terça-feira, 21 de agosto de 2012

Corrente De Reviews: Hataraki Man - Mulher Macho Sim Senhor!


"A verdade é que este trabalho é muito estressante. Já estive a ponto de deixá-lo já não sei quantas vezes. Especialmente antes das correções finais" – Matsukata Hiroko (28 anos). Trabalho: redatora.
Hataraki-Man é uma história do ponto de vista feminino, sobre a mulher no mercado de trabalho no Japão, e como isso afeta sua vida pessoal. A série foca no setor de trabalho da protagonista Hiroko Matsukata e os diversos obstáculos que ela tem que enfrentar num ambiente que muitas vezes se mostra bem machista. 


Hiroko Matsukata é uma jornalista que trabalha na redação da revista Weekly Jidai (uma revista ficcional) da editora Gotansha (uma brincadeira com o nome da revista Kodansha, que publica o mangá de Hataraki-Man no Japão). A revista que Hiroko (vou chama-la de Hiro, assim como seus amigos íntimos o fazem) trabalha é voltada para homens, mas com um conteúdo bem abrangente, como moda, dietas, romances (algo bem comum por lá, como acontece com as light novels), política e etc. Hiro trabalha em artigos semanais sobre os mais variados temas que possam ser de interesse dos seus leitores masculinos.

Fumante compulsiva, sagaz, e perfeccionista, Hiro é o retrato da mulher moderna, uma autêntica workaholic (pessoas viciadas em trabalho). Ela se dedica realmente ao que faz. Quando está diante de prazos apertados, ela liga o seu Man mode e se transforma em um Hataraki-Man [O “Homem Trabalhador”]. "Quando Matsukata se converte em "O Homem trabalhador", seus níveis de testosterona se multiplicam. E neste estado, sua velocidade de trabalho é o triplo do habitual. E enquanto isso durar, suas necessidades de dormir, comer, receber afeto, de se vestir e higienes desaparecem". – Nagisa Mayu (23 anos). Redatora.

Mas não se enganem a piada machista não se trata de apologia, uma reafirmação ao conceito de sexo frágil, onde nesse mode, Hiro não consegue dar conta do serviço pesado no prazo pré-estabelecido, tendo que recorrer ao seu Man mode. Não, não, não. Moyoco Ano é uma das mangakás mais versáteis que eu conheço, e sabe lidar bem com cada público que trabalha, sem perder as sutilezas. Do conto sobre o primeiro amor do infantil Sugar Sugar Rune, ao adulto vulgar de Happy Mania, a autora deixa a sua mensagem, mas nem sempre de forma obvia. Hataraki-Man não é uma crítica ao machismo, mas o retrato de uma mulher num ambiente de trabalho predominantemente masculino, o Man mode de Hiro é uma sátira. Uma sátira sobre um ponto de vista machista. Assim como muitas mulheres, Hiro acaba assumindo várias tarefas, além da carreira profissional, é preciso exercer “sua função” como mulher e cuidar da família.


O esforço sobre-humano de Hiro é o mesmo que várias mulheres já o fazem, mas nem sempre são reconhecidas. O Man mode com Hiro travestida de “homem trabalhador” é na verdade uma piadinha feminista, afinal, o único esforço realmente válido é o do homem. É tão na cara, que eu fico perplexa como muitos podem considerar como sendo uma piada machista, mas, compreensível e uma excelente jogada de Anno, que publicando numa antologia que tem como publico alvo, o sempre tradicional homem médio japonês, precisa atrai-lo, e não afugentá-lo. A mesma Anno que criou sua personagem como um homem trabalhador na versão feminina, é a mesma que colocou na boca de um dos personagens masculinos da redação a frase "Quando estão jovens, as mulheres têm mais energia que os homens".


