Ele está de volta e continua divertidíssimo de se ler, com
diálogos brilhantes que darão voltas em sua mente.
Resumo: Dr. Kenzo Tenma é um neurocirurgião japonês que vai
tentar a sorte na Alemanha, almejando um futuro brilhante. Lá, ele com o
auxilio do doutor Heinemann, chefe do bloco de neurocirurgia, se torna o
queridinho do hospital, ocupando um cargo importante e ainda comendo a sua filha,
a caprichosa Eva Heinemann. Claro, Tenma é um neurocirurgião brilhante, um
verdadeiro prodígio, realizando cirurgias que ninguém mais seria capaz. Lógico,
o Doutor Heinemann esperto como é, se aproveita disso para fazer crescer seu
nome e assim poder assumir o hospital. Tenma não passa de uma marionete
estupida, um bobo do “interior” facilmente manipulável nas mãos de pai e filha.
Tenma é obrigado desenvolver teses a pedido do diretor, que
assina como se fosse ele o autor original. Mas parece estar tudo bem, afinal,
logo logo, Tenma, que até pouco tempo atrás, era um coitado e sem
credibilidade, irá se casar com a filha do chefe, e talvez um dia assuma o
hospital, podendo levar a frente várias pesquisas que sempre sonhou. Só que o
Tenma tem dignidade e vai se cansando disso e para de apoiar o seu chefe e seus
interesses escusos em prol do crescimento do hospital e seu nome na chapa de
direita, como diretor geral.
Tenma sente-se traindo a profissão que escolheu, quando um
dos pacientes que ele deveria atender, um pobre coitado de origem turca, acaba
falecendo por falta de um melhor atendimento, enquanto ele teve que obedecer às
ordens do diretor e operar um famoso cantor de opera que traria notoriedade ao hospital.
O detalhe é que o turco havia chegado primeiro. E mesmo que a cirurgia do
cantor tenha sido um sucesso e atraído à atenção da mídia para o hospital,
Tenma se defronta com a triste realidade, onde quem tem dinheiro sempre leva
vantagem. Torturado pelos gritos de acusação da esposa do falecido, Tenma se vê
numa encruzilhada onde precisa decidir entre seu futuro brilhante e seguir seu
instinto. A gota d’água se dá quando ele está prestes a entrar na sala de
cirurgia pra atender uma criança que havia sido baleado na cabeça, mas é
obrigado a ir atender o prefeito, que acabara de se acidentar.
Ele sabe que é o único que poderia realizar a cirurgia
perfeitamente e ao se deparar com o grito de sua consciência, resolve abandonar
tudo e atender à criança. Como consequência, o prefeito morre e a partir desse
momento, Tenma passa a comer o pão que o diabo amassou nas mãos de seu chefe,
além de ser chutado pela Eva, que não perde tempo em arrumar um novo
pretendente. A vida de Tenma se transforma em um inferno, mas enfim consegue
dormir com a consciência tranquila. A foda é que logo acontece uma onda de
assassinatos, envolvendo ele, o garoto que ele havia salvado e sua irmã gêmea,
que então havia testemunhado o assassinato de sua família inteira. Tenma mais
uma vez está na merda, num verdadeira e crescente espiral do horror.
Intrigas politicas, mistérios, suspense policial, altas
doses de tensão psicológica, assassinatos, mindfuck atrás de mindfuck numa
magistral trama orquestrada pela mente geniosa de Naoki Urasawa, que desenvolve
uma história fragmentada, complexa, perturbadora, envolvente com o belíssimo cenário
alemão como plano de fundo. Imperdível!!!
***
Seguramente, Naoki Urasawa é um dos três melhores mangakás ainda
vivo em plena atividade no Japão e sem dúvidas, um dos melhores quadrinistas do
mundo. Nascido na década de 60, ele ainda é da geração antiga, dos velhos
valores e seu discurso é inflamado, mas sabe dialogar com o público e se manter
incrivelmente atual, ao mesmo tempo em que mantêm suas histórias com um amálgama
referencial do Japão antigo e forte influencias internacionais. Urasawa é multifacetado
e bastante prolífico. Começou a publicar ainda na década de 80 e já chamava a
atenção, com suas series sendo sucesso de publico e recebendo adaptações. Suas
séries pré anos 90 se caracterizam principalmente pela pegada slice of life,
com um quê de drama, mas isso mudou com Master
Keaton no final dos 80, e na sua consagração nos anos 90 e 2000 com os
hiper sucessos; Monster, 20th Century Boys e Pluto, que o tornaria mais conhecido no
ocidente como um autor de thrillers policiais e pseudo-ficção cientifica.
