"...por que será que hoje as memórias do passado vêm a
mim como se fosse ontem? É como se o passado e o presente estivessem se
fundindo"
Arie dorme em um coma sem fim, com um pai mentalmente instável e pedófilo cuidando dela. Suzuki odeia o mundo por este ser cruel e injusto, um autêntico outsider que tenta a todo custo se manter afastado de outras pessoas, mas nutri um amor platônico por sua professora Sasaki. Komatsuzaki é um valentão imprevisível, que acaba ficando de frente com algo aterrador que mudaria completamente a sua vida. Takahama é continuamente vítima de bullying de seus colegas, selado em um destino de violência e desequilíbrio mental. Hayato comete um terrível crime em sua infância e por ironia do destino, se torna policial quando adulto, mas será que ele é capaz de esquecer? Arakawa parece sem rumo na vida, ama Komatsuzaki, que ama Arie, pra ficar com ele empurra Arie pra um acidente fatal, mas nunca é correspondida, sendo pra sempre atormentada pelo que fez. Sasaki é uma professora atormentada por seu monstro interior, ao tentar salvar uma aluna de um estupro, foi ferida gravemente no olho. A mãe de Arie cometeu suicídio. Tudo isso são fragmentos de conflitos de vários personagens, abrangendo 10 anos de crueldade, escuridão, sofrimento, distúrbios mentais e abusos, onde tudo parece ter sido desencadeado no misterioso campo de Nijigahara (Nijigahara Holograph). Haverá esperança e redenção nesta vida dolorosa? Como fazer pra mudar um destino que parece selado? Enquanto não encontrarem a resposta, estão todos destinados a viver um ciclo infinito de dor e amargura. As borboletas separadas pelo destino devem se tornar uma.
Depois que você ler Nijigahara
Holograph, ficará maravilhado e reflexivo, mas também é possível que no
primeiro instante acredite que nada faz sentido neste título e que Inio Asano
tentou fazer algo cult e profundo ao contar uma história fora de sua ordem cronológica,
procurando na desordem, o status de algo complexo e sublime. Bem, todas essas
afirmações são verdade, mas não no sentido pejorativo, afinal, Asano provou
mais uma vez o porquê, ao lado de gente como Kengo Hanazawa, ser um dos grandes nomes da nova geração de
mangakas. Nijigahara Holograph
seguir por uma leitura não cronológica em relação aos acontecimentos é justificável
no próprio conceito da obra.
Um conceito em que o fato de que determinado personagem
está, em determinado lugar, interfere na vida de todos os outros personagens. Para
lembrar-se de outras séries de “efeito
borboleta”, podemos citar Crash – No
Limite e Kokuhaku (Confessions),
que partem da ideia do que afeta um ser humano afeta a humanidade inteira. Nijigahara Holograph e os filmes
citados são construídos a partir de seus momentos de clímax, e tudo mais é
pensado para caminhar na direção desses momentos.
Nijigahara Holograph
tem sua narrativa ainda mais fragmentada, desconcertante, repleta de sutilezas
e subcamadas, exigindo uma leitura atenciosa para conseguir decodificar todo o
enredo. Inio Asano constrói uma história que desafia a simples leitura, algo
mais difícil e que quase sempre exige uma segunda e minuciosa releitura. No
entanto, Asano consegue manter a sua história muito convincente e sem nenhum
furo ou incoerência, mas altamente ainda interpretativa. Surpreendentemente, na
última página, o mal-entendido que, inevitavelmente, resulta dessa primeira
leitura, não só deixa uma ligeira sensação de frustração, mas também uma vontade
incrível de reler tudo para tentar encontrar algumas pistas que ajudarão no
melhor entendimento do enredo. Incrivelmente, relendo pela terceira vez para
poder escrever essa review, eu ainda consegui pegar diversas nuances que haviam
me passado despercebido na segunda leitura.
De David Lynch à Satoshi Kon, Nijigahara Holograph é um rascunho da alma humana, se apega ao
sobrenatural apenas como uma ferramenta de roteiro, mas no fundo, a intenção
não é ser um thriller psicológico, mas uma pintura de sentidos: Inercia, egoísmo,
desejos ocultos, o monstro interior querendo imergir. A mensagem de Asano é
clara e evidente: Todos possuem uma natureza podre dentro de si, o mundo muitas
vezes nos parece feio e viver é um tormento, mas é preciso resistir. Sim, Nijigahara Holograph é melancólico e caótico
(aliás, a narrativa não linear e
complexa da história, se mistura de forma fantástica à natureza caótica da
mente do ser humano, retratado através dos personagens), mas nunca
desesperançoso, assim como os outros trabalhos de Asano.
"Zhuangzi
adormeceu um dia em um jardim de flores, e teve um sonho. Ele sonhou que era
uma linda borboleta. A borboleta voou aqui e ali até o cansaço, então ele caiu
no sono, por sua vez. A borboleta teve um sonho também. Ele sonhou que era
Zhuangzi. Neste ponto, Zhuangzi acordou. Ele não sabia se ele era agora o real
ou o sonho do Zhuangzi Zhuangzi da borboleta. Ele também não sabia se era ele
que tinha sonhado a borboleta ou uma borboleta tinha sonhado com ele."
