domingo, 11 de novembro de 2012

Magic Knight Rayearth: Subvertendo Conceitos


“Nós somos as Guerreiras Mágicas! Mágicas! No despertar do sonho a gente vai se encontrar. Oh! Oh! Oooooh”

Sinopse: Três garotas, estudantes do colegial, encontram-se por acaso na Torre de Tokyo, durante um passeio escolar. São elas Shidou Hikaru, Ryuuzaki Umi e Hououji Fuu. Subitamente as três escutam uma voz clamando por elas e, em seguida, uma luz muito brilhante as envolve e, antes que elas possam perceber o que esta acontecendo, são transportadas para o mundo de Cephiro, uma terra de magia, onde o poder da vontade é o Pilar Principal de toda a existência. Devido ao aprisionamento da princesa Esmeralda, atual Pilar, pelo Sumo Sacerdote Zagato, Cephiro que era sustentado por suas orações, agora esta caindo em ruínas e monstros estão a se espalhar por toda a parte. As três dão início a essa incrível jornada para conseguirem se tornar em definitivo as Lendárias Guerreiras Mágicas e assim salvar Emeraulde, livrando Cephiro da destruição.

Comentários: Há 15 anos, um grupo que vinha em ascensão com três séries de fantasias [que consequentemente se tornaria a marca registrada do grupo]; RG Veda, Tokyo Babylon, e o mais expressivo destes; X/1999 –  Receberia um convite de um editor da revista Nakayoshi, voltada para meninas entre 9 e 15 anos, para desenvolverem um mangá sobre garotas mágicas. Vale frisar, que mesmo com esses três trabalhos bem criticados, responsáveis por moldar a segunda “cara” do grupo CLAMP depois de se tornarem profissionais – Com uma arte ornamental tipicamente shoujo, mas apresentando uma narrativa influenciada em mangás para garotos, o que contribuiu bastante para sua diversificada fanbase –, elas ainda não gozavam de todo o prestígio atual. O que justifica a surpresa, quando procuradas para serem as responsáveis por dar continuidade ao sucesso alcançado por Sailor Moon na revista Nakayoshi, aquele que influenciou todo o boom do gênero Garotas Mágicas/Mahou Shoujo que viria a estourar nos anos 90.

Yoshio Irie, então editor chefe da revista da Kodansha, viu que no caminho aberto por Sailor Moon, à oportunidade de dar uma nova faceta para a Nakayoshi, abandonando por hora as histórias de amor, e abraçando a fantasia para as pequenas garotas da época, o que resultou em nomes sucessos como Mermaid Melody, Pretty Cure, Shugo Chara, Tokyo Mew Mew, e o próprio Cardcaptor Sakura. Mesmo com a economia estagnada, os anos 90 ainda foram uma boa década para a indústria de animes, com as editoras investindo mais para divulgar suas séries nesses comerciais de 22 a 25 minutos, chamados de “animes” lá no Japão, e “desenhos animados” aqui no ocidente, que de uma forma geral, sempre foi isso; Um subproduto. E não foi diferente com a Nakayoshi, que investia pesado na divulgação de suas séries. Que eram longas, pra valer o merchandising e influenciar os produtos licenciados. E com uma série em mangás tão curtinha, como Magic Knight Rayearth (MKR), várias modificações no enredo precisaram ser feitas, incluindo diversas subtramas, e personagens criados originalmente para a animação, casos de Inouva (conhecida aqui como Nova) e Lady Debonair.

~ Nostálgico, não?~ 

Com 49 episódios e 3 ovas, obviamente há muita enrolação, e uma segunda temporada significativamente fora do contexto original do mangá, que contém apenas 6 volumes divididos em 2 arcos. Embora, há de se destacar que os personagens (incluindo os vilões) acabam tendo um desenvolvimento melhor na animação, devido ao maior tempo de exposição. Claro que se trata de uma adaptação inferior ao original, sem a objetividade do mangá, e com um character designer bem simplificado devido ao orçamento, mas temos aí umas peculiaridades interessantes.  Foi à primeira adaptação de uma história do CLAMP, e a primeira vez que Nanase Ohkawa fica responsável pelo roteiro de uma série animada, o que ela descreveria como “uma experiência difícil”.

