sábado, 7 de junho de 2014

Child of Light ― Uma Reflexão Sobre Coming of Age

Quando as estrelas e a terra entram em conflito.
Um tempinho atrás eu terminei de jogar Child of Light, um game da Ubisoft Montreal que é uma espécie de homenagem ao jrpg clássico que conta com cenários lindíssimos de um casamento perfeito entre 2D e 3DCG – claro que por ser estruturado em side-scroller a experiência de se explorar o cenário é um pouco limitada, já que você só pode ir para a direita ou para esquerda.

Child of Light foi um sucesso de critica, do qual eu acredito ser pela onda nostálgica que provocou em muitos gamers e principalmente por sua atmosfera poética e ingênua, com diálogos construídos com dísticos rimados. O game em si não é nada fora de série em sua mecânica e mesmo a história tem um desfecho insatisfatório se voltarmos os olhos para a trajetória. Mãs!!! Apesar de o final ter me deixado com a sensação anticlimática de incompletude, no geral foi uma experiência prazerosa. Como comentaram comigo quando questionava este aspecto, a mecânica é similar àqueles jogos de quizz/desafios de aparelhos de celulares tamanha simplicidade, e foi bem dessa pegada despretensiosa que eu gostei, os quizz de Child of Light são uma delicia de se jogarem, ainda que os embates com criaturas malévolas acabem por se tornarem cansativas por terem pouca variação.

Mas hey, eu sou uma pessoa que gosta de Mario Kart e Angry Bird! E também não estou aqui para falar da jogabilidade, há pessoas por ai que podem fazer isto melhor. Ao terminar Child of Light e com a iminência do filme Malévola (Maleficent), aproveitei para rever o clássico da Disney de 1959 A Bela Adormecida (Sleeping Beauty)
Pense que assisti isso antes quando era uma pirralha que ainda fazia xixi na cama, nem sequer dá pra levar em consideração que eu já tinha visto. A verdade é que também não há muito o que se recordar de A Bela Adormecida, também. É um filme tecnicamente impecável, com um estilo renascentista de arte medieval maravilhoso, além de representar o fim e o inicio de novos ciclos na Disney (entre muitos marcos, o último da trilogia clássica original das princesas), que mudou bastante sua forma de trabalhar a partir de então, motivado pelo fracasso comercial dessa mega produção – prejuízos que os anos trataram de recuperar, colocando o filme na lista dos mais rentáveis. Perto da imponência técnica de A Bela Adormecida, os traços rebuscados dos anos 30 e 40 de outras animações do estúdio se tornam obsoletas. Mas o que A Bela Adormecida tem de solidez e fluidez em termos de animação e character design, é proporcional à chatice promovida por um roteiro vazio de emoção. Só é válido por ser clássico.

Não é surpresa então que as comparações entre Child of Light e A Bela Adormecida foram inevitáveis de minha parte. A própria história de Child of Light é inspirada e estruturada nos moldes dos contos de fadas clássicos e arte conceitual da considerada Era de Ouro das ilustrações (1880 a 1920), que surgiu substituindo a delicadeza vitoriana, a arte nouveau e então a arte deco. Segundo a própria staff do game, a sua protagonista foi inspirada em Bella’s Glorious Adventure, de John Bauer (1882 – 1918). Veja:
Abaixo, outras ilustrações do período, que foi o período onde surgiu a primeira publicação baseada no conto de fadas de A Bela Adormecida, escrita por Charles Perrault – e diversas pinturas inspirada no conto.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Veja outras do período aqui.

