Séries detetivescas são um dos gêneros mais populares no
Japão, que mantém uma tradição longíssima de histórias “tantei shosetsu” (detective fiction/ficção policial),
que acabou sendo elemento intrínseco na literatura japonesa por volta de 1900
devido a influências ocidentais. Após a Segunda Guerra Mundial, devido à
reforma ortográfica [Toyo Kanji] o gênero acabou ganhando a alcunha de “ficção
de raciocínio dedutivo” que na tradução do kanji “raciocínio dedutivo (推理)”,
acabou sendo erroneamente definido como mistério. Erroneamente, porque
mistérios não precisam ser algo necessariamente lógico, podendo ser
sobrenatural ou fantasioso. Devido à tensão social antes da Segunda Guerra
Mundial, escritos começaram a incluir vários elementos [alguns bizarros e
eróticos], assim como também ficou bem comum apresentar conjuntos de histórias
de crimes verdadeiros, mascarados pela ficção.
Assim, a linha entre realidade e ficção se torna mais fina
com UN-GO, adaptação do estúdio em um anime de 2011 com 11 episódios baseado em
um livro de Ango Sakaguchi (Ango -
histórias de detetive do Período Meiji). Livro que contém uma coleção de
contos e ensaios de um dos períodos mais emblemáticos do Japão, que foi o
cenário pós-guerra. E toda essa introdução [que poderia ser evitada, mas eu não
quis :P] é pra apresentar uma das mentiras de um anime que se mostrou desde o
inicio como história de detetive. Enquanto vemos Yuuki Shinjuurou e seu/sua
assistente Inga resolvendo vários mistérios, que de fato são uma importante
parte da série, acaba não sendo tão claro que este não é o foco principal. Na
verdade fica, eu que sou meio avoada mesmo e só fui perceber 3 episódios
depois. Some se a isto, o fato de que UN-GO tem um inicio realmente bem fraco. Mas
melhora substancialmente, ao ponto de eu estar aqui comentando vagamente sobre seu
filme de curta duração [48 minutos] UN-GO episode: 0 Inga-ron.
UN-GO foi bem feliz ao retratar o conceito “verdade versus
mentira” sob o aspecto de uma sociedade moderna manipulada pela politica e cega
pelo consumismo. E sendo originalmente uma crítica a um Japão que acabara de
perder a guerra, essa série se mostra bem atual. As pistas não são tão claras e
nem foram feitas para serem desvendadas pelo espectador, mas servem como linha
narrativa com foco no conflito. Os mistérios tendem a ser superficiais, mas a
pergunta é: Quem está dizendo a verdade? E se o anime exibido pelo bloco
Noitamina não foi claro o suficiente, esse filme trata de abrir o leque sobre
essa questão ao mesmo tempo em que nos mostra a origem dos fatos.
UN-GO episode: 0 Inga-ron nos trás de uma forma mais intimista
a verdadeira natureza do ser humano ao se concentrar em questão pessoais do detetive
derrotado Yuuki Shinjuurou, antes deste se tornar o.... detetive derrotado. Shinjuurou
que era um garoto órfão de pai e mão, crescendo sob os cuidados de várias
pessoas, que em troca só pediram para ele retribuir o favor, ajudando outras
pessoas, acabou crescendo e se tornando um nadador que colecionava diversas
medalhas, mas ao olhar para trás percebeu que aquilo não ajudava ninguém. Como
mostrado, ele larga tudo em prol de um ideal e passa a se tornar um militante
da mudança social no terceiro mundo. Em uma de suas viagens, ele acaba cruzando
com um grupo de ativistas que usam a música como uma forma de crítica social
contra a guerra que está em curso. Eles viajam pelos países devastados e cantam
para aqueles, sendo estes principalmente crianças, que sofrem com as
consequências da guerra.
