terça-feira, 3 de setembro de 2013

Mão Esquerda de Deus, Mão Direita do Diabo (1986) - Kazuo Umezu


Ou simplesmente Left Hand of God, Right Hand of the Devil como é mais conhecido (originalmente Kami no Hidarite Akuma no Migite).



- Certas coisas só são possíveis quando criança.

- “Minhas histórias exigem certa suspensão da descrença de ver as coisas a partir da perspectiva ingênua de uma criança. Os adultos são rápidos em apontar o ilógico, talvez rápido demais. As crianças têm uma maneira de agir com as suas suposições e fazê-las funcionar. Adultos não conseguem isso. Se fizer isso, as pessoas vão achar que você é estranho ”

Mas há algo de peculiarmente chamativo quando dizemos e lemos em português algo como ‘Mão Esquerda de Deus, Mão direita do Diabo’. Faz-nos lembrar de como o ser humano pode ser anjo e demônio ao mesmo tempo. Essa equação que perturba nossos instintos cognitivos se torna mais alarmista ao pensarmos que é nas crianças onde essa dualidade se concentra em sua forma mais casta. Se o ser humano adulto é multifacetado por suas experiências de vida e ambiente ao redor, tornando justificável o tipo de ser desprezível que nos tornamos – a criança ainda se encontra no seu estado angélico, no entanto, desde o momento em que abandona o útero da mãe, ela demonstra uma dualidade que não é própria da degradação influenciada pelo ambiente. O bebê ri com as tentativas frustradas do adulto de assustá-lo, se diverte com o humor das desgraças físicas (um tombo, um tapa, um acidente) e sente um prazer macabro em incutir a dor no seu coleguinha.

Mão Esquerda de Deus e Mão Direita do Diabo?

Vale lembrar na sútil diferença que há entre a pureza biológica e a inocência. Curiosamente, ‘pur’ em grego simboliza guerra, fogo, inferno. Já em francês, significa ‘puro’ – no entanto, ambas as palavras possuem a mesma pronuncia.

Li recentemente que a pureza é a inversão benéfica da inocência, sua perversão. O ser humano enquanto adulto está sempre obsessivamente à procura do estado mais puro, uma busca tola pelo estado angelico infantil. Isso é algo que faz parte da nossa cultura, seja no modelo adotado de depilação corporal onde principalmente as mulheres suprem um desejo inconsciente do homem e da própria mulher ao deixar sua região pubiana como a de um bebê. A purificação religiosa, a ideologia da raça superior, o fascínio pela castidade infantil, etc. Estou de acordo de que a pureza é sim a perversão da inocência. Estou convencida de que o adulto perverte a inocência da criança forçando-as suas próprias fantasias de mantê-los os mais puros que puderem, se possível, introduzindo suas crianças numa redoma super protetora de vidro. Resultando em adolescentes e adultos inseguros ou incapazes de lidar com situações adversas ao qual não estão acostumadas. Claro, não é por mal, eu acho que nossos pais nos criam, na maioria das vezes, mais para eles do que realmente para o mundo. Só quem é pai que deve entender plenamente este sentimento.






Você faz parecer como ao se tornar uma pessoa adulta, se perdesse mais do que ganha.

-“Você certamente perde a elasticidade que lhe permite adaptar-se a novos ambientes. As crianças não estão vinculadas a nada, ao passo que os adultos não podem se libertar de sua própria inércia.

Olhe para The Drifting Classroom. Os personagens são transportados para um mundo radicalmente diferente. As crianças não têm o mesmo cérebro exposto ao conhecimento contínuo que faz com que os adultos enlouqueçam. ‘Isso não está certo! Isso não pode ser verdade!’, trancado dentro dos limites mentais que fizeram por si mesmos, os professores desistem antes mesmo de começar.”


