De vez em quando surge essa pergunta e eu já li outras
diversas opiniões a respeito - e claro, tenho a minha própria, que vou tratar
de escrever aqui.
Gen Urobuchi sempre faz questão de frisar que não escreveu
Madoka com uma desconstrução em mente, mas de certa forma, o que criador
pretendia ou pensava na hora algumas vezes não são relevantes, mas sim qual a
forma final que esta obra tomou. Afinal, uma obra depois de escrita, é o mundo
que dará seu veredicto final. E ademais, nenhuma escrita está isenta de
correlações do tempo e do gênero em que se escreve, mesmo que as referências surjam
inconscientemente, não muda o fato da forma que aquela obra pode ter ganhado
com isto. E isso tem haver com desconstrução, pois, o conceito de desconstrução
tem por principio não denegar aquilo que lhe originou. Ou seja, toda e qualquer
origem nunca é realmente original, porque antes de nascer, antes de se
originar, fora suplementada por algo que veio antes, e esse algo pode ser
qualquer coisa, por mais simples que seja – você já parou pra pensar que a
linguagem humana e o ato de falarmos soam para nós algo tão natural quanto o
dia e a noite, mas que só temos essa habilidade porque crescemos ao lado de
pessoas que falam e, nós, então absolvemos sua cultura e comportamento? Ninguém
nasce sabendo falar “mamãe” por si só, há toda uma indução para isso.
Quando Urobuchi diz que não escreveu Madoka Magica com a intenção
de descontruir o gênero ele está sendo sincero – ele mesmo confessa que não é íntimo
do gênero e que quando recebeu o convite para escrever um anime com a temática
de mahou shoujo, as implicações era fazer algo que fugia de tudo que já havia
sido feito anteriormente, e a produção ser de um anime que passaria nas
madrugadas obviamente lhe deu liberdades que uma série focada no publico
infantil não lhe daria, como por exemplo, a possibilidade de adiar a
transformação da protagonista em mahou shoujo, algo impensável numa série que
precisa vender brinquedos. Mahou shoujo segue uma formula similar a de tokusatsus,
sendo que algumas características se fazem presentes apenas nos atuais; é
preciso haver a transformação logo no primeiro episódio, a evolução das armas e
uma luta por episódio, no mínimo. Nada mais natural, uma animação centrada em
diálogos não é suficientemente atrativa para crianças, o fator visual é o que
pega.
PARTE 01 – para se compreender uma desconstrução, é preciso
compreender sua origem
Assim, quando voltamos nossos olhos para o passado do gênero
mahou shoujo, percebemos animes que se parecem com desconstruções, mas não é
bem assim. Mahou Shoujo (literalmente
Garota Magica) ou simplesmente Majokko (Garotas-Bruxas)
é um gênero que se originou no seriado americano A Feiticeira (Bewitched, de 1964-1972), com
Mahotsukai Sally (Sally the Witch,
1966-1968), e é fácil perceber que na origem as mahou shoujo eram
conceitualmente diferente da visão que temos hoje – antes a garota mágica era
como uma bruxinha, com varinhas mágicas e vassouras, e, além disso, elas
poderiam ter amigas e agirem em conjunto, mas eram individualistas, não havia
aquilo tão comum hoje de “uma por todas e todas por uma”. Dos anos 1990 até os
atuais ainda surgiram [e surgirão] várias produções que resgatam os valores da
premissa original, como Little Witch Academia, Kiki's Delivery Service,
Sakura Cardcaptors e Sugar Sugar Rune, mas o gênero foi se transformando com o
tempo para nunca mais voltar a ser o que era – e o termo é exatamente este;
transformação, e não desconstrução.