Hiro não tem meias palavras, feminilidade não é seu atributo mais notável, é admirada/invejada pela sua postura de trabalho por suas colegas (e também criticada por ser masculina), mas ao mesmo tempo, não querem receber um tratamento de igualdade, mas se valerem do fato de serem mulheres e tirarem vantagem disso. Cada personagem em Hataraki-Man possui um estereotipo fácil de encontrar num ambiente de trabalho (meu professor da faculdade estava comentando justamente isso essa semana...). Mas é apenas isso, a série não entra no mérito maniqueísta, felizmente. Hataraki consegue passar bem a ideia, onde num ambiente de trabalho que predomina os homens, as mulheres mais delicadas, que se vestem bem e possuem sexy appeal o suficiente para serem admiradas/paparicadas, muitas vezes parece estar ali apenas para enfeitar o ambiente, e quase sempre sendo alvo de comentários maliciosos. No episódio 06, nós vemos Hiro entrar em atrito com um colega de trabalho, devido a comentários que este tecia sobre sua colega de trabalho, que devido ao fato de estar sempre flertando com os homens do escritório, despertava diversos tipos de comentários/cochichos maliciosos. No episódio 10, novamente nós temos como foco uma mulher que por ser bonita e senhora de si, nunca era chamada a atenção por seus superiores, além de despertar suspiros nos outros homens da redação. O roteiro não tenta em nenhum estante pinta-las como injustiçadas, mas também não as vulgariza. Vemos que estas, apesar de não abrirem mão do apelo sexual que possuem, dão duro para se sobressaírem em seus cargos. E conseguem.


Mas, Hiro não é lésbica. Apenas uma mulher comum buscando sucesso profissional em um país com altíssima taxa de desigualdade de gênero, batendo de frente seja com quem for e encarando situações que muitas outras mulheres não estão dispostas, conciliando sua vida pessoal com a profissional, sacrificando seu relacionamento em prol de sua independência, e, em cima dos saltos, enfrentando a truculência masculina e abrindo caminho a força numa profissão tipicamente destinada ao homens (muitas vezes, por ser mulher, Hiro não é levada a sério, mas quem disse que ela se intimida?). Sexo frágil é um termo que não existe pra personagem, ainda que ela sinta carência devido à ausência de seu noivo, que também é um viciado em trabalho e quase nunca está presente, e se sinta fragilizada em diversas situações – Como quando em um dos episódios ela é perseguida na volta do serviço devido a uma matéria que fez e fica desesperada. Chega correndo no apartamento, liga para o Shinji, seu noivo, e o pede para vim ficar com ela, que se recusa prontamente por estar ocupado. Ela chora e se sente triste (ela o entende e pensa “no seu lugar, eu diria o mesmo”, mas a sua dor persiste), a vemos diversas vezes desanimada pelo fato de não ser valorizada pelo seu esforço, é obrigada a corrigir as lambanças do seu colega que sempre faz as matérias nas coxas e plagia seus artigos. Fora do expediente a vemos conversando num bar com suas amigas, num restaurante com seus colegas de serviço, malhando, fazendo massagem, e ela enche a cara na bebida para esquecer seus problemas. O assunto? Tipicamente feminino; seu relacionamento, seu stress profissional, seu corpo, sua abstinência sexual de 3 meses sem fazer sexo com eu noivo. 


O mangá de Hataraki-Man, antes de sua paralização (devido a problemas de saúde de Anno), fez um relativo sucesso, e muito se deve a essa pegada em retratar de forma realista a vida da mulher japonesa moderna, buscando por igualdade enquanto permanece feminina e cuida da família [este, o principal motivo do Japão ter uma taxa de igualdade de gênero tão baixa]. O Japão possui um longo histórico de obras que retratam a dura vida do Salaryman, suas angustias e sua glórias, mas pouco, pouquíssimo se vê um olhar mais crítico do cotidiano da mulher no mercado de trabalho japonês. No ranking de países desenvolvidos, o Japão é um dos mais atrasados e que possuem a maior taxa de desigualdade de gênero. Em 1999 o governo Japonês aprovou a Lei Básica da Sociedade género igual, estabelecendo em 2005 o primeiro posto ministerial para tratar exclusivamente a igualdade de gêneros – O governo espera que até 2020, que 30% dos cargos mais importantes do país sejam ocupados por mulheres. E atualmente pouco mais de 9% dos assentos parlamentares no Japão são ocupados por mulheres.

Segundo a OCDE, as mulheres japonesas são aquelas que possuem o mais alto nível da educação no mundo, mas que a taxa de emprego das mulheres ainda é inferior em 15% em relação aos cinco países com as taxas lá no topo. O que acaba pegando ai é justamente o que vemos retratado na série; problemas sociais. Não há creches suficientes e devido a isso, as mulheres são as principais responsáveis pela educação de seus filhos, enquanto os maridos trabalham. Isso gera outro problema, que é o fato dos homens não compartilharem a responsabilidade na criação do filho. Em Bakuman [mangá de autores de valores ultraconservadores] no temos os melhores exemplos, onde a figura paterna é aquela que dá a última palavra, mas é a mãe a responsável por resolver os pequenos problemas e a quem o filho recorre primeiro. Em um dos episódios de Hataraki-Man, a Hiro está cozinhando, o marido está assistindo tv (o apartamento é daqueles apertados, com sala + cozinha), o telefone toca, é um telefonema importante com relação ao seu trabalho, ela atende, a comida queima, ele percebe, mas não faz nada. Quando ela questiona porque ele não interveio, ele pensa “mas a responsabilidade não era minha”.

