Mohiro Kitoh é conhecido por explorar exaustivamente o lado
psicológico em suas histórias, que possuem como característica, o
aspecto trágico. Tem como tema de todas as suas histórias, a
crueldade humana e suas vulnerabilidades – Mas é em sua abordagem,
que ele se diferencia de autores como Lynn Okamoto, que não é
conhecido por suas sutilezas.
Uma série como Naru Taru por exemplo, onde um grupo de
meninas de 11 anos enfia um vidro de ensaio na vagina da outra, além
de pisarem em seu estômago, é desenvolvida aqui de forma natural
pelas mãos habilidosas de Kitoh. Com suas histórias permeadas de
violência gráfica e sexo, envolvendo quase sempre crianças –
Esses elementos acabam se tornando um meio e não o fim. O que me
atraiu em suas histórias foi sem dúvidas a forma como ele retrata a
natureza humana. Ele pode ter dois personagens iguais, que agem
perfeitamente iguais (como podemos ver em Vandemiairu) mas
lhes dar razões diferentes para os mesmos, assim como estes
personagens podem estar nas mesmas situações e agir de forma
diferente.
Ainda que haja
bastantes elementos de fantasia em suas histórias, as expressões e
atitudes dos personagens soam como sendo muito reais. Isso graças a
sutileza com que ele ilustra isso. Seu traçado é simples, suas
personagens não possuem curvas estonteantes, nem grandes atrativos
sexuais. O que é bem típico do Kitoh; não se preocupar com
aspectos estilísticos, mas apesar disso, sempre trazer um tom
realístico impregnado no roteiro fantasioso com crianças em corpos
delgados, lidando com assuntos do mundo adulto.
Ainda que Kitoh seja um
“monstro” dos quadrinhos, com histórias repletas de tensão e
brutalidade, com sangue e tripas voando e manchando as páginas –
Ou sem a violência gráfica, mas ainda apresentando um show de
tortura e brutalidade psicológica, ele também consegue produzir
coisas bem mais intimistas e tranquilas, algo mais voltado para o
cotidiano como se vê em algumas de suas histórias curtas.
Kitoh, como a maioria
de seus colegas mangakás, se expõe bem pouco, assim como também
como muitos começou fazendo histórias curtas para antologias
shounens. Sua primeira história foi Zansho - Summer Heat, que
calma como uma pequena maré que deságua na praia, traz com toda a
delicadeza uma insinuante história sobre incesto – Que foi
publicada na Shounen Sunday da editora Shogakukan em 1987, ainda sob
o pseudônimo de “Tomohiro Kito”. Em 2004, Zensho ganharia uma
versão encadernada contando com todas as histórias curtas do autor
publicadas em anos anteriores nas revistas da editora. Depois da
curta história de Zensho, levaria alguns anos até ele publicar
Sanchome Kosaten Denshinbashira no Ue no Kanojo, em 1994 na
Shounen Champion, mas dessa vez sob um novo pseudônimo; “Shiji
Kito”.
Em 2008 ele começa o
violento thriller protagonizado por crianças pré-púberes; Naru
Taru, conhecido pela galera como o “Pokémon do mal”. O
mangá de 10 volumes concluído em 2003, ganhou uma polêmica versão
em anime pelo desconhecido estúdio Planet, para o canal de TV Kids
Station. Espantoso, claro, afinal o conteúdo de Natu Taru é
fortíssimo por si só, imagine vinculado numa grade infantil da
sempre puritana TV aberta japonesa. Deu o que falar e com razão.
Mesmo anos depois, quando Tsubasa Reservoir Chronicle foi ao
ar na estatal NHK (o mesmo canal que exibiu originalmente Sakura
Card Captor), acabou por ser cancelado depois de segunda
temporada, devido ao teor de violência que a história do grupo
CLAMP, havia alcançado em sua reta final, ainda que nem se
aproximava do show de brutalidade de Naru Taru. O mangá que começou
a ser lançado nos EUA, obviamente logo foi cancelado quando os
editores perceberam que não se tratava de uma história nada
infantil. A história sobre delinquência juvenil, veio adaptada
pelas mãos do sempre ótimo e afiado Chiaki Konaka, que também nos
trouxe os cultuados Big O, Serial Experiments Lain e
Texhnolyze. Naru Taru também tem sua pegada cult, ou
pseudo-cult como preferirem, com uma história onde crianças
descobrem bichinhos de olhos enormes, que podem, além de se
transformarem em qualquer coisa que o dono queira, transmitir e
receber sensações. Os bichinhos possuem aparência fofa e a própria
abertura do anime, tem um feeling bem infantil. O problema
começa quando crianças delinquentes e sociopatas também adquirem
as estranhas criaturinhas. Foi com esse anime que eu me descobri
apaixonada por Kitoh, pois depois de assistir uma história tão
densa, quis pegar o original e acabei descobrindo um universo
extremamente interessante traçado pelo autor.
