quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Madoka Magica é Desconstrução do Mahou Shoujo? E o Que é Desconstrução?

De vez em quando surge essa pergunta e eu já li outras diversas opiniões a respeito - e claro, tenho a minha própria, que vou tratar de escrever aqui.
Gen Urobuchi sempre faz questão de frisar que não escreveu Madoka com uma desconstrução em mente, mas de certa forma, o que criador pretendia ou pensava na hora algumas vezes não são relevantes, mas sim qual a forma final que esta obra tomou. Afinal, uma obra depois de escrita, é o mundo que dará seu veredicto final. E ademais, nenhuma escrita está isenta de correlações do tempo e do gênero em que se escreve, mesmo que as referências surjam inconscientemente, não muda o fato da forma que aquela obra pode ter ganhado com isto. E isso tem haver com desconstrução, pois, o conceito de desconstrução tem por principio não denegar aquilo que lhe originou. Ou seja, toda e qualquer origem nunca é realmente original, porque antes de nascer, antes de se originar, fora suplementada por algo que veio antes, e esse algo pode ser qualquer coisa, por mais simples que seja – você já parou pra pensar que a linguagem humana e o ato de falarmos soam para nós algo tão natural quanto o dia e a noite, mas que só temos essa habilidade porque crescemos ao lado de pessoas que falam e, nós, então absolvemos sua cultura e comportamento? Ninguém nasce sabendo falar “mamãe” por si só, há toda uma indução para isso.

Quando Urobuchi diz que não escreveu Madoka Magica com a intenção de descontruir o gênero ele está sendo sincero – ele mesmo confessa que não é íntimo do gênero e que quando recebeu o convite para escrever um anime com a temática de mahou shoujo, as implicações era fazer algo que fugia de tudo que já havia sido feito anteriormente, e a produção ser de um anime que passaria nas madrugadas obviamente lhe deu liberdades que uma série focada no publico infantil não lhe daria, como por exemplo, a possibilidade de adiar a transformação da protagonista em mahou shoujo, algo impensável numa série que precisa vender brinquedos. Mahou shoujo segue uma formula similar a de tokusatsus, sendo que algumas características se fazem presentes apenas nos atuais; é preciso haver a transformação logo no primeiro episódio, a evolução das armas e uma luta por episódio, no mínimo. Nada mais natural, uma animação centrada em diálogos não é suficientemente atrativa para crianças, o fator visual é o que pega.

PARTE 01 – para se compreender uma desconstrução, é preciso compreender sua origem