Hataraki-Man não levanta nenhuma bandeira especifica e mesmo os personagens masculinos e seus conflitos, recebem destaque. A série consegue pegar o conflito de vários personagens secundários e conecta-los, ou à sua protagonista, ou ao escopo da obra. A taxa de divorcio aumentou rapidamente entre as mulheres nas últimas décadas lá no Japão, com muitas se sentindo seguras para poderem viver de forma independente. Vemos isso em Hiro e seu noivo extremamente ausente. Ele não suporta o peso de ter mulher que é mais bem sucedida que ele, e pede o termino do relacionamento. O conflito dele é autêntico mesmo nos países ocidentais, no Japão se torna ainda mais contundente. O roteiro conseguiu se desvencilhar da saída clichê de marido infiel, e assim vemos em tantos outros conflitos abordados com sobriedade e desenvoltura, com dramas autênticos sobre homens e mulheres adultos.

As linhas de diálogos são ótimas e quase sempre abordam esse conflito entre gêneros, onde mulheres independentes muita vezes assustam os homens a procura de uma companhia do sexo oposto.

 Segundo Anno, Hataraki-Man é basicamente um guia de como se sair bem num ambiente de trabalhado dominado por homens, e colocar em evidência o tormento enfrentado tanto por homens, quanto por mulheres, um problema que aflige o Japão, que é a correria e a dedicação quase que período integral ao trabalho, se desvirtuando de um estilo de vida mais lendo, que já se perdeu há tempos. E os personagens como um todo, correspondem a esses conflitos, e embora não ofereça nada para o público mais novo, é envolvente o suficiente para qualquer um que tenha interesse no responsável mundo adulto e seus problemas.

O mesmo para Hiro, que muitas vezes é obrigada a ouvir comentários/conversas que toda mulher preferiria não ouvir
Moyoko Anno é uma das melhores mangakás da geração atual, com uma mangagrafia diversificada e recheada de obras que traz a tona tópicos onde muitas vezes as mulheres são degradadas, mas sob a ótica feminina. Nascida em 1971 e casada desde 2002 com o internacionalmente conhecido diretor de Evangelion, Hideaki Anno, Moyoko é prestigiada e conhecida no Japão, com diversas obras tendo sido premiadas e recebido algumas adaptações. Estreou como mangaká aos 18 anos com uma oneshot shoujo na Bessatsu Friend DX Juliet, mas ela só viria a ser a artista completa que conhecemos hoje depois de trabalhar como assistente de ninguém menos que Kyoko Okazaki, muito conhecida pelo alto grau de erotismo em suas obras, mas também por temas típicos que afligem as mulheres, como na sua obra mais conhecida e aclamada/premiada; Helter Skelter, que conta a história de uma modelo desequilibrada e paranoica com o padrão de beleza. Oras, quando li pela primeira vez sobre Kyoko Okazaki, foi no ótimo Mangás Undergrounds e levei um susto, pois tanto a história, quanto o traço, eram parecidos com o da mangaká SakurasawaErica (resenhei um de seus mangás aqui), só depois viria a entender que ambas, Erica e Moyoko, foram pupilas de Okazaki, e que não por acaso, essas duas excelentes mangakás da atual geração, possuem o traçado muito similar à outra e gostam da mesma abordagem: O universo feminino enfrentando conflitos típicos da mulher adulta num mundo com padrões definidos pelos homens.

