sábado, 12 de maio de 2012

UN-GO episode: 0 Inga-ron ~ O Que É Verdade E O Que É Mentira?


Séries detetivescas são um dos gêneros mais populares no Japão, que mantém uma tradição longíssima de histórias “tantei shosetsu” (detective fiction/ficção policial), que acabou sendo elemento intrínseco na literatura japonesa por volta de 1900 devido a influências ocidentais. Após a Segunda Guerra Mundial, devido à reforma ortográfica [Toyo Kanji] o gênero acabou ganhando a alcunha de “ficção de raciocínio dedutivo” que na tradução do kanji “raciocínio dedutivo (推理)”, acabou sendo erroneamente definido como mistério. Erroneamente, porque mistérios não precisam ser algo necessariamente lógico, podendo ser sobrenatural ou fantasioso. Devido à tensão social antes da Segunda Guerra Mundial, escritos começaram a incluir vários elementos [alguns bizarros e eróticos], assim como também ficou bem comum apresentar conjuntos de histórias de crimes verdadeiros, mascarados pela ficção.

Assim, a linha entre realidade e ficção se torna mais fina com UN-GO, adaptação do estúdio em um anime de 2011 com 11 episódios baseado em um livro de Ango Sakaguchi (Ango - histórias de detetive do Período Meiji). Livro que contém uma coleção de contos e ensaios de um dos períodos mais emblemáticos do Japão, que foi o cenário pós-guerra. E toda essa introdução [que poderia ser evitada, mas eu não quis :P] é pra apresentar uma das mentiras de um anime que se mostrou desde o inicio como história de detetive. Enquanto vemos Yuuki Shinjuurou e seu/sua assistente Inga resolvendo vários mistérios, que de fato são uma importante parte da série, acaba não sendo tão claro que este não é o foco principal. Na verdade fica, eu que sou meio avoada mesmo e só fui perceber 3 episódios depois. Some se a isto, o fato de que UN-GO tem um inicio realmente bem fraco. Mas melhora substancialmente, ao ponto de eu estar aqui comentando vagamente sobre seu filme de curta duração [48 minutos] UN-GO episode: 0 Inga-ron.


UN-GO foi bem feliz ao retratar o conceito “verdade versus mentira” sob o aspecto de uma sociedade moderna manipulada pela politica e cega pelo consumismo. E sendo originalmente uma crítica a um Japão que acabara de perder a guerra, essa série se mostra bem atual. As pistas não são tão claras e nem foram feitas para serem desvendadas pelo espectador, mas servem como linha narrativa com foco no conflito. Os mistérios tendem a ser superficiais, mas a pergunta é: Quem está dizendo a verdade? E se o anime exibido pelo bloco Noitamina não foi claro o suficiente, esse filme trata de abrir o leque sobre essa questão ao mesmo tempo em que nos mostra a origem dos fatos.

UN-GO episode: 0 Inga-ron nos trás de uma forma mais intimista a verdadeira natureza do ser humano ao se concentrar em questão pessoais do detetive derrotado Yuuki Shinjuurou, antes deste se tornar o.... detetive derrotado. Shinjuurou que era um garoto órfão de pai e mão, crescendo sob os cuidados de várias pessoas, que em troca só pediram para ele retribuir o favor, ajudando outras pessoas, acabou crescendo e se tornando um nadador que colecionava diversas medalhas, mas ao olhar para trás percebeu que aquilo não ajudava ninguém. Como mostrado, ele larga tudo em prol de um ideal e passa a se tornar um militante da mudança social no terceiro mundo. Em uma de suas viagens, ele acaba cruzando com um grupo de ativistas que usam a música como uma forma de crítica social contra a guerra que está em curso. Eles viajam pelos países devastados e cantam para aqueles, sendo estes principalmente crianças, que sofrem com as consequências da guerra.


E é ali que ele conhece Yuuko, onde acaba rolando uma química entre os dois. Porém, eles acabam sendo vítimas de uma emboscada e vão parar com o carro descontrolado em uma caverna, onde reside um deus antigo, que acaba possuindo Shinjuurou. E aqui temos dois pontos interessantes, assim como também a narrativa se divide entre passado e presente de forma competente até que estes dois pontos se tornem um só e todas as pontas soltas deixadas na série de tv, se fecham satisfatoriamente. Começando pelos eventos do passado, onde Shinjuurou acaba violentamente empalado no “acidente”, mas que se levanta como se nada tivesse acontecido, incorporado por aquele estranho ser que começa a devorar a alma de todos, mas não sem antes força-los a revelar sua verdadeira natureza interior. O que vemos, é um espetáculo, não sanguinário, mas emocional onde os jovens ali temem mais serem defrontados com a verdade e tê-la exposta diante a todos, do que morrer. O que poderia ser encarado como verdade é que os verdadeiros sentimentos dos ativistas eram de autossatisfação pessoal, ao invés da satisfação de um bem maior. Problema? Nenhum isso é humano. Mas quantos aguentam serem defrontados e ter a verdadeira natureza que adormece em seu interior, exposta dessa forma?



Yuuko Kurata, ainda em sua forma humana e viva, prefere se suicidar a deixar Shinjuurou (que estava sendo controlado por Inga) ler seus pensamentos mais profundos e ocultos. “Ninguém verdadeiramente diz o que sentem. Mas isso não é a única verdade, as pessoas têm muitos lados em seus corações. São todas as verdades.” – Foi uma cena bem intensa e carregada de questionamentos, afinal, ela não quer que ninguém decida qual é a sua verdade, seres humanos são criaturas ambíguas demais para que caibam em um simples “verdade e falsidade”. De posse do corpo de Yuuko, então Inga e Shinjuurou selam um pacto, onde ele se dispõe a oferecer várias almas para ele, em troca de que ele não coma a alma de ninguém indiscriminadamente. Enquanto Shinjuurou pode assim contar com a assistência de Inga, que desde então só pode usar seus poderes para revelar a verdade sobre alguém, uma única vez e como resposta de alguma pergunta feita [claro, por Shinjuurou].

