“Meu corpo está vazio e isso me faz sentir solitária” – Ela diz,
depois de ter seus intestinos devorados por corvos.
O mangá como conhecemos é um herdeiro da cultura milenar japonesa, que se transformou de forma significativa partir de Osamu Tezuka [influenciado por Disney e Max Fleischer – O criador da rainha do desenhos animados; a ousada, ao menos para a época, Betty Boop], onde se percebeu que poderia ganhar dinheiro com aquela manifestação artística em gravuras. O mangá também é herdeiro do trauma da bomba atômica, daí surgiu os primeiros mangás de horror, que inicialmente tinha uma abordagem de terror social – Daí surgiram figuras como Hideshi Hino, Go Nagai, e Godzilla – como também se caracteriza numa forma de escapismo para os japoneses, diferente do que é para nós, atormentados por aquele horror e mesmo atualmente, toda aquela pressão social.
Agora, o mangá é tanto uma cultura, como uma indústria
lucrativa. Tornou-se um fenômeno cultural e social, uma ode para muitos
artistas. Dá ficção cientifica, a romances açucarados. E pode ser também uma galeria
de exposições Vallois, o mangá arte – Que é bem menos acessível até mesmo por
sua linguagem.
Junko Mizuno é uma artista que faz verdadeiros artbooks em
formato de narrativa linear, caracterizada pelo forte contraste entre um traço
infantil, estilizadamente kawaii, e a evocação de temas sórdidos transformados
em adaptações de contos de fadas adultos. Eu sou admiradora da Junko Mizuno,
tenho o seu único mangá lançado no Brasil, mas está longe de ser um trabalho
marcante ou que consiga transcender às páginas. O que torna Usamaru Furuya (1968) em um mangaká atípico, e aos 44
anos ser considerado um gênio, é justamente essa capacidade de transgressão de
mídia. Plastic Girl (2000) é um mangá que poderia facilimamente ter suas páginas
expostas em galerias, com belas e largas molduras que seriam um convite à reflexão.
É um dos representantes do movimento avant-garde japonês mais conhecidos pelo público geral,
ao lado de Shintaro Kago. E ao contrário de Kago, e da maioria dos artistas
alternativos, Furuya faz trabalhos que são relativamente fáceis de serem
absorvidos pelo público médio. Ele é
sempre associado a este movimento, desde 1994, quando foi descoberto pela
finada revista avant-garde e subterrânea Garo, com seu primeiro trabalho; Palepoli
– um 4-koma, que fora projetado por ele quando ao menos nem sabia as regras
narrativas básicas desse gênero, o que resultou em um trabalho bem fora do
padrão, mas altamente criativo.
Talvez o lado mais interessante de Furuya, seja sua extrema versatilidade,
tanto quanto artista do mainstream, como também do subsolo [underground]. É
muito comum mangakás produzirem obras para diferentes demográficos, mas acredito
que realmente poucos conseguem ir tão longe, alcançando extremos, como Furuya
faz. O primeiro mangá que eu li do Furuya foi Jisatsu Circle, que eu indiquei
aqui no blog em 2010 no meu post de Top 10 mangás de terror. E eu mal sabia quem
era esse tal de Usamaru Furuya. Tanto que posteriormente eu li Litchi Hikari Club e Kanojo o Mamoru 51 no Houhou, e porra (!!), eu não percebi que se tratava do mesmo autor. Até pouco tempo
atrás, eu mal prestava atenção no nome do artista na capa. E Lichi Hikari Club
e Kanojo o Mamoru 51 no Houhou possuem histórias e narrativas completamente
distintas. O único ponto em comum nas histórias de Furuya parece ser o prazer
do artista em explorar a psique humana. E ele faz isso com maestria.
Em toda sua excentricidade, ele é bem ciente de suas
capacidades artísticas, e se refere a si mesmo como um camaleão, referindo a
essa mutação artística de uma obra para outra. Claro que, se ele é o que é,
hoje, certamente é graças à bagagem cultural que ele adquiriu mesmo antes de se
tornar um mangaká profissional. Como muitos, o seu interesse por quadrinhos
começou ainda no ensino fundamental, com ele apresentando diversas ilustrações
para revistas, mas ao contrário da maioria, seu interesse veio a diminuir ao
longo do ensino médio e superior, ficando desinteressado por mangás. E foi aí
que ele veio a manifestar o interesse por artes plásticas e por teatro. Ele se
formou em artes plásticas, e começou a aturar no teatro, também se interessando
por dança.
Quando começou a fazer ilustrações para livros, a chama
dentro de si voltou a acender. Ele diz que quando ingressou na faculdade de
desenho, ele estava crente que aquilo era mesmo o que ele queria fazer, enquanto
se distraia com novas formas de expressão através da arte. Pode-se dizer que
ele não seria o artista original e extremamente autoral que é hoje, se não
fosse por esse caminho incomum. Em seus trabalhos é possível perceber essa gama
de referências artísticas. Talvez isso ainda seja melhor exposto em Papeli e
Plastic Girl, suas obra mais experimentais.
