Seeeeeeenseeeeeeeeeeei~
Seishu Handa (Daisuke Ono) é um mestre de caligrafia japonesa, um dos melhores, apesar de sua
pouca idade – ele tem apenas 23 anos, mas já é considerado um gênio, e como
quase todo gênio, Handa é egocêntrico, arrogante e tem enorme dificuldade em
aceitar críticas ao seu trabalho. Durante uma exposição competitiva em um
museu, Handa é duramente criticado por sua caligrafia sem vida pelo curador,
que lhe diz que seu trabalho é uma mera sombra da arte do seu pai – um conceituado
caligrafo. Handa se irrita profundamente com os comentários do critico e parte
para cima dele, mesmo ele sendo um
senhor de idade já avançada e andando com auxilio de bengala. Como punição,
Handa é enviado para um exílio pelo seu pai, na ilha de Goto, a fim de que ele
possa refletir melhor sobre seus atos, desenvolver seu próprio estilo e amadurecer
com artista e pessoa.
Adaptação do mangá homônimo de Satsuki Yoshino, a história
se desenvolve na Ilha de Goto, onde o autor cresceu. Assim como Hiromu Arakawa faz
em seu mangá Silver Spoon (já comentado aqui), Yoshino utiliza do seu conhecimento e experiência com a cultura inaka
(zona rural, campo, “meio do nada”)
para tecer uma história repleta de vivacidade, momentos mágicos e modo de vida
dos moradores da ilha.
A estrutura da série é bem simples, inicialmente o autor
discorre sobre as diferenças culturais entre Handa e as pessoas da ilha e o
inevitável choque que ocorre quando alguém nascido e criado na cidade grande
vai para uma zona rural que, em muitos casos, é desprovida de boa parte da
tecnologia e facilidade urbana. O que vem em seguida é a descoberta e aceitação do novo
estilo de vida por parte de Handa. Em Barakamon não há uma linha contínua
narrativa, é uma fragmentação sobre pequenos momentos que fazem a vida o maior
milagre que existe. Sorrisos, cooperação mutua, troca de favores, o
estreitamento dos laços afetivos durante a convivência diária, desventuras e infortúnios
que podem irritar naquele momento, mas que com o tempo se tornam memórias
preciosas a serem carregadas por toda a vida. A narrativa está mais preocupada
em retratar estes momentos do cotidiano do que em um enredo folhetinesco ou
linear.
É o aspecto mais divertido e atraente da série, com diversos
momentos ternos e inspiradores. Não que esta seja uma característica própria de
Barakamon, é uma estrutura que faz parte da fórmula clássica de histórias
cotidianas [slice of life]. Mesmo Silver Spoon, que tem um grande enfoque em
tramas lineares e folhetinescas, não foge totalmente desta característica. A
caracterização e o crescimento de personagens se dá justamente nestes momentos
fragmentos do cotidiano. No caso de Barakamon, o único personagem que realmente
se desenvolve e cresce na narrativa é Handa, sendo que os outros são um suporte;
uma escada para o personagem escalar. Essa característica é o que distância
Barakamon de uma série como Yotsuba&! – onde o mundo é visto pela ótica inocente
de uma criança. Em Barakamon tem a sapeca e hiperativa Naru (Suzuko Hara) de 7 anos, mas o
narrador da história é Handa e é pela perspectiva dele que entramos em contato
com o mundo de Barakamon. Não parece muito, mas esta o ponto de vista do
narrador faz uma diferença enorme. Essa diferença faz com que Barakamon tenha
uma certa malícia adulta que não se percebe em Yotsuba&!.
Isto não quer dizer que a série tenha um apelo fetichista.
Um dos seus méritos é que as crianças se comportam como crianças de fato e não
são exploradas como material fetichista e isto é importante para o que a
narrativa está tentando construir e passar para sua audiência. Em especial a Naru, dublada pela atriz mirim Suzuko Hara (que
faz sua estreia como seiyuu de animes, antes disso ela participou como atriz em
A Better Tomorrow) que dá uma incrível espontaneidade à personagem em uma
interpretação fantástica. Naru é o grande destaque de Barakamon, é ela que
introduz um mundo novo e colorido para Handa, ela é como um girassol, sempre
apontando para o sol com sua alegria e impulsividade contagiante.
A relação que eles mantém é magnifica, se desenvolve de uma
forma muito natural, assim não se sente como se a narrativa estivesse os
empurrado para que se relacionem. Vemos que a aproximação deles é natural,
primeiro porque há sempre muitos personagens interagindo com Handa – e Naru é
mais uma destes –, de modo que a relação entre ele e os demais personagens se
dá uniformemente, e segundo porque Naru é órfã e com o passar do tempo acaba se
apegando nele, o vendo como uma espécie de figura paterna, um irmão mais velho –
mesmo que ela não tenha esta consciência –, se tornando um referencial adulto
para ela, uma vez que seu avô é muito idoso e ocupado para fazer coisas
triviais ao seu lado, como ver o pôr do sol, pegar insetos, provocações mutuas
e essas coisas bobas que fazem uma criança se sentir querida. Uma das formas
mais genuínas da criança demonstrar afeto é através de brincadeiras que
infortunam a vida de um adulto. A química entre Handa e Naru é linda, os
momentos em que os dois estão sós em cena ou interagindo afetivamente estão
entre os momentos mais belos de Barakamon, é uma pena que momentos assim tenham
sido tão poucos, como o episódio em que Handa fica ao lado de Naru do inicio ao
fim durante o ritual budista pelas almas dos mortos. Não foi preciso de muito
para Handa e nós percebemos o quanto Naru se sentia carente naquela situação e
o quanto a sua presença a tranquilizava. É um momento de pungente sutileza
espiritual.
