quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Malice@Doll (2000): Boneca Maliciosa

Uma realidade que, segundo a ciência, está mais perto do que se imagina.
Malice@Doll (Boneca@Malice) se passa em algum momento futuro não especificado onde a humanidade aparentemente se encontra extinta. Num complexo subterrâneo de entretenimento há muito abandonado, se encontram diversos droids, em sua maioria avariados pela ação do tempo e falta de manutenção. Entre diversos droids responsáveis pela manutenção daquele local, há as chamadas dolls, robôs construídos e pré-programados para atender as diversas necessidades carnais dos seres humanos. No entanto, agora com a ausência da humanidade sua existência parece vazia e sem sentido. Mas estes droids seguem sua rotina pré-programada diariamente.
Malice (Yukie Yamada) é uma dessas bonecas feitas para a prostituição e tudo o que diz é “Eu vou te dar um beijo – é a única coisa eu posso fazer”, sempre que se depara com algum questionamento complexo. E ela segue pelos corredores escuros daquele complexo abandonado repetindo esse mantra. Malice, ao contrário dos companheiros robóticos, não consegue dizer nada de elaborado. Apesar disso, lembranças de quando ela era útil e realizava diversas fantasias sexuais permeiam sua memória – no entanto, ela não parece compreender bem tudo aquilo, o que parece lhe causar inquietação. 
A maioria dos droids se encontram desativados pela falta de reparo e os poucos que sobraram, temem pelo destino. Neste sentindo, um simples acidente pode ser considerado com o fim para algum deles. Em uma das caminhadas em busca de algum sentido por parte de Malice, ela acaba cruzando com droid Joe@Admin (Daiki Nakamura), o responsável pelo bem estar do complexo e de todas as bonecas sexuais. Ele detecta uma avaria em Malice e a encaminha para o reparador. No caminho, Malice acaba se perdendo em algum lugar desconhecido e embriagado pela escuridão. Dentre todos os perigos eminentes, o maior acaba sendo sua própria consciência que ansiava em se tornar humana para poder compreender tudo que se passava ao seu redor. Seu desejo acaba sendo realizado. Ela fica feliz, mas logo descobre que acabou contraindo uma terrível infecção que coloca a existência de todos em risco.

Permeado por conceitos filosóficos e inspirado no clássico conto sci-fi Do Androids Dream of Electric Sheep? (que originou o também clássico filme Blade Runner) de Philip K. Dick e na emblemática Alice de Lewis Carroll, Malice@Doll é um cyberpunk irônico. Vamos entender o porquê.

Os droids eram máquinas programadas para desempenhar uma função especifica com Inteligência Artificial. Eles não questionavam, apenas executavam suas funções. Para nós seres humanos assistindo por uma ótica humana, a existência sem sentido daqueles droids caindo aos pedaços num subterrâneo escuro e empoeirado, quase que deserto, passa uma sensação de melancolia – resquícios de uma lembrança da existência da humanidade. Nesse sentido, a composição do cenário amplo, escurecido, deserto e com um silencio diegetico evoca em nós o medo da solidão através de Malicia e seu caminhar torpe perdida em recordações incompreensíveis. Por outro lado, nos ambientes afastados da zona conhecida como segura em que Malice acaba se perdendo, o cenário é fechado, claustrofóbico. Se torna apreensivo no sentido de temer um ser que pode surgir a qualquer momento das sombras e não ter ninguém em que possa se contar. 
É então que Malice acaba encontrando uma sala secreta, e movida pela curiosidade, acaba libertando um ser monstruoso com diversos tentáculos, que a estrupa. Uma cena que fica entre o desconforto e a estranheza de ver uma boneca sem emoções feita para o sexo e que já experimentara uma diversas fantasias eróticas virulentas, se contorcer em negativas – porém, o maior temor de Alice é ser quebrada, devido ao estado avariado em que se encontrava. No entanto, ao ser penetrada, Malice acaba por se tornar humana. Parecia que seus desejos inconscientes de poder compreender aquelas memórias permeados por prazeres eróticos, sentir emoções e ser de carne e osso, enfim foram realizados.

Agora Malice tinha mais cor, suave, bem torneada, seus movimentos não faziam mais ruídos, sua consciência expandiu e ela conseguia compreender as imagens captadas através do seu globo ocular e levadas até sua consciência, tudo isso porque podia sentir emoções. Malice se sente livre e não mais acorrentada numa vida sem sentido pré-programada para algo já extinto. No entanto, Malice se sente solitária. Se antes andar solitariamente ou estar na companhia de alguém não tinha muito significado em sua vida, agora isto causa uma dor insuportável. Ninguém conseguia compreendê-la agora, nem mesmo entender que ela era a Malice. É ai que ela resolve também transformar sua melhor amiga também em humana, através de um beijo. Porém ela transmite para a amiga uma terrível infecção que a torna humana sim, mas transfigurada, ao invés de bela como Malice. Se filosofarmos um pouco mais, é como se essa amiga fosse o fruto abortivo de uma relação sexual forçada. 
Logo a novidade se espalha juntamente com o vírus, transformando a todos em aberrações humanoides. Com os sentimentos aflorados, agora eles conseguem sentir a dor provocada por um temor, o medo que agora ganha proporções maiores através das emoções e claro, prazer! Uma das dolls, depois de décadas e diversos serviços prestados sem sentir qualquer prazer real, começa a experimentar todos os fetiches sexuais e a transar sem parar, até deteriorar. Em pouco tempo, eles não apenas se autodestroem, como também uns aos outros. 
Malice@Doll traz o velho questionamento vampiresco sobre o sentido da eternidade de um ser imortal e vagueante, mas principalmente o existencialismo das obras de Philip K. Dick. É irônico no sentido de que neste OVA há uma doença (vida) que faz com que as pessoas sofram, encontrem no prazer o antidoto para essa dor, e por fim morram – e esta doença é transmitida pelo amor (beijo). Você não vê sentido numa vida que se encontra num looping programado, em que essas atividades não lhe trazem prazer algum. E você se encontra vivendo unicamente para desempenhar essa função. Uma vida oca. Uma máquina.