A protagonista de Child of Light, assim como a de A Bela Adormecida, também se chama Aurora (em latim: amanhecer), em uma obvia referencia ao florescer e despertar da idade para novas responsabilidades após passar pelo difícil momento de transição. No entanto, este não é um tema exclusivo de A Bela Adormecida. Assim como em Branca de Neve, Alice no País das Maravilhas, Chapeuzinho Vermelho; entre outros e muitos oooutros, os contos de fadas têm por essência a nuance da confrontação para representar o período do amadurecimento interno. Não quero dizer que tenha sido algo consciente, mesmo porque nos primórdios estes contos nasciam e se transformavam nas rodas, de boca em boca e tinham um caráter moralista. Como vocês bem devem saber. Quero dizer que é uma manifestação mais inconsciente que incorpora o espirito de uma época (que a gente chama de “zeitgeist”, por ser mais chic :P)
Com Child of Light não é muito diferente do senso comum desses contos de fadas, com a história se passando nos representativos 1895 da Austria, onde Aurora é uma princesinha de um reino desconhecido que adoece e adormece como se estivesse morta.  Aurora desperta de seu sono num simulacro de umreinoo mítico chamado Lemuria, contaminado pela pelas trevas. É dito que seu pai entra em depressão e começa a definhar em vida, sendo que ao deixar de lado todos os seus deveres como Rei, o seu reino acaba sendo tomado pela obscuridade criada pela sua madrasta, a Dark Queen. Ela rouba o sol, a lua e as estrelas, fazendo com que Lemuria entre em desequilíbrio, afetando a existência de todos. Agora Aurora precisa correr contra o tempo para reestabelecer o equilíbrio de Lemuria, recuperando todos os elementos e seres que estão sobre o domínio da magia de Dark Queen e, assim, trazendo de volta a cor natural de Lemuria.

Não é uma jornada fácil para Aurora, que a principio se mostra completamente desinteressada nos assuntos de Lemuria, querendo apenas voltar para casa (despertar) para reencontrar o seu pai que está muito mal. O desenvolvimento humano de Aurora é uma das coisas mais bacanas de Child of Light. Ela começa como uma pirralhinha de 10 anos imatura, mimada, grosseira, carente, não quer assumir quaisquer responsabilidades e só quer voltar para sob as asas do pai; mas ao fim da jornada podemos ver uma Aurora de 16 anos bem mais madura e consciente de suas responsabilidades. Foi uma jornada longa, desgastante, onde ela teve que lidar com a possível morte do pai, seguido de sua ausência, que a obrigou a enfrentar sozinha desafios externos e conflitos internos. Mas ao fim, podemos ver que ela se tornou uma mulher decidida e bem mais forte do era, sabendo lidar com desenvoltura com as adversidades. 
Essa é a principal diferença entre Child of Light e A Bela Adormecida. Aurora contrapõe a Aurora passiva de A Bela Adormecida, sendo dinâmica, ativa, senhora de si e não está à espera que um príncipe lhe desperte, tomando sua vida com suas próprias mãos. É justo ressaltar que uma obra retrata e foi produzida em outro contexto histórico. O filme da Disney, por exemplo, reflete bem o pensamento coletivo nos anos 50, com a moça sendo instruída para o casamento, que é a única perspectiva de futuro para uma mulher; se casar, ter filhos, etc. Onde a perfuração em seu dedo que lhe extrai uma gota de sangue e a faz adormecer, representa o período em que as meninas tomam consciência do seu corpo e começam a menstruar. Um período de preparação e espera para a vinda do príncipe. O sono representa uma viagem de autoconhecimento para dentro de si mesma, e está tudo bem desde que este período a prepare para aceitar seu papel feminino, que é ser desperta (com um beijo, simbolizando a afloração sexual do momento fértil da garota) e submissa ao príncipe.

E é basicamente disto que Child of Light se trata, uma viagem de descobertas interiores e amadurecimento. Pense em Caverna do Dragão em que um grupo de adolescentes tenta encontrar o caminho de volta para casa, mas não sem antes terem que encarar uma jornada. A pequena Alice de Alice no País das Maravilhas que adormece e desperta uma realidade fantástica, se pondo a perseguir um coelho apressado que a obrigada a cavar mais fundo para saciar sua curiosidade com novas descobertas que a deixam confusa. Esses mundos são uma metáfora, e por isso serem idênticos ao real, mas perigosamente fantásticos.

Lendo alguns comentários de bastidores da equipe do game, fiquei viajando na explicação de que os vestidos de Aurora foram desenhados seguindo o padrão do Brasão das armas de Lemuria, inspiradas na Cerejeira que representa o renascimento, enquanto mais tarde quando ela se tornou mais velha acrescentaram a flor de lótus, representando a calma [que a idade e experiência trouxe] e a beleza. Na última cena de Child of Light, a imagem que vemos é a de uma linda e florida cerejeira.