E sim, é uma história que flerta com diversas referências filosóficas,
retrata os eventos pelo viés da natureza poética, e brinca a todo instante com
o subjetivo. É aquela coisa meio pseudo-cult à lá Legião Urbana, sobre
conflitos existenciais, sempre tratadas de forma subjetiva. Na história, temos
referência ao filosofo e contador de história chinês taoísta Zhuangzi.
É seguro dizer que todo o conceito da história veio daí. Nijigahara
Holograph é uma série referente à filosofia taoísta, que tem como principais
aspectos; A busca pela sabedoria, a vida regida por dois elementos dualistas,
que são o yin (feminino) e o yang (masculino). Estas duas forças se
complementam e não pode existir uma sem a outra. E tal qual vemos em
Nijigahara, os desejos ocultos e as boas intenções habitam o interior humano,
em uma luta contínua onde em algum momento um ou outro, se sobressaem (e tirando o personagem A*, todos os outros
são bem homogêneos).
Temos ainda o aspecto do ser humano buscando sempre o
equilíbrio do corpo e deste com a natureza. Podemos ver isso no nosso
personagem principal, Suzuki, através de todos os capítulos, onde ele não
consegue se adequar àquele mundo, até o fantástico capítulo final, com ele é
colocado “frente a frente” com o seu eu interior (para quem leu, eu estou falando da imagem baixo). Em suma, tudo o
que vemos nos capítulos anteriores e que se manifesta em forma de catarse no
último, tem muito do mantra taoista, onde o protagonista consegue alcançar o equilíbrio,
aceitando o mundo como ele é, e percebendo que nele há forças que são
contraditórias e complementares (yin e
yang). Segue imagem abaixo.
Toda a sequência é fantástica, e como vemos em diversos capítulos, a mistura entre sonho e realidade, representando o que personagem está vendo, e o que ele está sentindo por dentro, é simplesmente incrível. As borboletas são os laços invisíveis que unem todos aqueles personagens, o “monstro” da história nada mais é que um desenho sobre a natureza humana.
Nijigahara Holograph
pode ser traduzido como Holograma no Campo do Arco-íris. E o que isso quer
dizer?
Holografia é uma técnica de registro de padrões de
interferência de luz que podem gerar ou apresentar uma imagem em três
dimensões.
O enigma proposto por Asano passa por passado, presente e
futuro. Se você prestar atenção na história, verá que temos ali, não apenas uma
trama linear com diversos núcleos que estão sempre se cruzando e interferindo
um na vida do outro, ainda que não seja intencional, mas também três dimensões
diferentes (para melhor entendimento,
olhar a parte de spoilers no final do texto). E são três dimensões
habitando o mesmo universo e se interligando num circulo paradoxal temporal. Na
imagem abaixo você tem o encontro de três gerações de uma mesma pessoa:
A sequência mais complexa é sem dúvidas a de Maki, que vê o
seu eu do futuro como se fosse um reflexo no vidro (confira a imagem). O Campo do Arco-íris (Nijigahara), é o local que concentra todos os mistérios da trama,
e também aquele que desencadeia os principais eventos que farão estes
personagens sentir como se estivessem estagnados no tempo, com aquela estranha
sensação de Déjà vu. E claro, o clarão, que sempre aparece nos momentos mais
decisivos e catárticos da história, como que cortando o tempo e levando estes personagens
a uma nova realidade. O reencontro de Suzuki com suas memorias de infância,
Komatsuzaki que enfim parece ter sido “absolvido” – Alguns dos momentos mais emblemáticos
da história, e também aqueles que mais causam confusão, misturando passado,
presente e futuro de uma forma quase incompreensível à primeira vista.
Dito isso, você logo saberá se essa é uma série feita para
você, ou não. Digo isso porque o fascinante de Nijigahara é justamente o
complexo, a subjetividade, a poesia mundana talhada por Asano de uma forma caótica.
Como drama, é fraco, porque não há desenvolvimento daqueles conflitos. Fica nítida
impressão de que aqueles conflitos estão lá por mera imposição do roteiro, com
exceção de Suzuki e Maki, os personagens são muito subdesenvolvidos (mesmo porque não há espaço para
trabalha-los em apenas 1 volume). Por exemplo, o personagem A* (que vou manter em sigilo para não soltar
spoilers), um maníaco que se apaixona por Arie quando ela ainda era uma
criança e a estupra. Não há motivo aparente para seu distúrbio. Apenas vemos
que ele é um psicopata desequilibrado. Os personagens de Nijigahara são assim,
meras construções em prol do enredo, o que acaba tirando um pouquinho do brilho
da obra, uma vez que é obvio não se tratar apenas de thriller, como é o caso de
Perfect Blue, mas um flerte com o psicológico
humano. Felizmente, não prejudica a narrativa como um todo, afinal, os
conflitos são palpáveis e altamente inidentificáveis (eu sei lá o que se passa em sua mente, caro leitor. E isso só diz
respeito a você).