As extensas cenas de batalhas presentes em MKR, por exemplo, ficaram muito melhores na versão animada, principalmente as que envolvem os mechas. Veio junto no pacote de Sailor Moon (eis motivo de algumas bombas terem sido exibido aqui) na década de 90, quando animes ainda faziam sucesso aqui no Brasil. Foi rejeito pela Manchete, aceito pelo Sbt porque alguém mexeu os pauzinhos nos bastidores, mas acabou se tornando um fracasso enorme que resultou em produtos licenciados encalhados e muito prejuízo, talvez pelo mau tratamento dispensando pelo canal do Silvio Santos. Ainda assim, foi com MKR, que o CLAMP apareceu por aqui. Foi pela exibição do anime, que a JBC trouxe o mangá, e CLAMP iniciou sua história de sucesso por aqui. E mesmo não tendo sido um sucesso estrondoso, certamente deixou marcado uma forte lembrança no peito daqueles que acompanharam sua exibição original pelo Sbt. 


Apesar das características shounens, a arte fluída e em um nível superior aos trabalhos anteriores, o battle shounen de MKR é confuso, com a ação se perdendo em um emaranhado de acontecimentos e poluição visual em suas páginas – Páginas belíssimas, sem dúvidas, mas com uma cinética que não é favorável para uma boa ação gráfica. Essa característica permaneceu presente mesmo em trabalhos mais atuais como Tsubasa: Reservoir Chronicle, que possui algumas páginas indecifráveis no primeiro olhar. É uma característica interessante, que somado a certa complexidade nos roteiros aparentemente simples da Ohkawa, tornam os trabalhos do grupo algo atrativo para o público adulto, mesmo quando voltado para as crianças.

Desde RG Veda, a arte de Mokona, que é responsável pelo character designer dos personagens do grupo, tem se mostrado cada vez mais técnica, com um alto nível de diversidade de um trabalho para outro. Sua arte fica ainda mais expressiva quando os cenários construídos por Satsuki Igarashi e Tsubaki Nekoi (outras integrantes do grupo), estão mais clean, ou envoltos numa atmosfera shoujo, com direto à pétalas de cerejeiras, arranjos florais, e glitter style – Tudo isso mesclados aos cenários de fantasia. É um trabalho realmente primoroso, desde que forças rivais não estejam se colidindo nas páginas.


MKR se sobrepõe à Sailor Moon de forma até meio inusitada, pois apesar de possuir um argumento maduro, sua abordagem é tipicamente simplista e infantil, principalmente na primeira parte do mangá (os primeiros três volumes), enquanto a obra de Naoko Takeuchi possui um argumento infantil, mas uma abordagem extremamente madura. Com isso, nós temos uma introdução dinâmica e um argumento que se desenvolve rapidamente. E m questão de algumas páginas, você já está completamente situado dentro da história, e esse é um dos pontos fortes de MKR: A caracterização. Os cenários são bem identificáveis, e os personagens, apesar de rasos, causam empatia imediata devido à forma como são desenvolvidos, e não há um conceito maniqueísta. São os sentimentos tão humanos e genuínos, que este enredo se mostra complexo.

MKR é uma leitura meio cansativa (você nota isso claramente através da versão em inglês da Tokyopop, uma vez que a da JBC tem a característica de ser adaptado de uma forma que soe mais engraçado) pra se ler numa sentada só, devido à sua falta de equilíbrio, de espaço para fugir de situações repetitivas e o famoso “efeito de eco”. O que é bem comum quando se trata de mangás infantis. Você que lê a JUMP, já deve ter percebido que os primeiros volumes possuem diversos capítulos onde o personagem repetem as mesmas informações. Com capítulos lançados em antologias semanais, às vezes mensais, é necessário situar um possível leitor novo, que não estava acompanhando a história desde o início.

Citando um exemplo, na página 44, Guru Clef diz às meninas: "Você não pode voltar ao seu mundo". Na página 45, Hikaru diz: "O que ...?" e Guru Clef diz: "eu disse, você não pode retornar ao seu mundo!". Na página 46, Fuu diz, "Nós não podemos voltar para casa ...?" e Guru Clef diz: "Aqueles convocados para Cephiro de outro mundo não pode voltar para casa por sua própria vontade". Assim como também é caraterístico na primeira metade do mangá elas sempre reafirmarem o quanto são amigas. Este é um aspecto da narrativa até interessante (apesar de isso se tornar cansativo), pois as personagens não possuem tempo para se desenvolverem adequadamente (MKR é uma história muito grande, para apenas 6 volumes).


Se você encara com uma sobrancelha arqueada, o fato de 3 personagens que não se conheciam na terra, de repente, em Cephiro, começarem a se ver uma a outra como melhores amigas, talvez isso ajude...Hikaru diz: "Nós três somos melhores amigas, nos acabamos de nos conhecer, mas vocês são como irmãs para mim" –Isso soa realmente tangível para pré-adolescentes, a Hikaru é construída de uma forma que legitima essa postura, afinal, ela possui um espirito quente, é doce e carismática. Alguém que se enturma fácil.

