sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Plastic Girl – A Manifestação Artística de Usamaru Furuya


“Meu corpo está vazio e isso me faz sentir solitária” – Ela diz, depois de ter seus intestinos devorados por corvos.

O mangá como conhecemos é um herdeiro da cultura milenar japonesa, que se transformou de forma significativa partir de Osamu Tezuka [influenciado por Disney e Max Fleischer – O criador da rainha do desenhos animados; a ousada, ao menos para a época, Betty Boop], onde se percebeu que poderia ganhar dinheiro com aquela manifestação artística em gravuras. O mangá também é herdeiro do trauma da bomba atômica, daí surgiu os primeiros mangás de horror, que inicialmente tinha uma abordagem de terror social – Daí surgiram figuras como Hideshi Hino, Go Nagai, e Godzilla – como também se caracteriza numa forma de escapismo para os japoneses, diferente do que é para nós, atormentados por aquele horror e mesmo atualmente, toda aquela pressão social.

Agora, o mangá é tanto uma cultura, como uma indústria lucrativa. Tornou-se um fenômeno cultural e social, uma ode para muitos artistas. Dá ficção cientifica, a romances açucarados. E pode ser também uma galeria de exposições Vallois, o mangá arte – Que é bem menos acessível até mesmo por sua linguagem.

Junko Mizuno é uma artista que faz verdadeiros artbooks em formato de narrativa linear, caracterizada pelo forte contraste entre um traço infantil, estilizadamente kawaii, e a evocação de temas sórdidos transformados em adaptações de contos de fadas adultos. Eu sou admiradora da Junko Mizuno, tenho o seu único mangá lançado no Brasil, mas está longe de ser um trabalho marcante ou que consiga transcender às páginas.  O que torna Usamaru Furuya (1968) em um mangaká atípico, e aos 44 anos ser considerado um gênio, é justamente essa capacidade de transgressão de mídia. Plastic Girl (2000) é um mangá que poderia facilimamente ter suas páginas expostas em galerias, com belas e largas molduras que seriam um convite à reflexão.


É um dos representantes do movimento avant-garde japonês mais conhecidos pelo público geral, ao lado de Shintaro Kago. E ao contrário de Kago, e da maioria dos artistas alternativos, Furuya faz trabalhos que são relativamente fáceis de serem absorvidos pelo público médio.  Ele é sempre associado a este movimento, desde 1994, quando foi descoberto pela finada revista avant-garde e subterrânea Garo, com seu primeiro trabalho; Palepoli – um 4-koma, que fora projetado por ele quando ao menos nem sabia as regras narrativas básicas desse gênero, o que resultou em um trabalho bem fora do padrão, mas altamente criativo.

Talvez o lado mais interessante de Furuya, seja sua extrema versatilidade, tanto quanto artista do mainstream, como também do subsolo [underground]. É muito comum mangakás produzirem obras para diferentes demográficos, mas acredito que realmente poucos conseguem ir tão longe, alcançando extremos, como Furuya faz. O primeiro mangá que eu li do Furuya foi Jisatsu Circle, que eu indiquei aqui no blog em 2010 no meu post de Top 10 mangás de terror. E eu mal sabia quem era esse tal de Usamaru Furuya. Tanto que posteriormente eu li Litchi Hikari Club e Kanojo o Mamoru 51 no Houhou, e porra (!!), eu não percebi que se tratava do mesmo autor. Até pouco tempo atrás, eu mal prestava atenção no nome do artista na capa. E Lichi Hikari Club e Kanojo o Mamoru 51 no Houhou possuem histórias e narrativas completamente distintas. O único ponto em comum nas histórias de Furuya parece ser o prazer do artista em explorar a psique humana. E ele faz isso com maestria.


Em toda sua excentricidade, ele é bem ciente de suas capacidades artísticas, e se refere a si mesmo como um camaleão, referindo a essa mutação artística de uma obra para outra. Claro que, se ele é o que é, hoje, certamente é graças à bagagem cultural que ele adquiriu mesmo antes de se tornar um mangaká profissional. Como muitos, o seu interesse por quadrinhos começou ainda no ensino fundamental, com ele apresentando diversas ilustrações para revistas, mas ao contrário da maioria, seu interesse veio a diminuir ao longo do ensino médio e superior, ficando desinteressado por mangás. E foi aí que ele veio a manifestar o interesse por artes plásticas e por teatro. Ele se formou em artes plásticas, e começou a aturar no teatro, também se interessando por dança.

Quando começou a fazer ilustrações para livros, a chama dentro de si voltou a acender. Ele diz que quando ingressou na faculdade de desenho, ele estava crente que aquilo era mesmo o que ele queria fazer, enquanto se distraia com novas formas de expressão através da arte. Pode-se dizer que ele não seria o artista original e extremamente autoral que é hoje, se não fosse por esse caminho incomum. Em seus trabalhos é possível perceber essa gama de referências artísticas. Talvez isso ainda seja melhor exposto em Papeli e Plastic Girl, suas obra mais experimentais.