É um conceito de regras estabelecidas, bem interessante. Afinal, Inga funciona em UN-GO como uma ferramenta de roteiro, um Deus Ex-Machina que fará qualquer um responder a alguma pergunta feita por Shinjuurou. Exatamente por isso, as perguntas precisam ser bem pontuais e exatas. Mas ainda que as perguntas sejam apenas uma forma de provar a culpa de alguém, criando uma prova contra a pessoa ou uma forma de obter alguma pista para um mistério, Shinjuurou é quem tem de desvenda-lo, até mesmo porque muitas respostas não claras o suficiente. Há que se dizer que realmente poderia ser um truque de roteiro bem falho, caso UN-GO se concentrasse na questão do mistério, mas ele acaba indo pro lado dos “por quês?”. E há outro aspecto interessante que fica mais oculto. Assim como Inga pode expor as “mentiras” das pessoas, também pode usar esse poder e tomar o que essa pessoa disse como verdade. Algo recorrente do governo chinês como forma de reprimir os dissidentes e que a figura do personagem Kaishou [uma importante figura politica e de status elevado na série] começa a fazer.

Kaishou Rinroku que em UN-GO simboliza o status quo, a figura daquele que se beneficia com as continuas guerras que o Japão havia feito parte e procura preservar seu monopólio da infraestrutura da comunicação de Tóquio. O legal de ver que UN-GO se conecta a vários pontos sem soar descabido, é que além do que já comentei, se passando em um período onde as a influência ocidental sobre o Japão estava num ritmo intenso, temos um Kaishou recebendo ajuda exterior ao longo do tempo e usa de sua influência para evitar qualquer resistência como podemos ver na série de tv.  Aqui a sua participação é pequena, mas crucial como podemos ver ao final do filme, onde Shinjuurou descobre o culpado, mas a verdade é varrida por baixo do tapete por Kaishou, que dá a ele uma nova identidade. Toda a resistência deve ser rompida, para que se mantenha o status quo.


Nessa mesma linha atual do filme, paralelamente vemos o passado e encontro entre Shinjuurou e Inga, em uma sintonia sensacional com acontecimentos do presente, com eles investigando um estranho culto, onde o representante é alguém do passado que deveria estar morto. A conclusão do mistério não é tão impressionante, como sempre, mas como um todo o desfecho é sensacional. A introdução de Bettenou, outra divindade, é uma importante peça para o roteiro. Seu poder é o oposto de Inga. Este, enquanto tem o poder de revelar a verdade em uma pessoa, o de Bettenou pode tornar qualquer declaração falsa em verdade, criando ilusões. Também trás a tona àqueles que tem poder monetário e consegue ofuscar a verdade com sua influência, caso de Kaishou.

Tanto Inga, quanto Bettenou são divindades que fazem a vontade de outras pessoas, com seus poderes podendo ser usados para o bem ou para o mal. Eles não fazem acepção de valores. E essas duas personagens, são utilizadas na série como elementos que simbolizam esse poder politico.


UN-GO episode: 0 Inga-ron apesar de ser um filme, trás uma animação padrão [o que é bom, pois apesar de não se destacar, também não compromete], mas é eficiente para contar sua história. Se em filmes como Paprika, o que mais chama a atenção é a belíssima e imaginativa animação e uso de cores, aqui certamente é o roteiro, pois não há muita diferença entre filme e serie tv em questões estéticas. Roteiro este que é extremamente sólido e perfeitamente interligado com a série de tv. Cada episódio de UN-GO, trás a tona uma discussão, um conflito de interesses, uma questão exposta no cardápio, para que o espectador possa aprecia-la. É assim no episódio 05 onde a reputação de um politico carismático, fica ameaçada quando várias pessoas começam a morrer ao seu redor misteriosamente, com todas as evidências apontando para ele. Mas o ponto aqui é o diálogo entre Shinjuurou e o político sobre os sacrifícios da guerra. Foram diálogos fascinantes. O 07 e 08, apesar do tom surrealíssimo, houve um importante diálogo sobre as diretrizes da guerra. Todos os episódios acabam tendo uma correlação com fatos reais (o comentário de Kaishou sobre o terremoto de Tohoku no episódio 09, por exemplo) que denotam o significado da série que é expor as verdades mais escusas e revelar as mentiras dos bastidores.

Enfim, UN-GO evidência um fato além das fronteiras detetivescas, explorando o mundo construído por seu autor, que expõe seu ponto de vista cruzando a narrativa com discursos políticos, culturais, econômicos e experiências vividas por uma população. O que podemos tirar desse filme de UN-GO episode: 0 Inga-ron, é o que se encontra em seu final: “Você prefere o conforto da palavra de um homem ou a dura verdade, horrível e dolorosa?”. Aqui nós temos a verdade e a mentira como dois lados da mesma moeda e o filme faz um bom trabalhado em evidenciar isso. UN-GO certamente é uma série marcante, boa de um modo geral e que tecnicamente não impressiona, mas que trás uma boa dose de questionamentos para quem está interessado em algo mais crítico, menos divertido e mais sério. 

E se ainda não leu, confira a minha review sobre a série de tv: UN-GO: Crítica à um Japão Pós-Guerra

Tipo: Filme
Ano: 2011
Estúdio: BONES
Gênero: Mistério
Diretor: Seiji Mizushima (Fullmetal Alchemist)
Roteiro: Shou Aikawa (Fullmetal Alchemist)

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