Claro que Urasawa é bem diversificado e possui uma vasta
mangagrafia. Eu não saberia comentar acerca de suas outras histórias, mas Monster, 20th Century Boys e Pluto apresentam
um incrível estudo sobre a psique humana, trazendo não apenas questionamentos,
mas também conflitos morais. Pelo pouco que tive contato com as obras de Osamu Tezuka, é perceptível a
admiração que Urasawa sente [e não faz rodeio em citar isso em suas entrevistas]
por ele, trazendo isso para essas histórias. De referências pelo fascínio da
delicada natureza humana, a homenagens diretas, como visto no premiado Pluto, uma adaptação/crossover de “O
robô mais poderoso do mundo”, o arco mais prestigiado de Astro Boy (1964/1965).
Penso no personagem Tenma, de Monster, como uma gritante
referência á Tezuka – Vamos lá, ele é um gênio cirúrgico, capaz de executar com
perfeição às mais criticas cirurgias e fazer o que mais ninguém seria capaz.
Coloca seus pacientes acima da própria carreira, se diferenciando da sociedade
materialista – Indo de encontro a tudo o que o brilhante Black Jack representa.
Sim, um ideal humano. Monster tem muito daquele quê presente nas obras de
Tezuka, como humanismo, pacifismo, questões étnicas, e a corrupção da “maquina”
através do veículo para o progresso. As justificativas do doutor Heinemann na
tentativa de corromper Tenma, eram justamente a fé no progresso da medicina,
por meios ilícitos e buscando apenas bens monetários. Tudo isso quase sempre de
forma sútil, afinal, “as pessoas não
nascem iguais”, como disse Eva. E bem, a efeito de curiosidade, o próprio
Tenma leva o nome do misterioso cientista que inventou o Astro Boy.
Referências históricas e artísticas se fazem presente de Monster à Pluto, assim como questões culturais não apenas do Japão, mas
também de outros países. Sua infância no conturbado Japão pós-Guerra, um Japão
de manifestações, de forte influência americana e constantes transformações
internas, desempenha um papel fundamental em sua formação, tanto como artista,
quanto cidadão. Assistindo ao inflamado discurso politico e a crítica contra o “novo”
Japão presente no recente longa metragem Fromup on Poppy Hill [Kokuriko-zaka Kara]
– do estúdio Ghibli e roteirizado por Hayao Miyazaki – e relembrando as
estrevistas de Urasawa, não deu pra deixar de reparar na mesma linha de raciocino,
já que ambos notoriamente demonstram a mesma falta de certeza [e certo asco,
rs] quanto aos rumos que a atual geração vem seguindo.
Algumas imagens retiradas daqui
Acompanhar Monster mensalmente [na verdade, a cada 2 meses,
já que o lançamento é bimestral] pode ser uma experiência um tanto quanto
masoquista. Urasawa tem essa capacidade de criar suspense através da atmosfera,
onde você acaba não se satisfazendo apenas com um volume, quer também devorar
todos os outros. É um suspense dramático, com diálogos pontuais, um thriller psicológico
inteligente, sofisticado e complexo. Monster é uma leitura adulta, e quando eu
falo adulta, quero dizer madura, com um aspecto narrativo que talvez não seja
atrativo para quem ainda não possui certa maturidade intelectual [se fosse uns
3 anos atrás, com meus 15 anos, eu teria achado Monster bem chatinho, possivelmente]. Não há muita exposição
gráfica quanto a sexo, violência e sangue – Há esses elementos, mas inseridos
de uma forma sútil, e não extravagante. E claro, muitos, muitos diálogos.