Assim, quando voltamos nossos olhos para o passado do gênero mahou shoujo, percebemos animes que se parecem com desconstruções, mas não é bem assim. Mahou Shoujo (literalmente Garota Magica) ou simplesmente Majokko (Garotas-Bruxas) é um gênero que se originou no seriado americano A Feiticeira (Bewitched, de 1964-1972), com Mahotsukai Sally (Sally the Witch, 1966-1968), e é fácil perceber que na origem as mahou shoujo eram conceitualmente diferente da visão que temos hoje – antes a garota mágica era como uma bruxinha, com varinhas mágicas e vassouras, e, além disso, elas poderiam ter amigas e agirem em conjunto, mas eram individualistas, não havia aquilo tão comum hoje de “uma por todas e todas por uma”. Dos anos 1990 até os atuais ainda surgiram [e surgirão] várias produções que resgatam os valores da premissa original, como Little Witch Academia, Kiki's Delivery Service, Sakura Cardcaptors e Sugar Sugar Rune, mas o gênero foi se transformando com o tempo para nunca mais voltar a ser o que era – e o termo é exatamente este; transformação, e não desconstrução.
Após Sally the Witch, surgiu Majokko Meg-chan (de 1974) que traria importantes mudanças para o formato, e entre as mais importantes; focando-se num publico alvo misto, ao invés de exclusivamente feminino, trazendo uma protagonista feminina que ao contrário das heroínas padrões, não era doce e meiga, além de focar no fanservice com shotpantys (ângulos flagrantes da calcinha da personagem) e trazer consequências graves para as ações da protagonista, como mortes e ferimentos. Isso se seguiu com Creamy Mami (1983-1984) que trouxe novas reinvenções, como a garota magica idol que se tornou um subgênero (alguns exemplos notáveis são Senki Zesshou Symphogear e Full Moon o Sagashite). Outra produção notável e com larga influência no que se tornaria o mahou shoujo nos anos 90 em diante é o clássico Cutey Honey (ou Cutie Honey, de 1973) inteiramente voltado para o publico masculino e, embora a adaptação do mangá tenha sido transmitida em horário infantil, contava com altas doses de fanservice. Inspirado nos clássicos tokusatsus traz características não obvias deste gênero, e apesar de Cutey Honey se estruturar claramente na formula “mahou shoujo”, é um shounen, conta com uma das primeiras protagonistas femininas de shounen, além de ser o percussor de outro subgênero clássico do mahou shoujo: a garota mágica guerreira. Com uma mecânica diferente em suas motivações de lutas e o modo como se relaciona com a magia, esse subgênero é o que se tornou mais difundido, com representantes como Lyrical Nanoha – além de as personagens e séries deste tropo nem sempre se colocaram na visão clássica do que se entende como “garota mágica”, a exemplo de Shoujo Kakumei Utena e Kill la Kill. Além disso, hoje o elemento blattle é impensável em qualquer série de mahou shoujo.

Esses elementos de batalha se tornou muito popular com Sailor Moon, que também fora muito inspirado por Cutey Honey. A série trouxe a última grande revolução para o gênero, que é o “esquadrão sentai”, inspirado nos tokusatsus. As garotas mágicas agora não agem individualmente, mas coletivamente e em torno de uma figura principal. O que se vê hoje como “garota mágica”, é nada mais que fruto dessa transformação entre os anos 70 e 80. Outro grande nome do gênero, Magic Knight Rayearth, incorpora novas características, como mechas gigantes, e subverte alguns conceitos, mas de um modo geral seus personagens ambíguos e dilemas humanos é um caminho que já foi traçado, e a obra não busca em si descontruir o gênero, mas expandir o conceito de Garota Magica, como muitas fizeram – como a própria Sailor Moon.

PARTE 02 – Veredicto; os caminhos que levam à uma desconstrução

O que é desconstruir algo? A desconstrução nasceu como uma crítica ao estruturalismo, que é um sistema lógico de relações que governa todos os elementos de um texto. A desconstrução é seguir a formúla clássica ao mesmo tempo em que se estabelece e transgride sua própria estrutura, provocando um desvio. É a desmontagem das estruturas, criando não uma coexistência entre diversos elementos, mas a oposição entre signos, criando algo que contrasta ao que se tem como padrão. Portanto, a desconstrução toma como principio fundamental o respeito estrutural àquilo ao qual se opõe – e da mesma maneira que àquilo sofreu a influência de algo que moldou a sua forma, o que é desconstruído reflete àquilo. Madoka Magica não precisa de robôs gigantes, nem protagonistas com corpos femininos esguios bem delineados, porque ao invés de apenas subverter um elemento ou outro, ele está desconstruindo uma estrutura e, para isso, é preciso que se estabeleça inicialmente esta mesma estrutura. Personagens, narrativa, premissa, desenvolvimento.
Lá no início do século XX os filósofos do estruturalismo descobriram que o mundo, a sociedade, a linguagem e afins eram regidos por estruturas e sistemas complexos compostos por padrões e entidades que por sua vez poderiam ser analisados. Na análise de língua, descobriu-se que as palavras e termos poderiam ser definidos não apenas por estruturação, mas também por graus de oposição ou de afinidade para com outras palavras e termos (exemplos: bom e mal, violeta e ultravioleta). Que as palavras e termos poderiam ter mais de um significado a partir de um determinado contexto, e que estas poderiam ter composição ambígua. Este é o pós-estruturismo. No mundo pós-estruturismo, existem pelo menos três contextos que implicam qualquer texto/narrativa: o contexto do autor, contexto linguístico e o contexto do leitor (cultural e afins). Com isso, se elimina o autor como a fonte primária de significado concreto do texto em si, embora não tanto o que ele diz, mas o que ele é; suas condutas, crenças, experiência cultural e etc. podem se tornar importantes referências para o leitor na tradução do significado daquele texto, afinal, o autor como pessoa serve tanto como referência de análise dentro do texto como objeto de estudo acerca de um padrão estrutural. Inconscientemente, um autor pode dar significado a determinado elemento dentro da obra sem que ele mesmo se torne consciente disto.