Em toda história da humanidade, o Homem sempre teve necessidade de criar uma ligação entre ele e os céus. Que nasce da vontade de usufruir com os deuses a sua cosmogonia infinita, sempre à espera de renascer – criando signos e cumprindo rituais, muitas vezes inconscientes. Isto vem desde tempos primitivos, com tribos alimentando a crença do renascimento pós-morte que se estendeu para todas as religiões; com a diferença de que para algumas, o ciclo do renascimento é eterno enquanto houver karma ou algo do tipo, para outras você dorme até despertar para a vida eterna. Seria o medo de morrer e todas as luzes se apagar, sem a perspectiva de uma nova sessão?
Arte promocional de Yoshitaka Amano, autor que trabalhou em Final Fantasy, Vampire Hunter D, entre outras perolas
No filme Blade Runner, os replicantes buscam uma forma de reverter a morte que se aproxima galopante e lamentam o fato de que irão morrer e todo o conhecimento e memórias que adquiriram irão desaparecer como lágrimas na chuva. Já séries como Kaiba, Shiki, Serial Experiments Lain e Mnemosyne – cada uma ressaltando um aspecto diferente para se alcançar a imortalidade – dissertam sobre a possibilidade de se viver para sempre. A eternidade, voltar no tempo para corrigir equívocos e tentar evitar o inevitável, são todas fantasias míticas da mente humana de quer ter controle sobre o tempo, a vida e a morte. De tudo o que foi citado, se faz necessário o caos para se obter essa nova ordem. Como Deus que sempre que se zanga e se arrepende de nós, inunda a terra para então começar tudo de novo.

Faz-se necessário o ritual de passagem para a renovação, retornando ao embrião para renascer depois (e é exatamente isso que o filme Gravidade aborda), onde este momento de transição se equivale a nascer novamente. Como Jonas imerso no interior de um grande peixe, como Jesus que imerge no Hades e fica por lá tomando um chazinho até o terceiro dia, ou simplesmente como as crianças de Milk Closet que mergulham em mundos fantásticos que existem dentro de si mesmas – e porque não citar, Tropical Citron que escrevi sobre há pouco tempo, em que também há essa dialética temática de mundos submersos como uma alegoria criada pelo homem acerca da transitoriedade. Um mundo dentro de outro mundo. Assim também ocorre com Aurora.

A imersão é uma viagem de descoberta para dentro de um universo subjetivo, que na mente do homem está sempre conectado ao grande cosmos, que também está sempre renascendo, repetindo um ciclo infinito onde não somos nada mais que pó. Diz-se que a imersão recria o ritual cosmogônico da dissolução de qualquer forma de massa em outra forma. Por isso o simbolismo da água ser tão recorrente, implicando tanto em morte quanto em renascimento.

Por fim, essa jornada solitária de adolescentes sem a presença de adultos revela a importância de certo grau de independência, para que ele seja plenamente capaz de lidar com ambientes adultos. Também somo feitos do cosmos da vida e somos afetados por tudo que nos rodeia, sendo a própria vida feita de ciclos em que se faz necessário uma longa caminhada para se alcançar o estagio seguinte. 
Quando a animadora  Marie-Agnes Guy foi questionada sobre seu momento preferido, disse: "A animação de Aurora durante o combate, em que ela se esforça para levantar a espada grande e é realmente muito grande para ela dar o golpe, este é ​​provavelmente o meu favorito. Ela reflete sua fragilidade, mas também a sua determinação". É mesmo tocante ver a sua fragilidade no inicio e como ela foi ganhando força e juntando força com muitos aliados que encontrou pelo caminho, que a ajudaram a prosseguir. 
Foi bom ver uma heroína como Aurora, que mesmo sem traços de masculinidade, conseguiu se provar uma ótima guerreira sem encarnar o estereotipo de mulher masculinizada. No making-off, comentam como é difícil criar uma personagem assim, que seja forte e feminina ao mesmo tempo, mas conseguiram e acredito que é tudo uma questão de se permitir sair de uma zona de conforto de milhares de anos e usar a criatividade.

Bem, essa é a minha homenagem a esse jogo tão bonitinho que me divertiu por algumas boas horas. 

Pra encerrar, a ending de Chilf of Light, na voz suave de Coeur de Pirate (acho que a versão estúdio tem uma acústica melhor). O game tem uma soundtrack muito bacana, adoro a instrumental em que Aurora assopra sua flauta. É uma melodia tão triste que dói


Avaliação: ★   ★ ★

Leitura Recomendada
-http://childoflightgame.tumblr.com/