Plastic Girl é um mangá bem alternativo, ao ponto de só conseguir vê-lo publicado mesmo na França, onde Furuya tem um grande público, e ao contrário do que acontece nos EUA, ele vende por lá – Podemos também chamar Plastic Girl de livro. É todo colorido, publicado em tamanho grande para melhor apreciação da arte, com um trabalho artesanal em todas as suas 46 páginas, que deve tornar o preço bem salgadinho, mas digno de um produto de prateleira. Aqui, o Furuya usa uma variedade de estilos artísticos, com diferentes materiais em cada história. Incluindo pinturas em tecidos, madeira e tela [destaque para as artes realmente artesanais, reproduzidas em em objetos, que foram fotografados posteriormente]. Possui 23 capítulos diferentes, todos fragmentados, como se fosse um daqueles pesadelos onde você vai saltando de um sonho para outro, em meio a uma desordem mental.

Ele emprega um estilo de arte diferente em cada um desses curtíssimos capítulos (embora ocasionalmente, ele repita algumas técnicas), onde pouquíssimas possuem uma ligação com a outra. É uma narrativa repleta de simbolismo, com emoções abstratas e surreais retratadas numa tela, que ocasionalmente consegue emular um feeling perturbador.


Plastic Girl é o mantra sobra infância, cantado em versos por Usamaru Furuya. Ilustra o psicológico de meninas sem nomes, e seus tormentos, amarguras, traumas – Onde às vezes memórias perdidas da infância, voltam a assombrar na adolescência. São frases jogadas nos quadros como se fossem pensamentos aleatórios e distorcidos. É apenas o meio, não tem inicio, nem fim.

Numa das histórias, uma menina que não recebe a devida atenção dos pais, em sua mente ela está sendo menosprezada por eles – E é assim que o Furuya constrói a narrativa, sempre pelo ponto de vista distorcido dessas garotas. Isso se torna marcante em trechos como “Papai me proibiu de sorrir/Então, eu não tenho sonhos e esperanças/Mamãe me gerou, por isso que gostaria de tomar todos os seus pecados/ Minha boca foi amordaçada e as minhas orelhas foram obstruídas pela mãe/Meus olhos estavam cobertos por papai/Então, eu não sei o caminho/” – Uma traição, com resultado em uma separação e a guarda da criança, tendo ficado com o pai? As brigas de um casal que são o tormento de toda criança? O mais provável. Algumas histórias cabem muitas interpretações.

Todas se situam dentro da mente de uma criança ou adolescente. Várias histórias refletem a fase mais difícil dessa idade, que é a confusão sobre identidade. Em uma das histórias, a garota se transforma em um monstro, em outra, em uma boneca que é demonstrada e remontada com seus braços e pernas fora do lugar. Mas o que é certo e errado? Qual a verdadeira forma de um ser humano que renasce [aludindo ao período em que deixam de serem crianças e se tornam adolescentes]?Ela não pode ser e ter a aparência que quiser? Em um dos capítulos, uma garota finge estar morta, e quando um anjo descuidado se aproxima dela, ela o agarra e começa a disseca-lo. Essa estranheza, necessidade de se distinguir dos demais (“Todo mundo começou a me copiar, mesmo que seja a coisa infantil a se fazer”), e a curiosidade mórbida adolescente é muito bem amarrado por Furuya através da suposta alienação dos pais. Desse modo, a narrativa parece ser continua e com uma progressão tão natural, que as vezes pensamos se tratar de uma mesma história.


Um dos meus capítulos preferidos, embora talvez não seja tão genial quanto outros, é com relação a uma garota que vê os pais se amando, e também quer fazer o que eles fazem, o que acaba resultando em uma gravidez na adolescência, quando ela nem ao menos ainda deixou de se ver como uma criança; “Meu filho...é muito bonito/ Mas se descobrirem, eu vou ser repreendida/ E eu não posso esconder isso para sempre/ Estou triste, mas eu acho que foi a coisa certa a fazer.../” o grande mérito da história está no modo desordenado como é contada, como se depois de ver o resultado do seu ato, a garota começasse a se recordar como chegou nessa situação. E claro, como isso e contado de uma forma repleta de simbologia; “Eu imito o papai e a mamãe, tirando todas as minhas roupas e abraçando meu urso de pelúcia/É uma sensação muito agradável. Este é definitivamente o amor adulto/ Três dias depois, dei à luz a um pequeno urso de pelúcia”. É a história de um aborto de uma adolescente, contada como se fosse um conto de fadas obscuro.

O grande mérito de Plastic Girl, é que embora possa parecer confuso, é algo totalmente logico, e produzido por meio de métodos pouco usuais. Vale o tempo depositado em cada página. 

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