Madoka Magica é a desconstrução máxima do gênero, mesmo que esta não tenha sido a intenção original do seu autor, porque ele respeita todas as características de um mahou shoujo padrão, subvertendo-o exatamente da forma que ele é, como uma oposição, não como algo novo. Um fato interessante a se observar em Madoka Magica, é fato da série refletir a visão moderna do mahou shoujo atual, não aquele clássico de uma garota que age por si mesma, mas ainda assim ele mantém as características da visão clássica; particularmente o modo como as garotas mágicas do universo de Madoka agirem individualmente; essencialmente elas não trabalham em grupos, elas não formam e nem agem em esquadrões e raramente mantém contato com outras garotas magicas (cada uma é responsável por determinado território) – porém, a partir dos acontecimentos que a série retrata, o escritor precisava centralizar o conflito, surgindo então uma inusitada união não oficializada entre elas. É um reflexo interessante tanto acerca do mahou shoujo clássico de meninas mágicas que agiam individualmente [podendo fazer uma ou outra união isolada em prol de algum interesse em comum], como também do moderno com o esquadrão de garotinhas magicas [mesmo que aqui isto se dê apenas virtualmente].
O mahou shoujo atual mudou bastante, é verdade, as varinhas se transformaram em báculos e objetos diversos, e o grupo é grande e diverso, mas ainda mantém características importantes e essenciais ao gênero, como os valores de uma amizade, a superação das adversidades, valores morais, a transformação como importante etapa do amadurecimento, a protagonista casta e também podemos citar a figura do familiar [animais que se tornam importante auxilio de uma bruxa/maga]; ou melhor, o mascote. Em Madoka Magica, o mascote/familiar é um guia que segue a premissa básica dada a estes animaizinhos, o de orientar as meninas recém-transformadas em magas, porém de natureza ambígua e um exímio manipulador; é verdade que ele nunca mente para as garotas, mas sabe muito bem a importância de se omitir determinadas verdades inconvenientes aos seus objetivos. Dá-se a entender que a forma fofinha e meiga de Kyuubei não é a sua verdade face, sendo esta apenas uma pele utilizada para atrair a confiança de suas contratantes – há muito é sabido que as empresas e órgãos escolhem seus mascotes de modo que eles soem atraentes para o publico alvo que almeja; e salve exceções onde uma Iron Maiden da vida é a melhor opção para representar um material, o fofo/cute é a escolha mais comum para atrair confiabilidade. Isso é semiótica.