Hikaru continua falando: "Se somente eu tivesse sido invocada, me sentiria tão só, mas graças a vocês, posso seguir lutando. O simples fato de sermos amigas me dá forças para lutar". Diante a hesitação das outras, ela diz receosa "eu não sou a única que pensa assim, né? Não quero obrigá-las a algo que não queira". Então, Umi diz: "As garotas encantadoras e inocentes como Hikaru são tão escassas". Ao contrário de CardCaptor Sakura, que possui um caráter mais episódico e portanto melhor para desenvolvimento de personagem, MKR é linear, o que acaba realçando ainda mais essa necessidade de reafirmação.

Isso pode não significar nada para adultos de 18 a 30 anos, mas para um o público infanto juvenil, são valores ressaltados que chegam até eles como uma mensagem forte. O CLAMP torna esses personagens em versões chibis, nos momentos mais inusitados, quebrando uma atmosfera densa, e tornando o clima leve e divertido. O ponto alto sem dúvidas são os desfecho dos dois arcos de MKR, com reviravoltas inesperadas, e até chocantes.


Embora não seja tão expressivo, MKR é um clássico do Mahou Shoujo moderno, e um dos títulos mais impactantes do CLAMP, apesar de estar longe de ser o melhor. Aqui você nota uma gama de referências a seus trabalhos anteriores e diversas características somadas que se tornariam comuns em seus trabalhos posteriores, como uma citação explicita à famosa palavra do CLAMPverso; "hitsuzen" ("inevitável"/ "destino" – "Neste mundo não existem coincidências. Há apenas o inevitável." By Yuuko), que se tornaria famoso em CC Sakura, ainda que o conceito de destino já fosse algo presente em trabalhos anteriores de uma forma mais vaga, além de mundos paralelos (que deixaria ser algo especulativo e viraria realidade) e o símbolo do CLAMP; a Mokona branca. Com Mokona, como se pode ver ao final da segunda parte de MKR, o CLAMPverso foi criado definitivamente e desde então, todas as suas séries parecem se interligar em um multiverso regido pela Ohkawa.

Sailor Moon foi a maior referência para o Mahou Shoujo moderno, inspirado em Cutie Honey, de Go Nagai, e em Super Sentais, mas MKR subverteu o gênero antes mesmo dessa palavra ficar tão corriqueira, como atualmente. O argumento de três meninas tão distintas e que não se conhecem, serem teletransportadas da torre de Tóquio para um mundo lendário, hoje em dia soa como banal e previsível. No entanto, MKR conseguiu marcar por explorar territórios ainda inexplorados dentro do gênero, que até então se mantinha distante das portas para o mundo encantado.

O CLAMP não só abriu essas portas, como também ao mesmo tempo, brindou seus leitores com a clássica formula da princesa em perigo, com sua salvação por valentes cavaleiros, sendo um fato irrevogável. Com MKR, o CLAMP se submete a essa formula padrão, para então subvertê-la, do cenário de fantasia, à obscuridade presente na alma humana – E até por isso, a primeira parte do mangá, não possui nenhum romance declarado, apesar dos flertes entre Fuu e Ferio. Assim, o CLAMP inverte as convenções dos shoujos e da famosa jornada do herói nos shounens. Dessa vez os cavaleiros que resgatarão a princesa, são garotas. Garotas pilotando robôs gigantes. Garotas em armaduras clássicas de jogos RPG, voltados para homens. Garotas segurando espadas, e as usando, numa história shoujo, repleta de combates e certo grau de violência.

Como diria Ohkawa em uma entrevista “Queríamos aproveitar esta oportunidade e fazer algo que nunca tinha sido feito antes. Naquela época, já havia histórias de meninas em combate, mas nada que envolviam robôs gigantes... Imaginamos que os leitores da Nakayoshi não iriam comprar uma história que só girasse em torno de robôs, por isso acrescentamos alguma fantasia, e elementos de RPG". MKR se distingue pela sua mistura de forma intrínseca de gêneros tão distintos, potencializando todos esses elementos de forma conjunta.


Explorando os limites de convenções, o CLAMP expandiu a partir de MKR, uma base considerável de fãs. Inspirado principalmente em Final Fantasy e Dragon Quest, a história se desenvolve presa a esse conceito, onde o personagem é inserido alheio a sua vontade em uma história, e se vê necessário interagir com vários outros personagens, confrontar diversos adversários, para então, subir de nível. Não por acaso, as armaduras e itens de combate das guerreiras, são evolutivas, e vão ganhando UPGRADE sempre que elas avançam para um nível mais difícil. Claro que isso é um subtexto, o roteiro precisa ser dinâmico e envolvente, e então, no capítulo 1 é inserido o princípio do hitsuzen, que voltaria a tona no capítulo 3, tornando o roteiro bem embasado para tudo o que viria a seguir. As personagens estão cientes que executam tarefas pré-definidas, e que só poderão voltar para casa, quando derrotarem o último BOSS e completarem a missão.

