quinta-feira, 15 de novembro de 2012

[+18] Chico & Rita – Revolução, Jazz e Paixão


Mais uma história trágica de amor, em meio a eventos históricos.

Sinopse: Chico é um jovem e promissor pianista que passa as noites levando garotas americanas para os lugares mais badalados de Havana com seu amigo Ramón. Quando ele vê Rita dançando, ele logo faz de tudo para se aproximar dela, que por sua vez se mostra interessada, mas faz questão de dispensá-lo por um partido melhor. Ramon convence Rita a entrar numa competição musical com Chico e os dois logo se envolvem num ardente romance e iniciam uma parceria profissional.

O produtor americano, Ron, oferece a Rita um contrato e uma viagem para Nova York, ela e Chico se desentendem e ela aceita a oferta. Chico vende seu piano e a segue juntamente com o seu parceiro e amigo Ramón. Lá, ele vê uma Rita diferente, agora ela é Rita LaBelle, e é incrivelmente famosa. Porém Ron é possessivo, com a ajuda da Revolução Cubana, ele obtém sucesso em manter os amantes afastados.


Comentários: Chico & Rita (2012) é uma daquelas agradáveis surpresas que de vez em quando aparecem em nossas vidas. Por um acaso, meu pai apareceu com um DVD pirata de um desenho animado, com uma mulata de vestido rodado amarelo na capa, desenhos estilizados num estilo visual inconfundivelmente latino (o ponto negativo e a vergonha que passamos na hora que começou as cenas picantes. Ele não sabia).

Trata-se da maior surpresa do Óscar de 2012, mas confesso que não dei a menor bola na época, nem sequer dei a devida importância à sua presença na lista. Inclusive chegou a bater o todo poderoso Spielberg com o seu aguardado “As Aventuras de Tintim(2011). Merecidamente, diga-se de passagem. Foi a primeira vez que uma animação espanhola foi indicada ao Óscar de melhor animação, e se trata de uma produção indie, fruto do esforço dos diretores Fernando Trueba e Javier Mariscal.

E é uma história cativante, basicamente uma tragédia operística romântica de uma conturbada e ardente paixão, que parece ser um clichê comum na vida de grandes artistas talentosos. Muitos inclusive, apesar de todo esse talento, estão condenados ao ostracismo – Por causa de uma postura rebelde, vícios ou simplesmente por terem sido consumidos por essa paixão avassaladora. Curiosamente, é do fruto dessa rebeldia musical e dessas paixões doentias, que surgiram muitos clássicos da musica. E é dessa forma que surge “Rita”, composta na história por Chico, que acabara de acordar de uma tórrida noite de amor com uma morena escultural chamada Rita.


Enquanto ela dorme nua na cama, ele se levanta e começa a dedilhar o piano, enquanto fragmentos da música começam a se formar em sua mente. Mas é apenas quando Rita se levanta e o abraça por trás, e se senta ao seu lado no piano dando voz e vida à criação de Chico, é que nasce definitivamente um grande clássico do jazz. É aqui também que tem início á intensa montanha russa do relacionamento entre Chico e Rita, que andará em círculos durante toda a história. Afinal, a nostalgia é um sedutor companheiro de cama.

Chico é um mulherengo irreparável, além de alcoólatra. Rita também não é uma flor virtuosa (a história deixa subtendido que ela era garota de programa, embora mantasse isso em segredo), pelo contrário, ela não tem pudor algum em se estapear completamente nua no chão com a atual mulher de Chico e dizer-lhe claramente que não abriria mão dele. A cena é impagável, e revela toda a força da personagem Rita, como mulher: Embora não tenha pudor em dar em cima de grandes partidos ou homens compromissados, nem mesmo de trair descaradamente, ela tem sangue quente e coloca o seu orgulho acima de qualquer coisa. Até mesmo de sua carreira. Com a atitude apática de Chico diante toda a situação, dividido entre uma e outra, ela simplesmente lhe dá uma tapa na cara, e sai lhe enchendo de insultos.




Essa é uma história de amor repleta de idas e vindas que abrange décadas – Entre 1948 e 1950 ao início dos anos 2000 – e continentes – Havana, Nova York, Las Vegas, Hollywood e Paris – que conta em versão destilada, uma faceta da história do Jazz do século 20. Com as cascatas de raios de sol através da janela, com ondulação translucida em um quarto humilde, onde Chico, agora com cerca de 90 anos, escuta a canção que compôs para Rita. Remexendo em antigos recortes de jornais da época, e segurando com as mãos tremulas uma fotografia, ele relembra com nostalgia aquele cenário musical efervescendo entre os anos 40 e 50, as loucuras com o seu companheiro Ramón e sua triste história de amor com Rita.