Plastic Girl é um mangá bem alternativo, ao ponto de só conseguir
vê-lo publicado mesmo na França, onde Furuya tem um grande público, e ao
contrário do que acontece nos EUA, ele vende por lá – Podemos também chamar
Plastic Girl de livro. É todo colorido, publicado em tamanho grande para melhor apreciação da arte, com um
trabalho artesanal em todas as suas 46 páginas, que deve tornar o preço bem
salgadinho, mas digno de um produto de prateleira. Aqui, o Furuya usa uma
variedade de estilos artísticos, com diferentes materiais em cada história. Incluindo
pinturas em tecidos, madeira e tela [destaque para as artes realmente artesanais, reproduzidas em em objetos, que foram fotografados posteriormente]. Possui 23 capítulos diferentes, todos
fragmentados, como se fosse um daqueles pesadelos onde você vai saltando de um
sonho para outro, em meio a uma desordem mental.
Ele emprega um estilo de arte diferente em cada um desses
curtíssimos capítulos (embora
ocasionalmente, ele repita algumas técnicas), onde pouquíssimas possuem uma
ligação com a outra. É uma narrativa repleta de simbolismo, com emoções
abstratas e surreais retratadas numa tela, que ocasionalmente consegue emular
um feeling perturbador.
Plastic Girl é o mantra sobra infância, cantado em versos
por Usamaru Furuya. Ilustra o psicológico de meninas sem nomes, e seus
tormentos, amarguras, traumas – Onde às vezes memórias perdidas da infância,
voltam a assombrar na adolescência. São frases jogadas nos quadros como se
fossem pensamentos aleatórios e distorcidos. É apenas o meio, não tem inicio,
nem fim.
Numa das histórias, uma menina que não recebe a devida
atenção dos pais, em sua mente ela está sendo menosprezada por eles – E é assim
que o Furuya constrói a narrativa, sempre pelo ponto de vista distorcido dessas
garotas. Isso se torna marcante em trechos como “Papai me proibiu de sorrir/Então, eu não tenho sonhos e
esperanças/Mamãe me gerou, por isso que gostaria de tomar todos os seus
pecados/ Minha boca foi amordaçada e
as minhas orelhas foram obstruídas pela mãe/Meus olhos estavam cobertos por papai/Então,
eu não sei o caminho/” – Uma traição, com resultado em uma separação e a
guarda da criança, tendo ficado com o pai? As brigas de um casal que são o
tormento de toda criança? O mais provável. Algumas histórias cabem muitas
interpretações.
Todas se situam dentro da mente de uma criança ou
adolescente. Várias histórias refletem a fase mais difícil dessa idade, que é a
confusão sobre identidade. Em uma das histórias, a garota se transforma em um
monstro, em outra, em uma boneca que é demonstrada e remontada com seus braços
e pernas fora do lugar. Mas o que é certo e errado? Qual a verdadeira forma de
um ser humano que renasce [aludindo ao período em que deixam de serem crianças
e se tornam adolescentes]?Ela não pode ser e ter a aparência que quiser? Em um
dos capítulos, uma garota finge estar morta, e quando um anjo descuidado se aproxima
dela, ela o agarra e começa a disseca-lo. Essa estranheza, necessidade de se
distinguir dos demais (“Todo mundo começou a me copiar, mesmo que
seja a coisa infantil a se fazer”), e a curiosidade mórbida adolescente
é muito bem amarrado por Furuya através da suposta alienação dos pais. Desse modo, a
narrativa parece ser continua e com uma progressão tão natural, que as vezes
pensamos se tratar de uma mesma história.
Um dos meus capítulos preferidos, embora talvez não seja tão
genial quanto outros, é com relação a uma garota que vê os pais se amando, e
também quer fazer o que eles fazem, o que acaba resultando em uma gravidez na adolescência,
quando ela nem ao menos ainda deixou de se ver como uma criança; “Meu
filho...é muito bonito/ Mas se descobrirem, eu vou ser repreendida/ E eu não posso
esconder isso para sempre/ Estou triste, mas eu acho que foi a coisa certa a
fazer.../” o grande mérito da história está no modo desordenado como é
contada, como se depois de ver o resultado do seu ato, a garota começasse a se
recordar como chegou nessa situação. E claro, como isso e contado de uma forma
repleta de simbologia; “Eu imito o papai e a mamãe, tirando todas
as minhas roupas e abraçando meu urso de pelúcia/É uma sensação muito
agradável. Este é definitivamente o amor adulto/ Três dias depois, dei à luz a
um pequeno urso de pelúcia”. É a história de um aborto de uma
adolescente, contada como se fosse um conto de fadas obscuro.
O grande mérito de Plastic Girl, é que embora possa parecer
confuso, é algo totalmente logico, e produzido por meio de métodos pouco
usuais. Vale o tempo depositado em cada página.
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