É o mesmo sentimento que fizeram os pais japoneses temerem pelo conteúdo amoral e violento que o mestre Kazuo Umezu estava produzindo para suas crianças. Para quem não está familiarizado com o autor, eu já comentei sobre ele superficialmente aqui no ELBR em Conhecendo o Mestre do Terror: Kazuo Umezu. Autor de clássicos como The Drifting Classroom (comentei rapidamente sobre este no Chuva de Nanquim em Eu Recomendo #10 – Mangás de terror, suspense e horror!), Umezz, como é conhecido, é o mestre indiscutível da cena de mangá horror japonês. O velhinho maluco que transformou a si mesmo num personagem lendário no imaginário de todos onde poder continuar a ser uma eterna criança, faz parte da geração de artistas que cresceram na esteira dos bombardeios atômicos devastadores de Hiroshima e Nagasaki seguido pela humilhante derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Essencialmente isto tem um peso menor em sua obra do que se encontra nas obras produzidas por outro grande nome do horror; Hideshi Hino, mas sem dúvida moldou o seu trabalho e sua assinatura.
Mas vamos deixar essa introdução de lado e falar do que interessa ao texto: o autor possui uma habilidade única em contar histórias através da perspectiva infantil. A maioria de seus mangás tinham como publico alvo as crianças, o que era muito comum na cena de mangás japoneses dos anos 50 aos 70, antes de surgir demografias apropriadas, e o que há para ser dito é de que Umezu era polêmico por sua extrema violência explicita envolvendo crianças, além de abordagens controversas. O tempo fez a justiça de lhe coroar com um trono, mas o fato é que Umezu nunca fora bem visto em sua época, assim como o terror também não era e continua não sendo. Se no Japão Umezu ganhou status de cult, aqui no ocidente eu tenho a impressão que sua assinatura não é muito bem vista entre os “entendedores”, mas isso é outra história.




Como isso foi recebido pelo público em geral?.

-- “Oh, você sabe, eu ia pegar cartões postais de pais reclamando que, ‘Você não pode mostrar esse tipo de brutalidade para as crianças!’.”


Ao contrário dos mangás de terror voltados para o publico infantil, como Zekkyou Gakkyuu (que também comentei rapidamente no Chuva), que são moralizadores e transmitem mensagens de punição para crianças que não se comportam direito ou não comem os legumes da refeição, Kazuo Umezu parece entender a mente de uma criança. Em suas obras, e especialmente em Left Hand of God, Right Hand of the Devil, são os adultos que são punidos, são as crianças boas e ingênuas que recebem a punição. Em divertidas e esclarecedoras entrevistas, o extrovertido maluco beleza revela como seus mangás recebiam muitas rejeições dos adultos, enquanto eram louvados pelas crianças, e que considerava isso um grande feito de sua parte. Conta também que aprendeu com Tezuka (sei que é obvio, mas Kazuo Umezu foi fortemente influenciado pelo deus do mangá, sendo que essa influência é mais perceptível em seus trabalhos mais antigos – desabafo: pena que em sua maioria indisponíveis) a importância de não subestimar uma criança.


“Eu aprendi muitas coisas com Tezuka quando era uma criança, mas isso foi o mais importante: Ele não fez rodeios ou simplificou suas obras para crianças. Ele lidou com temas complicados e deixou os leitores resolverem isso por conta própria. Isso sempre me impressionou. Mesmo depois que alterei e me distanciei do estilo de desenho do Tezuka, a sua atitude intransigente ficou comigo”



Nas suas obras, os adultos ocupam o posto de antagonistas ou simplesmente figuras distantes e apáticas. Em The Drifting Classroom os adultos se transformam em bestas diabólicas de espirito fraco ou apenas debilitados. Seja como for, as crianças não podem contar com a figura dos adultos para os protegerem, eles só podem contar consigo mesmos. Na obra que, teoricamente se trata este post, Left Hand of God, Right Hand of the Devil, os pais dos personagens são feridos e só as crianças podem seguir em frente para salvar a vida de uma colega adolescente.

Ou, de repente os alunos têm a mórbida ideia de ver se a sua linda professora continua sendo bela depois de morta. O que assusta, é a ingenuidade com que movem essa linha de pensamento da execução do plano até o ato fatal, e só ai, se dão conta do quão terrível foi o que fizeram. Mas, o que há não é um remorso, mas o medo de serem pegos por outros adultos e punidos. Então eles são perseguidos pelo espirito da professora morta, o que podemos entender simbolicamente como que a consciência culpada afligindo-os. O único que pode-lhes salvar é Sou, o protagonista, através de seus sonhos, utilizando a mão esquerda de Deus para resgatar os amigos e a mão direita do diabo para punir o espirito mal da professora.
  


Em outra história, o pai é faz desenhos de quadrinhos de terror nas horas vagas na tentativa de sempre arrancar elogios e sorrisos de satisfação da filha invalida e solitária. O que a principio parecia algo tão nobre e meigo, se transforma em sequências perturbadoras. As inspirações do pai para suas aterradoras histórias eram fatos reais, crimes cometidos por ele. Uma jovem que é gratificada com uma morte terrível por parar para resgar uma boneca suja jogada no lixo, enquanto a que passou direto chutando a boneca para longe é apenas ignorada. Os adolescentes que encontraram uma casa de chocolate no meio da floresta e então sofreram terríveis torturas, sendo obrigados a engolirem tudo o que havia de doces ali. As imagens em que eles são forçados a comer causam indigestão.