Após Sally the Witch, surgiu Majokko Meg-chan (de 1974) que traria importantes
mudanças para o formato, e entre as mais importantes; focando-se num publico
alvo misto, ao invés de exclusivamente feminino, trazendo uma protagonista
feminina que ao contrário das heroínas padrões, não era doce e meiga, além de
focar no fanservice com shotpantys (ângulos
flagrantes da calcinha da personagem) e trazer consequências graves para as
ações da protagonista, como mortes e ferimentos. Isso se seguiu com Creamy Mami
(1983-1984) que trouxe novas
reinvenções, como a garota magica idol
que se tornou um subgênero (alguns
exemplos notáveis são Senki Zesshou Symphogear e Full Moon o Sagashite).
Outra produção notável e com larga influência no que se tornaria o mahou shoujo
nos anos 90 em diante é o clássico Cutey Honey (ou Cutie Honey, de 1973) inteiramente voltado para o publico
masculino e, embora a adaptação do mangá tenha sido transmitida em horário
infantil, contava com altas doses de fanservice. Inspirado nos clássicos tokusatsus
traz características não obvias deste gênero, e apesar de Cutey Honey se
estruturar claramente na formula “mahou shoujo”, é um shounen, conta com uma
das primeiras protagonistas femininas de shounen, além de ser o percussor de
outro subgênero clássico do mahou shoujo: a garota
mágica guerreira. Com uma mecânica diferente em suas motivações de lutas e
o modo como se relaciona com a magia, esse subgênero é o que se tornou mais
difundido, com representantes como Lyrical Nanoha – além de as personagens e
séries deste tropo nem sempre se colocaram na visão clássica do que se entende como
“garota mágica”, a exemplo de Shoujo Kakumei Utena e Kill la Kill. Além disso,
hoje o elemento blattle é impensável
em qualquer série de mahou shoujo.
Esses elementos de batalha se tornou muito popular com
Sailor Moon, que também fora muito inspirado por Cutey Honey. A série trouxe a
última grande revolução para o gênero, que é o “esquadrão sentai”, inspirado
nos tokusatsus. As garotas mágicas agora não agem individualmente, mas
coletivamente e em torno de uma figura principal. O que se vê hoje como “garota
mágica”, é nada mais que fruto dessa transformação entre os anos 70 e 80. Outro
grande nome do gênero, Magic Knight Rayearth, incorpora novas características,
como mechas gigantes, e subverte alguns conceitos, mas de um modo geral seus personagens
ambíguos e dilemas humanos é um caminho que já foi traçado, e a obra não busca
em si descontruir o gênero, mas expandir o conceito de Garota Magica, como
muitas fizeram – como a própria Sailor Moon.
PARTE 02 – Veredicto; os caminhos que levam à uma
desconstrução
O que é desconstruir algo? A desconstrução nasceu como uma
crítica ao estruturalismo, que é um sistema lógico de relações que governa
todos os elementos de um texto. A desconstrução é seguir a formúla clássica ao
mesmo tempo em que se estabelece e transgride sua própria estrutura, provocando
um desvio. É a desmontagem das estruturas, criando não uma coexistência entre
diversos elementos, mas a oposição entre signos, criando algo que contrasta ao
que se tem como padrão. Portanto, a desconstrução toma como principio
fundamental o respeito estrutural àquilo
ao qual se opõe – e da mesma maneira que àquilo
sofreu a influência de algo que moldou a sua forma, o que é desconstruído reflete
àquilo. Madoka Magica não precisa de
robôs gigantes, nem protagonistas com corpos femininos esguios bem delineados,
porque ao invés de apenas subverter um elemento ou outro, ele está desconstruindo
uma estrutura e, para isso, é preciso que se estabeleça inicialmente esta mesma
estrutura. Personagens, narrativa, premissa, desenvolvimento.
Lá no início do século XX os filósofos do estruturalismo
descobriram que o mundo, a sociedade, a linguagem e afins eram regidos por
estruturas e sistemas complexos compostos por padrões e entidades que por sua
vez poderiam ser analisados. Na análise de língua, descobriu-se que as palavras
e termos poderiam ser definidos não apenas por estruturação, mas também por
graus de oposição ou de afinidade para com outras palavras e termos (exemplos: bom e mal, violeta e
ultravioleta). Que as palavras e termos poderiam ter mais de um significado
a partir de um determinado contexto, e que estas poderiam ter composição ambígua.
