes, do Ghibli (dica: aqui mesmo comentei sobre um desses, A Letter to Momo). O
Homem, descontente e frustrado na cidade de pedra, retorna ao bucólico para
reencontrar suas raízes e redescobri a felicidade. É uma premissa
demasiadamente simplista, e este filme ainda agrega outro velho tema: homem
contra natureza. O diferencial é como cada autor passa essa mensagem, e em Miyori
no Mori, essa premissa é trabalhada sem maiores particularidades. Se não fosse
a forma genérica e plana como o roteiro de Satoko Okudera – que fez já escreveu
ótimos roteiros para filmes como Summer Wars, Wolf Children (dica: já resenhado
aqui, em Ookami Kodomo no Ame to Yuki) e Toki wo Kakeru Shoujo (Dica: também
comentado aqui, em A Garota que Conquistou o Tempo) – desenvolve o desfecho
final em torno da mensagem ambientalista, poderíamos estar diante de um
clássico.
Trivia:
Nunca saiu em DVD/BD no Brasil, mas chegou a ser exibido
dublado em português pela tv cultura, com o título de Miyori e a Floresta
Mágica. Pena, o visual é lindo, como podem notar, ainda que a animação não seja
excelente em fluidez.
Nota: 07/10
Direção: Nizo Yamamoto
Direção: Nizo Yamamoto
Roteiro: Satoko Okudera
Estúdio: Nippon Animation
Tipo: Especial
Duração: 107 min.
ANN: http://goo.gl/5232LO
MAL: http://goo.gl/a81MKB
-Ookami Kodomo no Ame to Yuki
-Revisitando Tokyo Godfathers (2003) – Um Milagre De Natal
-Revisitando o Terror de Le Portrait de Petite Cossette (2004)
-Revisitando Tokyo Godfathers (2003) – Um Milagre De Natal
-Revisitando o Terror de Le Portrait de Petite Cossette (2004)
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