terça-feira, 30 de setembro de 2014

Barakamon (2014) – A Magia Das Pequenas Coisas

Seeeeeeenseeeeeeeeeeei~ 
Seishu Handa (Daisuke Ono) é um mestre de caligrafia japonesa, um dos melhores, apesar de sua pouca idade – ele tem apenas 23 anos, mas já é considerado um gênio, e como quase todo gênio, Handa é egocêntrico, arrogante e tem enorme dificuldade em aceitar críticas ao seu trabalho. Durante uma exposição competitiva em um museu, Handa é duramente criticado por sua caligrafia sem vida pelo curador, que lhe diz que seu trabalho é uma mera sombra da arte do seu pai – um conceituado caligrafo. Handa se irrita profundamente com os comentários do critico e parte para cima dele, mesmo  ele sendo um senhor de idade já avançada e andando com auxilio de bengala. Como punição, Handa é enviado para um exílio pelo seu pai, na ilha de Goto, a fim de que ele possa refletir melhor sobre seus atos, desenvolver seu próprio estilo e amadurecer com artista e pessoa.

Adaptação do mangá homônimo de Satsuki Yoshino, a história se desenvolve na Ilha de Goto, onde o autor cresceu. Assim como Hiromu Arakawa faz em seu mangá Silver Spoon (já comentado aqui), Yoshino utiliza do seu conhecimento e experiência com a cultura inaka (zona rural, campo, “meio do nada”) para tecer uma história repleta de vivacidade, momentos mágicos e modo de vida dos moradores da ilha.
A estrutura da série é bem simples, inicialmente o autor discorre sobre as diferenças culturais entre Handa e as pessoas da ilha e o inevitável choque que ocorre quando alguém nascido e criado na cidade grande vai para uma zona rural que, em muitos casos, é desprovida de boa parte da tecnologia e facilidade urbana. O que vem em seguida é a descoberta e aceitação do novo estilo de vida por parte de Handa. Em Barakamon não há uma linha contínua narrativa, é uma fragmentação sobre pequenos momentos que fazem a vida o maior milagre que existe. Sorrisos, cooperação mutua, troca de favores, o estreitamento dos laços afetivos durante a convivência diária, desventuras e infortúnios que podem irritar naquele momento, mas que com o tempo se tornam memórias preciosas a serem carregadas por toda a vida. A narrativa está mais preocupada em retratar estes momentos do cotidiano do que em um enredo folhetinesco ou linear.

É o aspecto mais divertido e atraente da série, com diversos momentos ternos e inspiradores. Não que esta seja uma característica própria de Barakamon, é uma estrutura que faz parte da fórmula clássica de histórias cotidianas [slice of life]. Mesmo Silver Spoon, que tem um grande enfoque em tramas lineares e folhetinescas, não foge totalmente desta característica. A caracterização e o crescimento de personagens se dá justamente nestes momentos fragmentos do cotidiano. No caso de Barakamon, o único personagem que realmente se desenvolve e cresce na narrativa é Handa, sendo que os outros são um suporte; uma escada para o personagem escalar. Essa característica é o que distância Barakamon de uma série como Yotsuba&! – onde o mundo é visto pela ótica inocente de uma criança. Em Barakamon tem a sapeca e hiperativa Naru (Suzuko Hara) de 7 anos, mas o narrador da história é Handa e é pela perspectiva dele que entramos em contato com o mundo de Barakamon. Não parece muito, mas esta o ponto de vista do narrador faz uma diferença enorme. Essa diferença faz com que Barakamon tenha uma certa malícia adulta que não se percebe em Yotsuba&!.
Isto não quer dizer que a série tenha um apelo fetichista. Um dos seus méritos é que as crianças se comportam como crianças de fato e não são exploradas como material fetichista e isto é importante para o que a narrativa está tentando construir e passar para sua audiência. Em especial a Naru, dublada pela atriz mirim Suzuko Hara (que faz sua estreia como seiyuu de animes, antes disso ela participou como atriz em A Better Tomorrow) que dá uma incrível espontaneidade à personagem em uma interpretação fantástica. Naru é o grande destaque de Barakamon, é ela que introduz um mundo novo e colorido para Handa, ela é como um girassol, sempre apontando para o sol com sua alegria e impulsividade contagiante.