E é ali que ele conhece Yuuko, onde acaba rolando uma química
entre os dois. Porém, eles acabam sendo vítimas de uma emboscada e vão parar
com o carro descontrolado em uma caverna, onde reside um deus antigo, que acaba
possuindo Shinjuurou. E aqui temos dois pontos interessantes, assim como também
a narrativa se divide entre passado e presente de forma competente até que
estes dois pontos se tornem um só e todas as pontas soltas deixadas na série de
tv, se fecham satisfatoriamente. Começando pelos eventos do passado, onde
Shinjuurou acaba violentamente empalado no “acidente”, mas que se levanta como
se nada tivesse acontecido, incorporado por aquele estranho ser que começa a
devorar a alma de todos, mas não sem antes força-los a revelar sua verdadeira
natureza interior. O que vemos, é um espetáculo, não sanguinário, mas emocional
onde os jovens ali temem mais serem defrontados com a verdade e tê-la exposta
diante a todos, do que morrer. O que poderia ser encarado como verdade é que os
verdadeiros sentimentos dos ativistas eram de autossatisfação pessoal, ao invés
da satisfação de um bem maior. Problema? Nenhum isso é humano. Mas quantos
aguentam serem defrontados e ter a verdadeira natureza que adormece em seu
interior, exposta dessa forma?
Yuuko Kurata, ainda em sua forma humana e viva, prefere se suicidar
a deixar Shinjuurou (que estava sendo
controlado por Inga) ler seus pensamentos mais profundos e ocultos. “Ninguém
verdadeiramente diz o que sentem. Mas isso não é a única verdade, as pessoas
têm muitos lados em seus corações. São todas as verdades.” – Foi uma
cena bem intensa e carregada de questionamentos, afinal, ela não quer que
ninguém decida qual é a sua verdade, seres humanos são criaturas ambíguas demais
para que caibam em um simples “verdade e falsidade”. De posse do corpo de
Yuuko, então Inga e Shinjuurou selam um pacto, onde ele se dispõe a oferecer
várias almas para ele, em troca de que ele não coma a alma de ninguém
indiscriminadamente. Enquanto Shinjuurou pode assim contar com a assistência de
Inga, que desde então só pode usar seus poderes para revelar a verdade sobre
alguém, uma única vez e como resposta de alguma pergunta feita [claro, por
Shinjuurou].
É um conceito de regras estabelecidas, bem interessante.
Afinal, Inga funciona em UN-GO como uma ferramenta de roteiro, um Deus
Ex-Machina que fará qualquer um responder a alguma pergunta feita por
Shinjuurou. Exatamente por isso, as perguntas precisam ser bem pontuais e
exatas. Mas ainda que as perguntas sejam apenas uma forma de provar a culpa de
alguém, criando uma prova contra a pessoa ou uma forma de obter alguma pista
para um mistério, Shinjuurou é quem tem de desvenda-lo, até mesmo porque muitas
respostas não claras o suficiente. Há que se dizer que realmente poderia ser um
truque de roteiro bem falho, caso UN-GO se concentrasse na questão do mistério,
mas ele acaba indo pro lado dos “por quês?”. E há outro aspecto interessante
que fica mais oculto. Assim como Inga pode expor as “mentiras” das pessoas,
também pode usar esse poder e tomar o que essa pessoa disse como verdade. Algo
recorrente do governo chinês como forma de reprimir os dissidentes e que a
figura do personagem Kaishou [uma importante figura politica e de status elevado
na série] começa a fazer.
Kaishou Rinroku que em UN-GO simboliza o status quo, a figura daquele que se
beneficia com as continuas guerras que o Japão havia feito parte e procura
preservar seu monopólio da infraestrutura da comunicação de Tóquio. O legal de
ver que UN-GO se conecta a vários pontos sem soar descabido, é que além do que
já comentei, se passando em um período onde as a influência ocidental sobre o
Japão estava num ritmo intenso, temos um Kaishou recebendo ajuda exterior ao
longo do tempo e usa de sua influência para evitar qualquer resistência como
podemos ver na série de tv. Aqui a sua
participação é pequena, mas crucial como podemos ver ao final do filme, onde
Shinjuurou descobre o culpado, mas a verdade é varrida por baixo do tapete por
Kaishou, que dá a ele uma nova identidade. Toda a resistência deve ser rompida,
para que se mantenha o status quo.