Monster é para amantes de excelentes histórias policialescas
e investigativas, mas ainda consegue transcender o próprio gênero ao ir fundo no
aspecto mais fascinante do ser humano. Afinal, cada um de nós possui um monstro
adormecido morando em seu interior. E fica a pergunta; Como impedir o monstro
que você mesmo criou? E isso é o que torna o enredo de Monster algo palpável e crível, apesar da estrutura arquétipa. Este
post é apenas um preview, não dá pra fazer uma analise mais profunda sem
revelar detalhes importantes do enredo, e seria um crime fazer isso, mas posso
dizer que embora muitos dos personagens secundários sejam meras construções em
prol das tramas, os principais nos revelam pontos de vistas fascinantes, são
personagens realmente bem revestidos e credíveis.
E é este aspecto que faz a história crescer mesmo depois que
os mistérios são revelados, tornando todo o desenlaço algo emocionante e
nervoso! O nível de detalhismo é realmente espantoso; detalhes no enquadramento,
gestos, desenvolvimento – Sempre nos leva a algo maior e significativo. O
enredo de Monster é realmente
rebuscado e repleto de camadas que valem apena ser observadas e refletidas. Não
apenas Monster, mas 20th Century Boys e também Pluto, trazem uma montagem que remete
ao cinema do minucioso e mestre do suspense psicológico Hitchcock e ao perfeccionismo
e a habilidade de transmitir a pluralidade do ser humano de Kurosawa.
Gosto da forma como Urasawa brinca com a instabilidade
mental dos personagens em Monster,
mas também chama a atenção os belos cenários da Europa, como Praga e Heidelberg,
numa atmosfera misteriosa e obscura. Os serviços secretos da ex-RDA e
Checoslováquia, também movimentos nostálgicos do Terceiro Reich e outras figurinhas da história moderna – Monster é um bom exercício para quem
curte passagens históricas. A forma como Urasawa desenha esses cenários, dá uma
dimensão quase gótica para a atmosfera já obscura de Monster, com bairros em becos escuros, casas antigas com escadas
rangentes e portas misteriosamente fechadas, montanhas, castelos, vilas e
aldeias são representados de uma forma que evoca a ansiedade, os pesadelos,
numa metalinguagem muito bacana. Urasawa tem essa característica pulsante, de
não se deixar delimitar e ambientar suas histórias em várias regiões do mundo,
misturando personagens japoneses, com estrangeiros. Uma perspectiva do mundo
ocidental com relação ao Japão, em tramas muito bem amarradas com a cultura
japonesa, com outras culturas.
Aliás, Urasawa não se utilizada dos recursos mais básicos do
mangá, como por exemplo, hemorragia nasal [uma metáfora para excitação]. Sua
arte tem muito do conceito estabelecido pelos artistas do movimento Gekigá, com
um tom narrativo mais sério, politizado, adulto, e sem o exagero do mangá como o
conhecemos, com personagens de olhos e bocas grandes, numa traço mais
estilizado. Dentro dessas generalizações necessárias que tornam uma só pessoa responsável
por uma grande transformação em qualquer área, Tezuka é tido como o inventor do
mangá morderno (caracterizado por um
traçado mais caricato), e Tatsumi Yoshihiro é apontado como o responsável pelo
nascimento do mangá adulto, realista, “alternativo” [mesmo seu traçado simples
e abonecado, dialogam de uma forma incrível com a estrutura de suas histórias].
Traduzido como “imagens dramáticas”, Gekigá é um termo atualmente em desuso no
Japão, quando nos anos 80 as antologias demográficas cresceram tanto que se
desvaneceu o movimento e enfraqueceu o conceito, que foi diluído pelo demográfico
seinen. Mas antes do movimento morrer [embora o conceito ainda viva], em seus
tempo áureos, mesmo Tezuka se viu influenciado por Tatsumi, criando entre outras,
sua série mais ambiciosa; Hi no Tori (Phoenix
), que por um acaso eu acredito ser a obra dele, preferida de Urasawa.