Então, quando a filha descobre a verdadeira natureza das perversões do pai, ela passa a temê-lo e não mais a admirá-lo. É então que ele resolve puni-la adequadamente... Como ousas a não retribuir com um sorriso o carinho e dedicação que lhe dou? Eu vivo para ti e se comportas de forma tão malcriada.... que ingratidão. Você merece uma punição.

Um ponto interessante nessa história é a de que o pai priva a filha de qualquer contato externo, ela só tem a ele, enquanto vive presa numa cama, sem poder andar e conhecer o mundo. Ela passa os dias solitária, contando as horas para quando o pai chegar do trabalho e lhe contar histórias, lhe dar atenção. Para mim, essa foi o conto mais forte de Left Hand of God, Right Hand of the Devil. Me perturbou pra valer por saber que, salvo a fantasia contida na história, é algo muito crível e que acontece. Seus choros que ninguém vai ouvir; seus soluços desesperados; seus aflitos pedidos de socorro, pausados para ela mesma então constatar que “... mas ninguém vai me ouvir, ninguém vai vir me socorrer, porque eu sou sozinha”. Caras, eu fiquei com vontade de chorar. Foi realmente forte pra mim.

Mas seu desespero chega a Sou, que atravessa a cidade ao seu auxilio e então faz uso da sua mão esquerda e mão direita... A moral deste conto é a de pais que criam filhos para si e o enjaulam numa redoma, com contos de fadas que se aproveitam de sua inocência para iludi-los em busca da manutenção de uma pureza idealizada. Enfim, eu gosto dessa leitura.

Essa sequência é fantástica, o uso sequencial de quadros, o uso de perceptivas, as cores predominantemente pretas, tecnicamente sensacional.





Left Hand of God, Right Hand of the Devil é uma coletânia de 4 volumes (6 na versão Tankoubon lançada posteriormente) com 5 histórias protagonizadas pelo garoto pesadelo Sou, e sua irmã descrente Izumi. Nessas histórias, Sou tem a capacidade de prever eventos sobrenaturais em seus sonhos e até mesmo interver nos acontecimentos reais através deles. Dá uma angustia tremenda no decorrer das histórias, porque ninguém leva fé nas previsões do pequeno Sou, ao ponto de no decorrer dos contos ele começar a ser chamado por todos de “garoto pesadelo”. Mas então, o que ele previu começa a acontecer, e ainda assim todos pensam que as coisas que ele diz não fazem sentido algum, até chegar ao ponto dele precisar intervir diretamente através dos sonhos. Sonhos e realidade se misturam e se sobrepõe a tal ponto que fica difícil apontar onde um começa e onde o outro termina. Os perigos são reais e o suspense dilacerante. Tanto que não consegui, mesmo querendo não querendo, desgrudar a bunda da cadeira enquanto não devorei todo Left Hand of God, Right Hand of the Devil. O senso de continuidade é muito ágil, dramaticamente arrebatador e o desenvolvimento bem estruturado com bem vindas reviravoltas.

O conceito de “mão direita de Deus, mão esquerda do diabo”, dos sonhos de Sou e de ninguém acreditar em suas previsões, é fruto da perspicácia consciente ou não de Kazuo Umezu de entender a mentalidade uma criança. Crianças tendem a reagir com naturalidade às situações mais absurdas, enquanto adultos possuem dificuldades em aceitar eventos que fogem da lógica, por mais religioso que seja a pessoa. Inclusive, Junji Ito pega este lado e desenvolve muito bem em muitas de suas histórias de horror cósmico, onde os adultos simplesmente enlouquecem frente à face do medo e mal absoluto. Você dificilmente vai ver crianças nas histórias do Ito, e quando elas se fazem presentem, são as únicas que não se sentem estimulados, enquanto os mais crescidos não aceitam e vão investigar, por mais que estejam com os nervos atrofiados de horror. E então, enlouquecidos, começam um culto de adoração frente àquele mal.

Ninguém acredita nas histórias de Sou, ele se sente frustrado, como toda criança muito imaginativa que tem seus argumentos refutados, enquanto que seus sonhos, pelo ponto de vista da psiquiatria, podemos ver como uma... ferramenta que alivia o sentimento de culpa por usar da “mão direita de Deus e mão esquerda do Diabo” contra adultos. Contos de fadas, ainda que sensivelmente amenizados, persistem violentos porque representam os desejos mais recônditos do ser humano, sejam eles adultos ou crianças, são essencialmente violentos. A realização imaginaria, através da ficção, permite que continuemos cordiais e vivamos em harmonia [ou o mais próximos que podemos chegar de harmonia]. Em contos de fadas e fantias, as bruxas são uma alternativa para canalizar a agressividade culpada das crianças em relação a suas mães. Odiar a mãe é inevitável, afinal, elas são a contraface do amor absoluto, eu amo e odeio a minha toda hora, na mesma intensidade. Mas pensar negativamente dos pais é taxado pela sociedade como um grande pecado. Assim, vamos odiar sem culpa a madrasta/bruxa, que nos oprime, nos confina aos afazeres domésticos, castiga e prende, nos priva de nossas fantasias, nos despreza. Em contos de fadas, os pais são figuras ausentes para podermos driblar este sentimento de culpa.