Sim, é um longa metragem com montagem entre passado e futuro, com grande parte da história sendo contada por flashbacks.


Alguns críticos tratam essa trama de amor entre Chico e Rita com certo desprezo, por não ser muito original e pelo seu alto teor folhetinesco, ressaltando a música dentro do contexto da obra como o elemento principal. É uma interpretação equivocada, porque a música e o amor se misturam harmoniosamente, como um compositor talentoso e uma interprete com uma voz exuberante.

Uma década antes da Revolução liderada por Fidel Castro, a Havana de 1948 era uma cidade viva, com intensa vida noturna – Com seus clubes de luxo, cassinos e hotéis que criaram uma meca do entretenimento caribenho, a grande maioria administrada por corporações americanas – que se deliciada com a ponte musical através do Jazz latino entre Cuba e Estados Unidos.

O desenho dos personagens é estilizado, com uma fluidez de movimentos que é valorizado com uma animação desenhada à mão. Apesar dos traços simples e do cenário minimalista, tudo é muito rico artisticamente, e técnico. O interessante é a fusão com a tecnologia computadorizada, que utiliza das técnicas de rotoscópia (utilizada em Sakamicho no Apollon), com movimentos de atores reais sendo capturados que dão verossimilhança incrível aos movimentos e expressões dos personagens. Isso se destaca em cenas como a de Ramón e Chico (imagem abaixo), que parece mais uma reinterpretação de clássicos do Chaplin, na forma como os personagens se comportam em cena.




E aqui a música se sente tão vital quanto o visual. Quando Chico se senta no piano e Rita interpreta algum grande clássico do Jazz, você sente toda aquela vibração das notas musicais de forma contagiante através de seu timbre de voz poderoso. Logo após a primeira reunião dessa dupla talentosa, Chico leva Rita a um bar, já fechado e senta-se ao piano para tocar para ela, tentando a convencê-la a ser sua parceira musical. Ela gosta do som que sai através dos dedilhados de Chico, e começa a dançar, com seu vestido amarelo fazendo redemoinhos em suas pernas, alimentados por seus quadris frenéticos e giratórios. É uma sequência extremamente envolvente, com uma sensibilidade que consegue ultrapassar o unidimensional e se fazer sentir todo aquele frisson sexual que pairava no ar. É repleto de erotismo, que só foi possível pela finesse dos movimentos e a sedução do Jazz.  

Desde o início, os diretores – Fernando Trueba e Javier Mariscal – tiveram em mente a ideia de um cenário musical que destacasse o melhor de Hanava dos ano 40 e da cena clássica hollywoodiana dos anos 50. O cenário pode ser minimalista, mas ele pulsa e torna evidente através de imagens todo o contexto daquele período. A cena Bibop que teve seu início em meados da década de 1940, que viria a se tornar sinônimo do Jazz moderno, os artistas negros que eram valorizados por sua música, e ao mesmo tempo repudiados pelos brancos – Onde muitas vezes não podiam frequentar os mesmos ambientes. O cenário é eficaz em evocar de forma visualmente conflitante com toda aquela Havana pulsante, a decadência carnavalesca de uma Cuba pré-Revolução, já visível através de movimentos e protestos políticos. A vida de luxuria daqueles que procuravam viver de música, sempre atrás de oportunidades de sucesso e sexo. Você nota isso claramente pela forma de vida de Chico e Ramón, e mesmo Rita. Há muitos estrangeiros, mulheres brancas passando de uma mão a outra de homens negros, e o inverso acontecendo, onde os gringos estavam mais interessados na sensualidade das latinas. Não há porque se sentir ofendida minha amiga, neste aspecto, o filme se limita em representar o cenário musical daquela época e o faz com extrema verossimilhança.