Hikaru, Umi e Fuu se auto referenciarem a todo instante como personagens inseridas num mundo de fantasia, o desfecho trágico e atípico, e o conceito do hitsuzen, nos mostram implicitamente o fato delas nunca estarem desempenhando aquela tarefa por vontade própria. E aí vem a importância da segunda parte do mangá, ou nas palavras das próprias integrantes, uma história onde os personagens conseguissem superar as adversidades pela força de vontade, se desprendendo das correntes que os prendiam. O final da segunda metade fica muito melhor depois de entender qual era a intenção do CLAMP, onde mesmo sendo mais uma daquelas mensagens subliminares de diversos shounens, é difícil não ver essas duas partes distintas da história como uma subversão de valores, seguido de uma reafirmação, onde essas personagens voltam à Cephiro por sua própria vontade, e não mais estão se submetendo às regras pré-estabelecidas.

"Muitos de nós vivemos nossas vidas presas em um RPG do mundo real. Aqueles que não têm conhecimento da conexão entre o mundo e eles mesmos são semelhantes aos personagens em um RPG.... Assim como vamos sair deste role-playing, construir e liderar nossas vidas sem arrependimento? Para fazer isso, temos de estar conscientes de nossa relação com o nosso meio, e entender o nosso papel nele... É sobre ter a consciência de nosso mundo e de nós mesmos. Esse é o primeiro passo para recuar de uma existência role-playing".- CLAMP, 2005, TokyoPop

Toda essa narrativa cognitiva, onde o leitor acaba absorvendo aquela história como algo extremamente familiar, mas meio que sem perceber isso no momento em que lê, talvez seja a melhor característica de MKR. Essa necessidade de mensagem moral já é algo enraizado na cultura japonesa, por séculos, e Hikaru ao desejar tornar Cephiro um mundo regido pela força de vontade de uma sociedade em comum, com todos fazendo a sua parte, realça o velho coletivismo japonês. E o CLAMP soube aproveitar bem os elementos de fantasia e RPG tão em alta na década de 90, para se aproximar dos seus leitores.



Tão forte quanto essa mensagem, talvez também seja a do feminismo. Não importa os conceitos de uma audiência masculina utilizada na história, MKR ainda é um shoujo genuíno. Seja pela arte semiótica que se distingue tanto dos quadrinhos feitos por homens, ou mesmo pela quase imperceptível crítica às convenções de gênero. Você pode ver que as mulheres maduras e ousadas sexualmente são punidas, casos de Alcyone, caracterizada de forma vulgar, que ousou se apaixonar pelo interesse amoroso da Princesa Emeuraulde – Mesmo a princesa Emeraulde, é isso; Uma doce, amável e virginal Princesa, desenhada na forma de uma criança. Já quando seu coração, perto do final da história do primeiro arco, é tomado pelo rancor, ódio e luxuria, ela se transforma numa mulher sexualizada. Ai vai um spoiler importante [selecione a seguir, para ler]: O fato dela ter sido morta, desenhada dessa forma, e não na representação de uma criança, já é um forte indicador para essa mensagem do CLAMP. Enquanto as personagens puras permanecem puras, as que se aproximam do padrão real de comportamento, são castigadas com a morte.

Bem, talvez até por isso o CLAMP tenha oferecido à Hikaru no final, dois noivos, que além de possuírem uma química bromance, também se interessaram por ela. E não é isso tudo o que uma garotinha quer? Príncipes caídos por ela. Príncipes que se deem “bem”.  


Nota: 06/10
Autor: CLAMP
Volume: 06
Ano: 1993/1995 (parte 1), 1995/1996 (parte 2)
Revista: Nakayoshi
Editora: Kodansha
Demográfico: Shoujo

Esse texto foi uma colaboração para o CLAMPday R2, uma ação conjunta, entre blogueiros, fãs e simpatizantes do grupo CLAMP. Acesse a página oficial e veja o histórico completo com as publicações dos envolvidos.

Dicas de Leitura do CLAMPday R2:

-Art Nouveau, Ukiyo-e e xxxHolic [Another warehouse.]

-A Pessoa Amada [NETOIN!]

-Angelic Layer [Mangá Fã-Blog]


Referência:

-CLAMP in Context: A Critical Study of the Manga and Anime (Livro)