Kazuo Umezu utiliza os sonhos e as mãos de Sou como uma fuga que reflete o desejo infantil. Umezu sugere que os pais... não... todos os adultos são selvagens, opressivos e piores do que demônios. Crianças alimentadas à força, pais negligentes, a punição dada pelos adultos àqueles que abraçam a ingenuidade infantil. O teor emocional é extremo. No último conto, há a história de uma amiga de Izumi, gentil, humilde e com um sonho de cuidar de crianças, mas acaba sendo possuída pelo espirito da fama ao socorrer uma velha atriz na rua. Desde então ela se transforma fisicamente e psicologicamente, e passa a cobiçar o estrelato. O espirito que a possui não mede esforços para que ela se torne a idol mais famosa do Japão, provocando um rastro de sangue pelo caminho, arrastando sua amiga Izumi e Sou para essa macabra espiral do horror [literalmente falando]. A mensagem é a de adultos que infligem às crianças e adolescentes seus próprios sonhos.

E se tratando de um país como o Japão, onde as produtoras fazem contratos longos que vão até a idade adulta com garotas e garotos ainda com seus 8, 10, 13 anos, sente-se uma sutil critica por parte de Umezu. A garota possuída se torna apática, seus sonhos e futuro despedaçados, ela se torna cada vez mais uma ferramenta manipulada pela terrível possessão passada pela velha senhora. O desfecho? Bom, eu não quero estragar a experiência de ninguém, mas podemos dizer que o espirito protetor de um outro astro juvenil formado por uma diversidade de crianças na tenra idade, fazem parte dessa equação.

Se apoiando fortemente no folclore japonês, a originalidade de Umezu na condução de ‘Mão Direita de Deus, Mão Esquerda do Diabo’ é feroz. Ao contrário da maioria dos mangás de terror que trazem contos, este possui um vasto desenvolvimento para cada história, algumas duram inclusive um volume inteiro (como dito, são 4 volumes, 5 histórias), o que acaba refletindo na interação dos irmãos Sou e Izumi, que são uns dos melhores irmãos que já li em um mangá. A dualidade ódio e amor que há entre eles é de uma verossimilhança incrível. Na verdade, apenas por parte de Izumi que está invariavelmente estourando com Sou, embora esteja sempre o protegendo e preocupada com seu bem estar. Já ele, é extremamente apegado a ela como uma criança pequena mesmo, salvando-a incontáveis vezes. O gore é intenso e artisticamente bem original, diga-se de passagem, a atmosfera assustada e o ritmo acelerado. Quando se trata de narrativa visual, mesmo que sua arte esteja datada, Umezu ainda se mantêm genial e um exemplo perfeito de como conduzir uma história com dinamismo e prender pelo uso inteligente da cinética. Mas já falei demais, Left Hand of God, Right Hand of the Devil por vezes soa ingênuo em alguns truques óbvios utilizados por Umezu, que não sei se nem as crianças atuais engoliriam bem, mas ainda se mantêm um entretenimento de altíssima qualidade e com uma tensão que oprime o leitor.

Sou e Izumi, inseparáveis. 


Izumi: Se você continuar dizendo coisas estranhas como esta, eu vou ficar louca, Sou!
Sou: Esse cara vai morrer, com certeza!
Izumi: Por favor, não diga essas coisas horríveis em um hospital!


Para fechar, violência não traumatiza a criança, ou elas não ficariam tão excitadas por histórias assustadoras mesmo que vistas e revistas diversas vezes repetitivamente, o que traumatiza é a culpabilidade infligidas a elas, as relações familiares truncadas e perversas. Ficção é antidoto, que o diga a pequena Anne de Green Gables. 


***


Nota: 08/10
Autor: Kazuo Umezu
Demografia: Seinen
Revista: Big Comic Spirits (Shogakukan)
Onde encontrar: só em inglês

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Leitura Recomendada:
- Kazuo Umezu VS TSB (Part 1) (Tokyo Scum Brigade)


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BÔNUS

Olhem essa cinética, o P&B dominando imergindo o cenário na escuridão absoluta... é lindo demais!

E essa aqui deu calafrios, urrghhh >_>