Este é o pós-estruturismo. No mundo pós-estruturismo, existem pelo menos três contextos
que implicam qualquer texto/narrativa: o contexto do autor, contexto linguístico
e o contexto do leitor (cultural e
afins). Com isso, se elimina o autor como a fonte primária de significado
concreto do texto em si, embora não tanto o que ele diz, mas o que ele é; suas
condutas, crenças, experiência cultural e etc. podem se tornar importantes
referências para o leitor na tradução do significado daquele texto, afinal, o
autor como pessoa serve tanto como referência de análise dentro do texto como
objeto de estudo acerca de um padrão estrutural. Inconscientemente, um autor
pode dar significado a determinado elemento dentro da obra sem que ele mesmo se
torne consciente disto.
Madoka Magica é a desconstrução máxima do gênero, mesmo que
esta não tenha sido a intenção original do seu autor, porque ele respeita todas
as características de um mahou shoujo padrão, subvertendo-o exatamente da forma
que ele é, como uma oposição, não como algo novo. Um fato interessante a se
observar em Madoka Magica, é fato da série refletir a visão moderna do mahou
shoujo atual, não aquele clássico de uma garota que age por si mesma, mas ainda
assim ele mantém as características da visão clássica; particularmente o modo
como as garotas mágicas do universo de Madoka agirem individualmente;
essencialmente elas não trabalham em grupos, elas não formam e nem agem em
esquadrões e raramente mantém contato com outras garotas magicas (cada uma é responsável por determinado
território) – porém, a partir dos acontecimentos que a série retrata, o
escritor precisava centralizar o conflito, surgindo então uma inusitada união
não oficializada entre elas. É um reflexo interessante tanto acerca do mahou
shoujo clássico de meninas mágicas que agiam individualmente [podendo fazer uma
ou outra união isolada em prol de algum interesse em comum], como também do
moderno com o esquadrão de garotinhas magicas [mesmo que aqui isto se dê apenas
virtualmente].
O mahou shoujo atual mudou bastante, é verdade, as varinhas
se transformaram em báculos e objetos diversos, e o grupo é grande e diverso, mas
ainda mantém características importantes e essenciais ao gênero, como os
valores de uma amizade, a superação das adversidades, valores morais, a
transformação como importante etapa do amadurecimento, a protagonista casta e
também podemos citar a figura do familiar [animais que se tornam importante
auxilio de uma bruxa/maga]; ou melhor, o mascote. Em Madoka Magica, o
mascote/familiar é um guia que segue a premissa básica dada a estes
animaizinhos, o de orientar as meninas recém-transformadas em magas, porém de
natureza ambígua e um exímio manipulador; é verdade que ele nunca mente para as
garotas, mas sabe muito bem a importância de se omitir determinadas verdades
inconvenientes aos seus objetivos. Dá-se a entender que a forma fofinha e meiga
de Kyuubei não é a sua verdade face, sendo esta apenas uma pele utilizada para atrair
a confiança de suas contratantes – há muito é sabido que as empresas e órgãos escolhem
seus mascotes de modo que eles soem atraentes para o publico alvo que almeja; e
salve exceções onde uma Iron Maiden da vida é a melhor opção para representar
um material, o fofo/cute é a escolha mais comum para atrair confiabilidade.
Isso é semiótica.
No entanto, Kyuubei não é um mero orientador/guia para as
meninas recém-despertadas – ele as vê apenas como um meio para atingir um fim,
um objetivo final. Ele dá às garotas um desejo, mas todo desejo cobra um preço.
