terça-feira, 7 de julho de 2015

Ranpo Kitan Celebra 50 Anos de Morte de Edogawa Ranpo

Novo noitaminA surpreende na estreia, com boas liberdades conceituais. 
Edogawa Ranpo (é também escrito como “Rampo”) é ainda um escritor popular no Japão, como atestam a abundância de adaptações que surgem todos os anos continuamente, sejam filmes; doramas, histórias em mangás ou animes – mas pela primeira vez, o autor recebe um anime inteiro lançando um novo olhar sobre seus contos. Ranpo Kitan: Game of Laplace é o mais recente anime do slot noitaminA em homenagem aos 50 anos de morte de um dos mais celebres autores japoneses. Não é a primeira vez que o bloco de animação investe em adaptações literárias; Genji Monogatari Sennenki e Un-Go figuram entre as adaptações de obras mais consagradas. O que faz deste anime algo merecedor ao menos de uma espiadela.

Comumentemente autores de convenções de mistério tendem a utilizar personagens recorrentes no que tange a figuras detetivescas. Tais como Miss Marple, Hercule Poirot, Angela Lansbury – será que Batman também é um nome citável? *Pausa dramática* E claro, tem o icônico Sherlock Holmes. O gênero detetivesco é imensamente popular no Japão, especialmente entre mulheres e, no entanto, ainda estamos muito distantes de uma maior intimidade com os autores japoneses e suas histórias de mistério/policiais. Kogoro Akechi é um nome que despontará com freqüência em Ranpo Kitan, mas que soa como um ilustre desconhecido para a audiência ocidental. Acontece que, criado em 1925 pelo pai da ficção de detetive japonesa Edogawa Ranpo, o intrépido personagem goza de boa popularidade na terrinha do sol nascente. Construído à margem das sombras de Holmes, Akechi é um detetive de consultoria com um traço de excentricidade marcante, além de ser o mestre dos disfarces e artes marciais, assim como Holmes, também conta com um arquirrival denominado “Demônio de Vinte Faces” e um parceiro inseparável à lá Watason que o instiga à dedução; o adolescente Kobayashi que lidera um grupo de garotos detetives – outra referência Holmeana. 
Oh, é isto mesmo! Nas histórias de Edogawa, Kobayashi é um garoto que se disfarça de garota em determinadas ocasiões, utilizando uma aparência feminina para omitir sua identidade. Em Ranpo Kitan Kobayashi é um garotinho entediado de 13 anos com trejeitos femininos e modo delicado (até mesmo o fato de ser dublado por uma mulher tem-se a intenção de induzir o expectador à duvida). O fato é que Kobayashi não soa como um garoto andrógeno (como é tão comum no Japão), mas sim, de fato, uma garota. O que nos leva a pensar que a adaptação do anime alterou a premissa original, mas mantendo a sua essência. Portanto, não seria surpresa descobrirmos futuramente que Kobayashi é uma menina – embora particularmente eu preferiria que não, gostei muito dessa intrínseca atmosfera “boys love”, ainda que originalmente o personagem seja descrito com grande aptidão para o disfarce. Assim como o detetive Kogoro Akechi surge aqui como um jovem de 17 anos e não como um homem adulto, a trama inicial que adapta umas das histórias mais clássicas (e a mais conhecida dele, no ocidente) – The Human Chair (sem spoiles) – surge no episódio de estréia com certas liberdades criativas, onde se cria toda uma introdução em uma espécie de mistura de universos ficcionais de Edogawa. Desde já, fico curiosa para ver como conseguirão inserir um conto como o de The Human Chair, em uma trama que soa um tanto quanto distinta. 
Acima The Human Chair na visão de Yamaguchi Masakazu, Junji Ito e Toshio Saeki, respectivamente
The Human Chair é uma das histórias mais celebradas do autor, especialmente no circulo de terror e ero-guro, já tendo sido referenciada ou adaptada por grandes nomes de tais gêneros – destas, a melhor que já li foi a de Junji Ito, com um olhar grotesco e desconfortável, mas ao mesmo tempo bizarro o suficiente para fazer abrir um sorriso que faz bastante justiça ao original. Edogawa por um bom tempo flertou com o ero-guro, ou como referenciado, Ero-Guro-Nansensu (Erotic, Nonsense Grotesque), se tornando sua grande paixão – exceto por algumas histórias iniciais, ele declinou um pouco de escrever o estritamente tipo de mistério quebra-cabeça, extremamente popular na Inglaterra e America entre as décadas de 1920 e 1930, e entrou de cabeça neste movimento cultural japonês que enfatizou erotismo e decadência, situando-se então entre a lógica dedutiva e o escabroso. Entende-se como Guro (não confundir com Gore), tudo aquilo que é fisicamente malformado, não natural ou horrível. Tal interesse desviante e pouco palatável no meio social por parte do autor surgiu na década de 1920 – e veio a se popularizar no meio literário e artístico em 1930 – em meio a uma atmosfera social japonesa de hedonismo niilista, mas as raízes do ero-guro na cultura japonesa têm raízes bem mais profundas, remetendo ao ukiyo-e (dica: Bloody Ukiyo-e (1988) - De Yoshitoshi à Suehiro Maruo), pavimentado por artistas do século 19, como Tsukioka Yoshitoshi, retratando decapitações entre outros atos de violência. Uma raia semelhante de espetáculo do macabro entrelaçados a conotações sexuais se nota no Kabuki, como em uma de suas mais famosas peças intitulada Yotsuya Kaidan; uma história de traição e assassinato. 

É a sua fase mais emblemática, e não por acaso, é considerado por muitos o principal nome propulsor do movimento, antes do surgimento de Suehiro Maruo. A escolha do seu pseudônimo como Edogawa Ranpo já denota uma preferência do autor pelo macabro do que pela visão científica de Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes – muito embora, ele seja justamente conhecido como o primeiro autor japonês a empregar técnicas de dedução lógica na resolução dos seus mistérios. O pseudônimo Edogawa Ranpo é uma homenagem consciente dele a Edgar Allan Poe em um jogo de caracteres japoneses, que ao ser pronunciado rapidamente, realmente soa como o nome do escritor/poeta americano. Tendo começado com histórias clássicas de detetives, mas não demorou para que em breve elementos de ero-guro começassem a proliferar. No entanto, mais tarde, as circunstâncias forçaram-no abandonar esta abordagem, quando o Japão se envolveu em várias guerras, a sociedade começou a franzir a testa para o ero-guro e até mesmo para a ficção de detetive. E mesmo depois, imerso em ficção de aventura, continuou ativo no domínio crítico da ficção policial, trazendo grande contribuição para o gênero literário de romances de mistério. 

O mundo monótono e acinzentado de Kobayashi, onde a maioria das coisas e pessoas à sua frente não se destacam aos seus olhos, começa a se tornar mais vivo e pulsante em determinado ponto do primeiro episódio. Espera-se que o enredo e o trabalho da equipe de animação também mantenha este fôlego e gradualmente alcance uma atmosfera ainda mais absorvente que foi neste episódio de estréia, se tornando algo ao menos digno do autor mencionado. Só o tempo dirá. 


“. . . Huh. Bem, pelo menos eu não estou mais entediado.” – Kobayashi.

Temas Relacionados