A malícia que se encontra na história está nos personagens
mais velhos que permeiam a narrativa [e no próprio subtexto da narrativa] e que
ajudam a tornar a vida de Handa um inferno, mas que pouco a pouco, o infortúnio
vai dando lugar a amizade. Os personagens de Barakamon são bem peculiares, e
alguns dos melhores estão entre os idosos e como eles se relacionam com os
demais. Handa pode ter ido para a ilha de Goto procurando sossego, mas
encontrou pessoas amigáveis que o arrastaram para o estilo de vida que levam e
aos poucos ele vai perceber o real significado da sua presença naquele lugar.
No dialeto local de Goto, Barakamon significa “uma pessoa em
grande forma!”, “uma pessoa alegre”, “espirituosa”, enfim, uma pessoa com muita
energia e animada/feliz. É uma expressão muito utilizada no sul do Japão. Integra-se
com perfeição à temática da série. Caligrafia é uma atividade pouco conhecida e
reconhecida no ocidente, assim como o karuta de Chihayafuru (já comentando aqui), mas prestigiada
no Japão. Também conhecido com o nome de Shodo, a caligrafia é a arte de
escrever os caracteres chineses (conhecidos
como kanji), bem como as letras que formam o silabário japonês (conhecido como kana), utilizando
pincéis, tinta e papel. Como nos primórdios a escrita era a única maneira de
manter registros, Shodo era uma habilidade essencial. Hoje em dia as pessoas
não usam Shodo para fins práticos, mas continua a ser uma parte importante da
cultura japonesa. As pessoas usam Shodo em inúmeras ocasiões cerimoniais,
incluindo a escrita de cartões de Ano Novo. Nesse sentido, um caligrafo tem o
status de um pintor.
É a combinação da habilidade e imaginação da pessoa que estudou
intensamente. Curiosamente, no ocidente a caligrafia tinha a intenção de
suprimir a individualidade e produzir um estilo uniforme – atenha-se ao fato de
que a cultura ocidental é individualista. Enquanto no Japão, a técnica de
caligrafia tenta trazer palavras de vida e emoção, dando-lhes um caráter muito
pessoal – em um país coletivista. Os estilos são altamente antidualista,
diferente de pessoa para pessoa. Por isso que Handa é incentivado a se
distanciar do estilo que marcou o pai dele e desenvolver para si um estilo
próprio, único e pessoal. Um detalhe interessante nesta equação toda, é que a “pintura”
caligráfica é concluída normalmente em questões de segundos e não aceita
retoques, nenhuma alteração ou acréscimos. Ela é mantida da forma que saiu das
mãos do artista caligrafo, são suas emoções genuínas. Isto nos ajuda a
compreender os conflitos e a dificuldade enfrentada por Handa, que é altamente
técnico e performático, mas com um estilo de caligrafia que não desperta a
paixão e a imaginação de ninguém, soando como um trabalho monótono e sem vida.
É uma arte que não é avaliada nem vista pelos aspectos
técnicos, mas como uma forma de exteriorizar um estado de espirito. A pintura da
arte caligráfica japonesa é um conceito emocional e espiritual. Em que estado
de espirito nos encontramos quando estamos sobrecarregados? Essa é a questão
fundamental ao qual Handa deve superar em Barakamon. Ele deve encontrar uma
forma de expressar amor e despertar emoções várias nos observadores através da
sua pintura, e para isso, ele precisa se libertar das amarras que limitavam sua
visão. Ele precisa encontrar o Barakamon. Naru desempenha um papel fundamental
apresentando Handa a este estado de espirito livre. Ela é a própria definição
de Barakamon. Claro, não vemos este mundo com a visão inocente dela, mas através
da perspectiva de Handa, um homem adulto que está procurando se encontrar aos
23 anos de idade – algo muito comum na sociedade atual. Começar de novo depois
de certa idade pode ser difícil, mas você pode sempre tentar se reencontrar,
para tornar sua vida um pouco mais alegre. Para Handa, a resposta que procurava
não estava na pressão que botava sobre si mesmo, mas na forma de encarar a
vida.
Barakamon é um anime adorável e relaxante, e com todos seus aspectos
positivos, ainda sinto que faltou algo, uma completude que de alguma forma soa ausente aqui. Sua
animação elástica e character design plástico com muitas deformações visuais
tornam a experiência ainda mais divertida. Não há brechas para fortes críticas a Barakamon, mas certamente é uma
série que tinha potencial para ir bem mais além do que já o faz bom. De qualquer forma, foi mais um dos belos achados da temporada, divertido e com uma direção artística sólida que nos entrega alguns momentos bem refrescantes e de alto valor criativo.
Nota: 07/10
Direção: Masaki Tachibana
Roteiro: Sugiura Masafumi
Trilha Sonora: Kenji Kawai
Estúdio: Kinema Citrus
Episódios: 12
Estúdio: Kinema Citrus
Episódios: 12
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