O estilo gráfico de Asano casou muito bem com esse título, que
se trata de uma mistura, onde é difícil distinguir entre o sonho e a realidade.
O traçado redondo e agradável não atenuou nem um pouco a obscuridade da trama.
Mais uma vez, Asano nos apresenta uma arte fabulosa, sempre próximo da
realidade, sem contar o seu senso fashion para o look dos personagens [que é
onde muitos autores de slice of life acabam falhando]. As cenas de estupro e
incesto são representadas como devem ser; de forma asquerosa, e graficamente, não
mostrando mais do que deve para a compreensão do leitor. As linhas do traçado
de seus personagens são finas, expressões lindamente detalhadas e com um
enquadramento dinâmico, limpo e de simples compreensão. Há os já característicos quadros brancos sem cenário algum, evidenciando apenas o personagem ou objeto ao fundo. Os quadros negros que são bem climáticos e dão um certo impacto à narrativa. Em Nijigahara chega a ter 2 quadros sequenciais completamente negros, sem nada, outros apenas com frases ou fechos de luz. Destaque para os fundos
e a forma como ele usa os filtros computadorizados, que se misturam harmoniosamente
ao traçado, tudo tão minucioso que às vezes dá a impressão de estar assistindo
a um filme dirigido por Stanley Kubrick. As borboletas são um show a parte! Na
imagem abaixo, é como se desse para escutar uma sútil trilha sonora ao fundo.
Nijigahara Holograph
carrega consigo, aquilo que também percebemos facilmente em outras obras de
Asano, que é a questão existencial; a incapacidade de amadurecer, se tornar
adulto. As pessoas envelhecem, mas nunca amadurecem. Assombrados por
traumas/sequelas do passado. Asano começou sua carreira em 2003, com Subarashii Sekai, um retrato de
diferentes pessoas, afetadas pela dúvida, o que são e o que eles fizeram, o que
eles vão ou querem se tornar. Ele continuou desenvolvendo esses temas em Nijigahara Holograph, do mesmo ano, mas
aqui nos tempos quase uma mistura entre seu primeiro trabalho e aquele que o
tornaria conhecido no mainstrem; Solanin (publicado no Brasil) de 2005,
com construções narrativas ornamentadas, misturando memorias do passado, com
fatos presentes numa montagem sempre cinematográfica. Em suas obras, a figura
de Deus é sempre retratada com sarcasmo (o
que chegariam num nível extremo em Oyasumi PunPun, de 2007 – Sem dúvidas, sua
obra prima).
E é esse questionamento que aproxima tanto Asano de leitores
jovens, pois ele fala sua língua. Os dilemas típicos da juventude, como
depressão, responsabilidades, inadequação. Em especial, a japonesa, que se
sentem abandonados pela sociedade – Um tema habitual no Japão, mas que vem se
tornando algo comum na juventude mundial. Enfim, o impacto emocional que Asano
consegue transmitir no espaço de duas páginas é impressionante, e exemplifica o
que essa mídia é capaz de expressar em mãos hábeis. Nijigahara Holograph se distância um pouquinho de suas outras obras
por flertar mais com a fantasia, mas é incrível como ele faz isso, sem sair das
bordas da realidade.
Nota: 10/10
Autor: Inio Asano
Volumes: 01
Ano: 2003
Revista: Quick Japan
Editora: Ohta Shuppan
Demográfico: Seinen
Onde encontrar:
Similar: Monster,
Perfect Blue, Kokuhaku: Confessions, 20th Century Boys
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Bônus (Oh, sim! Pra leitores *vip*)
Pra fechar, eu sou uma colecionadora de frases! Anoto tudo que eu acho bonito ou interessante em tudo que leio e assisto. Os diálogos deste mangá são ótimos, e temos algumas pensamentos e linhas narrativas que são *lindas* (momento mulherzinha), então dessa vez cederei as que me interessaram, só clicar aqui.
E na época que eu terminei de ler Nijigahara, vi e li esse tópico contento a ordem cronológica dos fatos ocorridos no mangá, me ajudou bastante a compreender a ordem dos acontecimentos. Então, traduzi, e acrescentei algumas coisas. Essa é daquelas histórias em que você você só consegue achar mais bonita ainda depois de revistas. Ainda há bastante coisa a ser interpretada, mas é ai que está à graça. Obviamente contém spoilers.
E na época que eu terminei de ler Nijigahara, vi e li esse tópico contento a ordem cronológica dos fatos ocorridos no mangá, me ajudou bastante a compreender a ordem dos acontecimentos. Então, traduzi, e acrescentei algumas coisas. Essa é daquelas histórias em que você você só consegue achar mais bonita ainda depois de revistas. Ainda há bastante coisa a ser interpretada, mas é ai que está à graça. Obviamente contém spoilers.