A relação que eles mantém é magnifica, se desenvolve de uma forma muito natural, assim não se sente como se a narrativa estivesse os empurrado para que se relacionem. Vemos que a aproximação deles é natural, primeiro porque há sempre muitos personagens interagindo com Handa – e Naru é mais uma destes –, de modo que a relação entre ele e os demais personagens se dá uniformemente, e segundo porque Naru é órfã e com o passar do tempo acaba se apegando nele, o vendo como uma espécie de figura paterna, um irmão mais velho – mesmo que ela não tenha esta consciência –, se tornando um referencial adulto para ela, uma vez que seu avô é muito idoso e ocupado para fazer coisas triviais ao seu lado, como ver o pôr do sol, pegar insetos, provocações mutuas e essas coisas bobas que fazem uma criança se sentir querida. Uma das formas mais genuínas da criança demonstrar afeto é através de brincadeiras que infortunam a vida de um adulto. A química entre Handa e Naru é linda, os momentos em que os dois estão sós em cena ou interagindo afetivamente estão entre os momentos mais belos de Barakamon, é uma pena que momentos assim tenham sido tão poucos, como o episódio em que Handa fica ao lado de Naru do inicio ao fim durante o ritual budista pelas almas dos mortos. Não foi preciso de muito para Handa e nós percebemos o quanto Naru se sentia carente naquela situação e o quanto a sua presença a tranquilizava. É um momento de pungente sutileza espiritual.
A malícia que se encontra na história está nos personagens mais velhos que permeiam a narrativa [e no próprio subtexto da narrativa] e que ajudam a tornar a vida de Handa um inferno, mas que pouco a pouco, o infortúnio vai dando lugar a amizade. Os personagens de Barakamon são bem peculiares, e alguns dos melhores estão entre os idosos e como eles se relacionam com os demais. Handa pode ter ido para a ilha de Goto procurando sossego, mas encontrou pessoas amigáveis que o arrastaram para o estilo de vida que levam e aos poucos ele vai perceber o real significado da sua presença naquele lugar.

No dialeto local de Goto, Barakamon significa “uma pessoa em grande forma!”, “uma pessoa alegre”, “espirituosa”, enfim, uma pessoa com muita energia e animada/feliz. É uma expressão muito utilizada no sul do Japão. Integra-se com perfeição à temática da série. Caligrafia é uma atividade pouco conhecida e reconhecida no ocidente, assim como o karuta de Chihayafuru (já comentando aqui), mas prestigiada no Japão. Também conhecido com o nome de Shodo, a caligrafia é a arte de escrever os caracteres chineses (conhecidos como kanji), bem como as letras que formam o silabário japonês (conhecido como kana), utilizando pincéis, tinta e papel. Como nos primórdios a escrita era a única maneira de manter registros, Shodo era uma habilidade essencial. Hoje em dia as pessoas não usam Shodo para fins práticos, mas continua a ser uma parte importante da cultura japonesa. As pessoas usam Shodo em inúmeras ocasiões cerimoniais, incluindo a escrita de cartões de Ano Novo. Nesse sentido, um caligrafo tem o status de um pintor.
É a combinação da habilidade e imaginação da pessoa que estudou intensamente. Curiosamente, no ocidente a caligrafia tinha a intenção de suprimir a individualidade e produzir um estilo uniforme – atenha-se ao fato de que a cultura ocidental é individualista. Enquanto no Japão, a técnica de caligrafia tenta trazer palavras de vida e emoção, dando-lhes um caráter muito pessoal – em um país coletivista. Os estilos são altamente antidualista, diferente de pessoa para pessoa. Por isso que Handa é incentivado a se distanciar do estilo que marcou o pai dele e desenvolver para si um estilo próprio, único e pessoal. Um detalhe interessante nesta equação toda, é que a “pintura” caligráfica é concluída normalmente em questões de segundos e não aceita retoques, nenhuma alteração ou acréscimos. Ela é mantida da forma que saiu das mãos do artista caligrafo, são suas emoções genuínas. Isto nos ajuda a compreender os conflitos e a dificuldade enfrentada por Handa, que é altamente técnico e performático, mas com um estilo de caligrafia que não desperta a paixão e a imaginação de ninguém, soando como um trabalho monótono e sem vida.

É uma arte que não é avaliada nem vista pelos aspectos técnicos, mas como uma forma de exteriorizar um estado de espirito. A pintura da arte caligráfica japonesa é um conceito emocional e espiritual. Em que estado de espirito nos encontramos quando estamos sobrecarregados? Essa é a questão fundamental ao qual Handa deve superar em Barakamon. Ele deve encontrar uma forma de expressar amor e despertar emoções várias nos observadores através da sua pintura, e para isso, ele precisa se libertar das amarras que limitavam sua visão. Ele precisa encontrar o Barakamon. Naru desempenha um papel fundamental apresentando Handa a este estado de espirito livre. Ela é a própria definição de Barakamon. Claro, não vemos este mundo com a visão inocente dela, mas através da perspectiva de Handa, um homem adulto que está procurando se encontrar aos 23 anos de idade – algo muito comum na sociedade atual. Começar de novo depois de certa idade pode ser difícil, mas você pode sempre tentar se reencontrar, para tornar sua vida um pouco mais alegre. Para Handa, a resposta que procurava não estava na pressão que botava sobre si mesmo, mas na forma de encarar a vida.
Barakamon é um anime adorável e relaxante, e com todos seus aspectos positivos, ainda sinto que faltou algo, uma completude que de alguma forma soa ausente aqui. Sua animação elástica e character design plástico com muitas deformações visuais tornam a experiência ainda mais divertida. Não há brechas para fortes críticas a Barakamon, mas certamente é uma série que tinha potencial para ir bem mais além do que já o faz bom. De qualquer forma, foi mais um dos belos achados da temporada, divertido e com uma direção artística sólida que nos entrega alguns momentos bem refrescantes e de alto valor criativo. 

Nota: 07/10
Direção: Masaki Tachibana
Roteiro: Sugiura Masafumi
Trilha Sonora: Kenji Kawai
Estúdio: Kinema Citrus
Episódios: 12

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