Tatsumi está para o Gekigá, como Will Eisner está para as
Graphic Novels americanas. Conceito que cosmopolitas como Moore e Morrison e,
até certo ponto, o próprio Miller, buscaram trazer para o universo dos heróis; a
plausibilidade, de possibilidades físicas sem fantasia, uma narrativa mais
coesa. E muito dessa transformação também se encontra no contado de Miller com
os Gekigá de samurais de Sanpei Shirato e Kazuo Koike. Em Monster, nós temos todo este conceito que vai de encontro a
escapismos típicos de mangás destinados ao público infantil e juvenil. Por isso
é um mangá que transcende o próprio demográfico seinen. O fato de mangás como Monster, Sanctuary e Vagabond não
terem a representividade de sentimentos do mangá moderno, não os delimita, uma
vez que seus autores conseguem construir estruturas de grande impacto dramático
através dos seus ângulos, no uso potente das linhas de ação, de enquadramentos
silenciosos, fortes expressões faciais e gestuais, onomatopeias decorativas que
muitas vezes são as responsáveis pelo feeling de tensão, da representação
histriónica dos rostos e corpos das personagens e a forma como se movimentam em
simultâneo, cenas de sexo que representam uma mistura de sedução e exercício de
poder que tornam todas aquelas imagens algo insinuante provocante, bonito de se admirar.
Monster foi
originalmente serializado na revista Big Comic Original da Shogakukan, de 1994
a 2001. É uma série já clássica [tanto o mangá, quanto a ótima e fidelíssima adaptação
em anime pelo estúdio Madhouse] e uma das mais conhecidas do Urasawa. Apesar de
que eu tenho a forte impressão de que 20th
Century Boys é muito mais ovacionada pelo público devido ao seu apelo pop e
uma trama igualmente brilhante, mas juvenil e com um apelo maior do que Monster, que tem o aval da crítica como
sua obra máxima, mas talvez, não do publico geral. Monster foi premiado com o MediaArts Festival Award for Excellence em 1997 e o Prêmio Osamu Tezuka em 1999
e possui 18 volumes.
Me pediram para indicar um mangá 10/10, e aqui está, pois Monster é uma obra prima de Naoki
Urasawa. Desviei bastante do assunto, uma vez que com um enredo tão vasto, com
diversas teorias e estudos interessantes *juntamente com alguns críticas* – Que
lhe rendeu inclusive um spin off chamado “Another Monster” com detalhes de “bastidores”,
uma espécie de guia com diversos detalhes da obra original – estragar a
surpresa, seria pecado. A qualidade física do mangá está ótima, talvez inferior
ao lançado anteriormente pela Conrand, antes de ser cancelado, mas certamente
está dentro do bom padrão nacional adotado pela Panini e atualmente pela Jbc. A
tradução de Dirce Miyamura, adaptação de Elza Keiko e a edição de Débora
Kamogawa está ótimo, ou seja, não se fazem notar no momento da leitura. Em Monster, os honoríficos, obviamente,
são inexistentes [pelo que eu me lembro]. Mas há um sumário enorme, que é muito
bem vindo, com um ótimo trabalho de pesquisa pela equipe da Panini que funciona
como um plus, caso você não entenda alguma palavra ou contexto histórico.
Claro que a edição definitiva seria o ideal para um
relançamento, mas para um mercado de mangás como o Brasil, que está
engatinhando, um título com pouco apelo popular é uma edição mais do que
satisfatória e bem vinda. Sem contar que Monster
certamente não trará grandes retornos para a Panini [espero que ao menos
consiga se pagar e render um troquinho pra jujuba]. Então fica os parabéns pela
Panini continuar investindo em títulos adultos e undergrounds, algo que com a
saída da Conrad do mercado de mangás, acabou deixando um vácuo enorme nas prateleiras
e um mercado carente de títulos mais alternativos. A Conrad geralmente [embora
alguns deslizes feios] trazia series em boa qualidade e traduções coesas, num
design simples, outras vezes caprichado e uma seleção até certo ponto,
criteriosa e equilibrada, indo de títulos pops a outros bem obscuros. Bom, a
Panini demonstra muita boa vontade, investindo na diversidade – Espero que
continue com este proposito e um dia Sanctuary
e Blade - A Lâmina do Imortalpossam retornar para cá, afinal, um mercado sadio se faz pela diversidade.
Com um suspense terrível, reviravoltas, surpresas e uma
tensão que te faz devorar o mangá em uma única posição, Monster é uma excelente opção para quem busca um thriller complexo
e bem conduzido.
Nota: 10/10
Autor: Naoki Urasawa
Volumes: 18
Ano: 1994/2001
Demográfico: Seinen
Revista: Big Comic Original
Editora original: Shogakukan
Editora nacional: Panini Comics