No entanto, Kyuubei não é um mero orientador/guia para as meninas recém-despertadas – ele as vê apenas como um meio para atingir um fim, um objetivo final. Ele dá às garotas um desejo, mas todo desejo cobra um preço. A desconstrução de Puella Magi Madoka Magica parte do principio de: como seria um mundo onde existem garotas mágicas, se elas tivessem que lidar com implicações e responsabilidades oriundas da obtenção de um grande poder de decisão, no qual geralmente crianças de 13 e 14 anos não estão preparadas para lidar? O que se segue são as consequências quando se coloca responsabilidades tão complexas nos ombros de simples adolescentes. A série trabalha em cima deste conceito de um modo tão amplo que nunca se viu antes. Para começar, o fundamental item de transformação de qualquer garota mágica é maculado em Madoka Magica, se tornando uma concha portadora da alma e humanidade das garotas transformadas – diferentemente dos itens padrões de transformações, que são utilizados para projetar o poder e para retê-lo. Neste sentido, o corpo não passa de um recipiente vazio, e à medida que o estresse aumente, o gem [joia que retém a alma da usuária] obscurece, fazendo com que ela se torna uma bruxa, um animal voraz e inconsciente que consome as almas de outras pessoas que estão ao redor. Madoka Magica foi além de tudo o mais, profanando o conceito e suas heroínas, exigindo um sacrifício para qualquer ação.

Madoka é a protagonista, no entanto, ela se transforma apenas no episódio final, passando toda a série indecisa, chorosa, fraca, com medo; ao contrário da heroína padrão, ela não tem um grande objetivo, é apenas uma garotinha comum, e como tal, ela teme as consequências de aceitar este poder, e quando sua amiga se fere gravemente, ela se culpa por sua indecisão. Madoka simboliza como parte dos expectadores reagiriam naquelas circunstâncias e, mesmo no fim, quando ela se sacrifica, é implícito sua natureza auto-sacrificial decorrente do seu senso de autodesvalorização. Não por acaso Madoka Kaname é análogo à Shinji Ikari.
Já Sayaka Miki é o contraste de Madoka Kaname e simboliza outra parcela dos espectadores; aqueles que aceitaram o sacrifício logo de cara, que possuem um grande desejo e estariam dispostos a abrirem mão de si mesmo pelo bem de um outro alguém. O que se segue é exatamente as implicações de tal atitude. Sayaka desejava seguir os passos de Mami, se tornando uma defensora da justiça, uma Knight of Justice, protegendo os mais fracos e se tornando uma heroína (uma característica refletida em seu traje, o único entre todas as garotas que possui uma lança, frequentemente associada a cavaleiros), mas as indagações e fraquezas humanas se tornam muito mais fortes que sua fantasia poderia suportar, culminando num desfecho irreversível e poderoso, lançando a série para o fundo do poço da obscuridade. Para não me alongar demais, por último, temos Homura, que se porta inicialmente ambígua, é descontruída dentro da própria série, mas ainda não era uma personagem tão forte em termos de subversão – a subversão de Homura na série de Madoka Magica se dá no sentido de ela se revelar a verdadeira protagonista, tornado Madoka meramente a personagem título. No entanto, o filme Rebellion faz um trabalho magnifico de aprofundamento da personagem, tornando ela uma autentica figura subversiva dentro da série, ao destacar sua obsessão doentia por Madoka, que antes ganhava contornos idealistas e românticos – Rebellion demonstra de maneira mais palpável e mais de acordo com a essência da série, as implicações de tais desejos. Madoka e Homura são como Fausto e Margarida: aquele que foi longe demais e se perdeu perante uma imagem que idealizou, tomando atitudes questionáveis. E Rebellion dá o melhor ponto final que um série de desconstrução poderia ter: negando qualquer moral e final feliz, que se supunha ter se alcançado na série de tv.
Claro, a série fornece mais material para discussão, mas acredito que eu já tenha atingido meu objetivo. Sim, Madoka descontrói o mahou shoujo, partindo de sua estrutura clássica. Como Neon Genesis Evangelion, com seus atributos de mecha gigantes lutando e protagonista que rapidamente se adapta à cabine de comando e se revela um grande potencial, no entanto não demora para que seus valores sejam invertidos e o protagonista se mostre um fraco amedrontado e covarde, e os mechas seres orgânicos/seres vivos, e ao invés de maturação e crescimento como em qualquer obra “shounen-like” voltada para o publico infanto-juvenil masculino, decadência e desespero. Ou seja...


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