Então você começa a sentir necessidade de viver; ou seja, sentir a vida através das emoções proporcionadas pelo prazer; que vai desde o convívio social até o desempenho de atividades íntimas que vão de encontro às suas necessidades. No entanto, esses prazeres cobram um preço. O amor é a causa de tudo; a origem da vida, dos conflitos, das doenças, dos abusos, dos sorrisos e da morte.

Eu li uma vez, há bastante tempo e nunca me esqueci, de que o ódio não é antônimo de amor, pois o ódio, a raiva, a frustração, todos eram uma forma de amor. Sendo assim, o contrário de amor só poderia ser a mais completa ausência de sentimentos.

Nos finalmentes de Malice@Doll, Malice se arrepende do que involuntariamente provocou com suas boas intenções – um sentimento humano – e entende que para corrigir o que havia feito, precisaria passar por uma nova metamorfose. De um ser com sangue correndo nas veias, errante e mortal, a um ser espiritual sem laço algum com a matéria.

São os ciclos da vida. O ser humano para alcançar a plenitude, precisa transcender a matéria. É o que Siddhartha Gautama compreendeu antes de se tornar Buda e alcançar o nirvana, o estado mais puro e equilibrado em que um homem poderá conquistar.

É [também] uma metáfora; como seres humanos, estaremos sempre insatisfeitos, sempre ambicionando novas conquistas, que logo, se tornarão entediantes, e então, partindo pra próxima ambição, nunca satisfeitos.

O estado mais puro só acontece após a morte mediante o arrependimento das transgressões cometidas em vida.
Esteticamente Malice@Doll é uma experiência interessante, partindo da perspectiva que se trata de um OVA de baixo orçamento. O diretor Keitaro Motonaga (o mesmo do hediondo School Days) consegue ser bem criativo na tarefa de dar vida ao roteiro original de Chiaki J. Konaka (Serial Experiments Lain/ Hellsing). A iluminação entre claro e escuro é bem feita. Por se tratar de um filme CGI, com personagens que se transformam em humanos, sua direção foi fundamental que para o argumento permanecesse crível e aquele mundo realístico. Ele não dá closes em movimentos minimalistas dos personagens, e mantém a câmera sempre estática – o que por um lado acaba se tornando algo negativo por tornar as ações um tanto quanto tediosas em algumas passagens. Motonaga faz uma sobreposição entre 3D com desenhos 2D, especialmente no design dos personagens, conferindo naturalidade às suas ações dentro daquele contexto. Isso tudo fez aumentar a ilusão de realidade emparelhado com uma sensibilidade ao dirigir diversas sequências. Como em algumas sequências onde a câmera se torna distante do ponto alvo, com as ações se tornando indefinidas. Isto torna a narrativa visual mais pobre, mas não sem criatividade. A trilha sonora não diverge, é sempre com tonalidades góticas e parece permear todas as ações do OVA, o que combina bem com o cenário e a trama que se desenvolve.

É um argumento interessante, mas conduzido com uma direção – visual e texto – morna e sem elevação climática, não desperta muito do lado ativo do espectador. O que faz do resultado final, embora interessante, um tanto quanto irrelevante. Acredito que o calcanhar de Aquiles esteja na própria limitação de Malice, como personagem modelada sob a estética 3D. Sua limitação é necessária, mas a falta de opções no mundo, técnica ou mesmo no aprofundamento de seu background limita a perspectiva do universo.

Trivia:

Na concepção do enredo, Chiaki J. Konaka diz nos extras do DVD ter se inspirado no animador surrealista Jan Svankmajer, um dos grandes na arte do stop-motion, com eximia capacidade de criar imagens surreais, grotescas e que causem pesadelos. Suas obras geralmente são de objetos inanimados tragos de volta à vida. Tive a oportunidade de conferir alguns trabalhos dele em outro momento, entre estes, Alice – Neco z Alenky (1998) que é inspirado na Alice de Lewis Carroll, e é realmente espantoso tudo o que consegue criar a partir do nada. Sobre o que Malice@Doll absorveu do conceito de Alice do Carroll, eu diria que a relação com os sonhos e principalmente aquele mundo subterrâneo ter sido considerado como um “país das maravilhas”, agora entregue ao ostracismo, e Alice perdida no desconhecido procurando se encontrar. É interessante que apesar de os droids darem a entender que humanidade fora extinta, o fato da trama se passar todo o tempo no mundo subterrâneo, deixa a dúvida se realmente os humanos foram extintos ou apenas aquele complexo fora abandonado. A sequência final sublinha mais esta questão, onde a verdadeira libertação física de Malice está atrelado ao abandono daquele “mundo”, daquele “sonho”, flutuando em direção à saída; que poderia ser ao invés do céu, a cidade. O que torna a metáfora ainda mais interessante.

Nota: 05/10
Direção: Keitaro Motonaga
Roteiro e Argumento: Chiaki J. Konaka
Estúdio: Visual Science Lab. Inc.
Tipo: OVA
Duração: 1 hora e 18 min.

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