Infelizmente, ela parou de produzir em larga escala em 2008, devido a problemas de saúde, só voltando recentemente. Quando Hataraki-Man foi adaptado em 2006, ainda se encontrava em alta e marcou a era de ouro do conceituado bloco de animação Noitamina [que estreou em 2005], que era até então, voltado à audiência feminina com animações como Honey and Clover, Paradise Kiss, Ayakashi: Samurai Horror Tales (sim!!!) e Nodame Cantabile. Enfim, desses tempos áureos, Hataraki-Man é o menos conhecido, e embora receba boas críticas, seu ostracismo se justifica pelo fato da série não possuir uma direção mais eficaz, sendo apenas competente. Consegue contrabalancear bem a temática seria com o bom humor, mas algumas vezes tropeça no ritmo episódico, com alguns altos e baixos. Pelo mangá ainda estar em andamento, alguns pontos e conflitos interessantes não foram desenvolvidos. O character designer foi muito bem adaptado para a tv e é bem consistente, e mesmo a série não possuindo uma animação que se destaque pela fluidez, não é realmente um problema, afinal, Hataraki-Man se destaca pelos bons e pontuais diálogos, não pela “ação”. Se os diálogos se destacam, a trilha sonora não fica atrás, com inserções maravilhosas em alguns episódios, seguindo o rastro de Honey and Clover (que fez diversas inserções musicais maravilhosas), pena que não usaram mais desse recurso. Hataraki-Man é um bom anime que deverá agradar a quem procura algo reflexivo e adulto, e algo de sóbrio numa indústria que cultua o escapismo. Como simples entretenimento puro, não é lá muito atraente.


Nota: 07/10
Ano: 2006
Estúdio: Studio GALLOP (Rurouni Kenshin)
Diretor: Katsumi Ono
Tipo: Tv
Episódios: 11



#Notas

- A publicação de Hataraki-Man
Josei (mulheres jovens/maduras) e seinen (homens jovens/maduros) são demográficos bem abrangentes. Principalmente o seinen, que consegue abocanhar uma boa parcela do publico feminino. Hataraki-Man é um seinen, com cara de josei, mas o fato de dialogar com ambos os públicos de forma igual, o torna um material mais do que adequado para ser publicado numa revista pensada primeiramente no homem.

- A Mulher e a desigualdade de gênero
O Japão e o Brasil possuem um histórico similar de desigualdade de gênero, que vem desde o Japão Feudal e do Brasil Colônia. Atualmente, o Brasil evoluiu bastante deixando a pequena ilha asiática pra trás, as mulheres conquistaram vários direitos importantes com relação à saúde, emprego, política, liberdade de expressão, leis que protegem contra violência e muitos cargos que antes eram ocupados apenas por homens são ocupados por mulheres. Mas, ainda persistem certas similaridades, como as diferenças com relação ao salário de homens e mulheres que exercem o mesmo cargo ou de terem que fazer um esforço maior que o do homem, para mostrar que tem competência para desempenhar determinada função. Mas em algumas das mais conservadoras corporações do Japão, as disparidades de condições de trabalho entre homens e mulheres ainda permanecem.

Novamente, citando Bakuman que é um bom retrato de um Japão mais conservador, temos a personagem Aiko Iwase, bem sucedida e independente, mas que segundo comentários dos próprios personagens, é o tipo de mulher que não se casaria facilmente, por não ser a dona de casa ideal. Entre outros diversos exemplos, Miyoshi, responsável por todo o trabalho doméstico no escritório de Mashiro, e quando este questiona se não deveria pagá-la, Takagi, seu noivo, o tranquiliza, dizendo que não é necessário se preocupar, que ela gosta do que faz (!!). Temos então, valores conservadores/retrógrados inseridos nem sempre de forma discreta e muitas vezes de forma machista, mas que refletem a realidade daquele país. Dizem que no Japão é a mulher quem toma a decisão final como consumidor, imagine se esse papel fosse transferido para o lado da produção; aconteceriam mudanças revolucionárias na sua economia e indústria.

- A Corrente de Reviews

Idealizada pelo Didcart, do blog Anikenkai, tem como ideia básica a interação entre diversos blogs da blogsfera de animes e mangás do Brasil. E claro, leva-los a conhecerem séries que provavelmente não assistiriam por conta própria e aumentar o acerto de diversidade de reviews /dizem né. Eu gosto de ver como um amigo oculto/sacanagem, onde você vê a pessoa que tirou no sorteio e pensa num título especialmente pra ela. Mas com a ideia de tirá-los da zona de conforto e apresenta-los títulos obscuros e undergrounds, tá mais pra amigo sacanagem. Quem me indicou Hataraki-Man, foi o @PaninoManino do blog Subete Animes, que teve que encarar Tsukihime, eu gostei bastante da indicação e agradeço, sinceramente não é algo que eu assistia por vontade própria (mas já namorava o mangá a certo tempo). Eu indiquei Panty and Stocking with Garterbelt para o Mr. Lucas do Chuva de Nanquim, pra ver a opinião do blog BRBR de animes mais popular sobre algo que faz piadas envolvendo cocô e sexo de uma forma pensadamente vulgar recheado de humor ácido, mas me arrependi e acho que eu deveria ter indicado é Yondemasuyo, Azazel-san...chateada.