“É na música que este momento se torna fantástico; é o momento em que os músicos cubanos estão indo para Nova York e se juntando aos músicos de jazz anglo-saxões. Esta fusão mudou a música naquela época.” – Diz Fernando, enquanto Mariscal retruca: “Eu disse que isso poderia ser muito bom, a história dos músicos. Ele [Trueba], respondeu; Não, isso é o fundo, o contexto. Temos de nos concentrar no script de uma história de amor. Um clássico: uma menina e um menino. Ela é uma cantora, ele é um pianista. Como um bolero [balada Latina]. Boleros para os latinos são canções de histórias terríveis de amor, ‘eu não posso te beijar de novo, porque beijar seus lábios significa beijar outros lábios'. É Sempre assim”. E Trueba complementa: “Para mim Chico & Rita é uma canção, uma canção romântica, um bolero. É a história de dois jovens em Cuba no final dos anos 40, e como a vida os une, e os separa como em uma canção. É um filme cheio de música, amor, sensualidade e cor”. E quem poderá ir contra este discurso?

Chico & Rita mostra o cenário musical de uma forma menos glamorosa que o filme “O Artista”, com relação ao cinema. É a vida marginal de artistas negros fazendo jazz negro, indo do momento máximo desse movimento, até o seu declínio, com uma narrativa agridoce, nostalgicamente melancólica, mas de uma forma refrescante. É em Las Vegas que Chico & Rita atinge o seu apogeu, justamente quando Rita chega em seu momento artístico mais desesperador. Ela se entrega ao alcoolismo depois de mais uma separação de Chico, com sua vida conturbada se tornando um escândalo após o outro, virando alvo fácil da mídia. Rica e famosa, ela se sente cansada de tudo aquilo, e num momento de desespero confronta toda a sociedade, expondo a hipocrisia americana, em todo o seu racismo. Obviamente, ela está acabada depois disso.





Rita: "Feliz ano novo! É o que lhes desejo do fundo do meu coração, um maravilhoso ano. E desejo também para mim. É com honra que vos digo... Mas é algo que nunca entendi. A vida dos artistas negros é verdadeiramente assombrosa. Aqui estou, neste grandioso clube, neste hotel maravilhoso, mas não posso ficar aqui hospedada. Tenho que dormir num motel fora da cidade. Mas ao mesmo tempo, as pessoas dizem-me o tempo todo que sou uma estrela. O que pensam? Que tipo de estrela posso ser?"

É um dos melhores momentos do filme – Que mesmo com toda a cor, swing e efervescência de Chico & Rita, não consegue se desvencilhar de um ou outro momento de pouquíssima inspiração, onde o roteiro acaba ficando meio maçante, se segurando apenas nos belíssimos ensaios musicais –, o melhor momento de Rita, o clímax de um casal fadado à autodestruição. É nesses momentos que Chico & Rita consegue transcender a animação e se tornar quase que tangível, com diálogos incrivelmente pontuais.

***

Inspirações


É um dos grandes atrativos em Chico & Rita, e se você for amante do Jazz, irá se deleitar, pois o longa animado é quase que uma biografia de grandes nomes do Jazz, com reinterpretações de grandes figuras da área, assim como participações de nomes importantes para a evolução do Jazz, como Dizzy Gillespie e Chano Pozo, que viria a morrer de uma forma violenta – Com direito a uma reencenação desse momento emblemático com todo o glamour que um grande astro merece.

Chico & Rita chega a homenagear grandes clássicos do cinema, como “Casablanca (1942) e "O Poderoso Chefão(1972), assim como o cinema de Woody Allen.  Mas o que mais me chamou a atenção mesmo foram os néons piscantes, a arquitetura, os clássicos automóveis americanos da década de 50 e a estrutura de musical.

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Nota: 08/10
Clássificação: Adulto
Direção: Fernando Trueba/ Javier Mariscal
Codireção: Tono Errando
Ano: 2010
Origem: Espanha
Estúdio: Fernando Trueba PC/ Estudio Mariscal/ Magic Light Pictures
Duração: 94 min.

Referências
Chico & Rita Interview 
-Wikipédia


-Chico? Cancelaram o espetáculo de hoje!
-O quê?
-Eles já não gostam deste tipo de música. Jazz é considerado imperialista. É a música do inimigo! Se quiser continuar a trabalhar deve participar da revolução.
 


Chico: Eu te vi nas revistas. Está indo para Hollywood, certo? Não está cansada de ser a "Miss Charme"?

Rita: Não está feliz por eu ter sentado ao teu lado, em comer feijão?

Chico: Estou tão feliz que até tenho medo.

Rita: Medo do quê?

Chico: O mesmo que você.

Rita: E de que devo ter medo?

Chico: De ouvir por uma vez o teu coração. De sair da tua prisão e não encontrar o caminho de volta.

Rita: Realmente acredita nisso?