Em 2003 ele começa sua
série mais famosa; Bokurano. Eu demorei um pouco pra descobri
este, que apesar de sempre ouvir falar e ser recomendado por ai,
acabei não prestando atenção no nome do autor. Daí foi um choque
quando descobri que se tratava do mesmo mangaká! Apesar de ainda
(até o presente momento que escrevo este post) estar lendo
este mangá, realmente já é perceptível se tratar mais muito mais
sobre a psicologia humana do que propriamente sobre mechas, como
comentado pelo Mangás Undergrounds e reafirmado pela @Josi
em seu post no Nahel Argama. Dizem as más línguas que
Bokurano é uma versão mais eficiente e desconhecida do que foi
Evangelion – Não cabe agora entrar nesse mérito, mas sim,
a série consegue quebrar a ideia que temos internamente do que é um
robô gigante pilotado por uma criança.
Apesar de Kitoh ter
sido proibido pelos editores da Shogakukan de publicar o epílogo da
série, pra evitar polêmica pelo seu teor de violência, Bokurano
como um todo é uma série bem fácil de ser digerida pelo público
médio, por não ser tão violenta e sem muito derramamento de
sangue, ainda que bem forte psicologicamente.
Porém, ele só passou
a assinar como Mohiro Kitoh, em 1996 com sua terceira história
publicada; Vendemiaire no Miigite.
De 96 à meados de 98, ele publicou vários desses contos para a
antologia Afternoon, da editora Kodansha. Ao todo, Vendemiaire
no Tsubasa possui 8 contos adoraveis distribuidos
entre os seus 2 volumes. Vendemiaire são seres artificiais, possuem
asas mas não são anjos, já que possuem um corpo mecânico, porém
também não são máquinas, pos elas possuem almas. Só que não são
humanas. Elas possuem uma aparência frágil, mas por outro lado, são
imortais.
Em cada
uma dessas histórias entrelaçadas, que ora se ligam uma à outra,
ora se distiguem completamente, se passam em um mundo bem ao estilo
da Europa do inicio do século 20, com seus veículos típicos, onde
os aviões ainda eram uma novidade encantadora e os balões ainda
tinham um espaço no céu como veículos dirigiveis. Essas histórias
que vagamente se relacionam entre si, onde temos uma boneca chamada
Vendemiaire [que vem à vida pelas mãos de algum homem, na maioria
das vezes, mal intencionado e a escravizando] se relacionando – nem
sempre sexualmente ou romanticamente - com algum garoto. Geralmente
eles tentam obter a liberdade de Vendemiaire, que ora tem asas
brancas, ora negras. Ora é doce e gentil, ora geniosa e
manipuladora. Sempre temos aviões simbolizando a liberdade
idealizada pelos homens e numa época de revolução indústrial, os
homens ainda nutriam um sentimento bem forte de dominar os ares –
Uma época onde se tentava voar com asas falsas [que levava o sujeito
em um vôo direto para a morte – Algo que era bem abordado pelas
saudosas novelas de realismo fantástico, como O Bem Amado (1973) ou Saramandaia
(1976)], as próprias Vendemiaires não
podiam usar suas asas para alçarem vôos, pois com elas não podiam
voar e caso tentassem o destino geralmente era se quebrar
completamente. Aqui nós temos uma métafora usada por Kitoh sobre
liberdade, onde as asas representam esse sonho, juntamente com as
Vendemiaires sempre tidas como propriedade particular. Ele faz
questão de destar isso sempre através da narrativa, na maioria das
vezes de forma camuflada, seja nos diálogos ou no cenário das
histórias.
Aliás, a
na última história, temos uma continuação direta do primeiro
conto, com um desfecho nada menos que muito poético simbolizando a
liberdade.
Vendemiaire
no Tsubasa se caracteriza pelo toque filosófico e poético, além de
sua crítica sútil. Kitoh tem uma incrível habilidade com histórias
de conteúdo episódico, como se faz notar aqui. Como pode ser visto
em Bokurano, aqui ele mostra essa habilidade natural em desenvolver
histórias, sem se preocupar com a continuidade, que ainda assim de
alguma forma, elas se interligam entre si. Nessa série, seu traço
ainda não é tão consistente quanto nas mais recentes, mas ainda
que não esteja tão refinado, consegue ser atraente dentro do
contexto das tramas. Aliás, aqui, apesar de termos histórias mais
leves, sobre o dia a dia, já possuem um tom impregnado de
obscuridade retratado com delicadeza, que afinal é a marca do autor.