Nessa mesma linha atual do filme, paralelamente vemos o
passado e encontro entre Shinjuurou e Inga, em uma sintonia sensacional com
acontecimentos do presente, com eles investigando um estranho culto, onde o
representante é alguém do passado que deveria estar morto. A conclusão do
mistério não é tão impressionante, como sempre, mas como um todo o desfecho é
sensacional. A introdução de Bettenou, outra divindade, é uma importante peça
para o roteiro. Seu poder é o oposto de Inga. Este, enquanto tem o poder de
revelar a verdade em uma pessoa, o de Bettenou pode tornar qualquer declaração
falsa em verdade, criando ilusões. Também trás a tona àqueles que tem poder
monetário e consegue ofuscar a verdade com sua influência, caso de Kaishou.
Tanto Inga, quanto Bettenou são divindades que fazem a
vontade de outras pessoas, com seus poderes podendo ser usados para o bem ou
para o mal. Eles não fazem acepção de valores. E essas duas personagens, são
utilizadas na série como elementos que simbolizam esse poder politico.
UN-GO episode: 0 Inga-ron apesar de ser um filme, trás uma animação
padrão [o que é bom, pois apesar de não se destacar, também não compromete],
mas é eficiente para contar sua história. Se em filmes como Paprika, o que mais chama a atenção é a
belíssima e imaginativa animação e uso de cores, aqui certamente é o roteiro,
pois não há muita diferença entre filme e serie tv em questões estéticas.
Roteiro este que é extremamente sólido e perfeitamente interligado com a série
de tv. Cada episódio de UN-GO, trás a tona uma discussão, um conflito de
interesses, uma questão exposta no cardápio, para que o espectador possa
aprecia-la. É assim no episódio 05 onde a reputação de um politico carismático,
fica ameaçada quando várias pessoas começam a morrer ao seu redor
misteriosamente, com todas as evidências apontando para ele. Mas o ponto aqui é
o diálogo entre Shinjuurou e o político sobre os sacrifícios da guerra. Foram diálogos
fascinantes. O 07 e 08, apesar do tom surrealíssimo, houve um importante
diálogo sobre as diretrizes da guerra. Todos os episódios acabam tendo uma
correlação com fatos reais (o comentário
de Kaishou sobre o terremoto de Tohoku no episódio 09, por exemplo) que
denotam o significado da série que é expor as verdades mais escusas e revelar
as mentiras dos bastidores.
Enfim, UN-GO evidência um fato além das fronteiras
detetivescas, explorando o mundo construído por seu autor, que expõe seu ponto
de vista cruzando a narrativa com discursos políticos, culturais, econômicos e
experiências vividas por uma população. O que podemos tirar desse filme de UN-GO
episode: 0 Inga-ron, é o que se encontra em seu final: “Você prefere o conforto
da palavra de um homem ou a dura verdade, horrível e dolorosa?”. Aqui nós temos
a verdade e a mentira como dois lados da mesma moeda e o filme faz um bom
trabalhado em evidenciar isso. UN-GO certamente é uma série marcante, boa de um
modo geral e que tecnicamente não impressiona, mas que trás uma boa dose de
questionamentos para quem está interessado em algo mais crítico, menos divertido
e mais sério.
E se ainda não leu, confira a minha review sobre a série de tv: UN-GO: Crítica à um Japão Pós-Guerra
Tipo: Filme
Ano: 2011
Estúdio: BONES
Gênero: Mistério
Diretor: Seiji Mizushima (Fullmetal Alchemist)
Roteiro: Shou Aikawa (Fullmetal Alchemist)
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