A desconstrução de Puella Magi Madoka Magica parte do principio de: como seria
um mundo onde existem garotas mágicas, se elas tivessem que lidar com
implicações e responsabilidades oriundas da obtenção de um grande poder de
decisão, no qual geralmente crianças de 13 e 14 anos não estão preparadas para
lidar? O que se segue são as consequências quando se coloca responsabilidades
tão complexas nos ombros de simples adolescentes. A série trabalha em cima
deste conceito de um modo tão amplo que nunca se viu antes. Para começar, o
fundamental item de transformação de qualquer garota mágica é maculado em
Madoka Magica, se tornando uma concha portadora da alma e humanidade das
garotas transformadas – diferentemente dos itens padrões de transformações, que
são utilizados para projetar o poder e para retê-lo. Neste sentido, o corpo não
passa de um recipiente vazio, e à medida que o estresse aumente, o gem [joia
que retém a alma da usuária] obscurece, fazendo com que ela se torna uma bruxa,
um animal voraz e inconsciente que consome as almas de outras pessoas que estão
ao redor. Madoka Magica foi além de tudo o mais, profanando o conceito e suas heroínas,
exigindo um sacrifício para qualquer ação.
Madoka é a protagonista, no entanto, ela se transforma
apenas no episódio final, passando toda a série indecisa, chorosa, fraca, com
medo; ao contrário da heroína padrão, ela não tem um grande objetivo, é apenas
uma garotinha comum, e como tal, ela teme as consequências de aceitar este
poder, e quando sua amiga se fere gravemente, ela se culpa por sua indecisão. Madoka
simboliza como parte dos expectadores reagiriam naquelas circunstâncias e, mesmo
no fim, quando ela se sacrifica, é implícito sua natureza auto-sacrificial
decorrente do seu senso de autodesvalorização. Não por acaso Madoka Kaname é análogo
à Shinji Ikari.
Já Sayaka Miki é o contraste de Madoka Kaname e simboliza
outra parcela dos espectadores; aqueles que aceitaram o sacrifício logo de
cara, que possuem um grande desejo e estariam dispostos a abrirem mão de si
mesmo pelo bem de um outro alguém. O que se segue é exatamente as implicações
de tal atitude. Sayaka desejava seguir os passos de Mami, se tornando uma
defensora da justiça, uma Knight of Justice, protegendo os mais fracos e se
tornando uma heroína (uma característica
refletida em seu traje, o único entre todas as garotas que possui uma lança,
frequentemente associada a cavaleiros), mas as indagações e fraquezas
humanas se tornam muito mais fortes que sua fantasia poderia suportar,
culminando num desfecho irreversível e poderoso, lançando a série para o fundo
do poço da obscuridade. Para não me alongar demais, por último, temos Homura,
que se porta inicialmente ambígua, é descontruída dentro da própria série, mas
ainda não era uma personagem tão forte em termos de subversão – a subversão de
Homura na série de Madoka Magica se dá no sentido de ela se revelar a
verdadeira protagonista, tornado Madoka meramente a personagem título. No
entanto, o filme Rebellion faz um trabalho magnifico de aprofundamento da
personagem, tornando ela uma autentica figura subversiva dentro da série, ao
destacar sua obsessão doentia por Madoka, que antes ganhava contornos
idealistas e românticos – Rebellion demonstra de maneira mais palpável e mais
de acordo com a essência da série, as implicações de tais desejos. Madoka e
Homura são como Fausto e Margarida: aquele que foi longe demais e se perdeu
perante uma imagem que idealizou, tomando atitudes questionáveis. E Rebellion
dá o melhor ponto final que um série de desconstrução poderia ter: negando
qualquer moral e final feliz, que se supunha ter se alcançado na série de tv.
Claro, a série fornece mais material para discussão, mas
acredito que eu já tenha atingido meu objetivo. Sim, Madoka descontrói o mahou
shoujo, partindo de sua estrutura clássica. Como Neon Genesis Evangelion, com
seus atributos de mecha gigantes lutando e protagonista que rapidamente se
adapta à cabine de comando e se revela um grande potencial, no entanto não
demora para que seus valores sejam invertidos e o protagonista se mostre um
fraco amedrontado e covarde, e os mechas seres orgânicos/seres vivos, e ao
invés de maturação e crescimento como em qualquer obra “shounen-like” voltada
para o publico infanto-juvenil masculino, decadência e desespero. Ou seja...
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