quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Original X Adaptação: Equilibrium & Jouka no Monshou – Sentir ou Não Sentir, Eis a Questão...

Será mais nobre sofrer ou dormir? 
A emoção humana é uma doença.

Sei de várias pessoas em nosso meio que diriam e pensam isto. Mas, mesmo esta sentença está carregada de sentimentos. É difícil conceber um ser vivo racional que tome atitudes sem estar embasado por emoções. Talvez seja por isso que o filme de Kurt Wimmer, Equilibrium (2002), tenha atraído tão pouca atenção ou compreensão de publico e critica, e rapidamente se transformado num fracasso contundente e jogado ao ostracismo – verdade seja dita, assim como Suicide Club (2001), possui uma premissa tematicamente rica, mas a condução acaba deixando a desejar em algum ponto. Mesmo assim o filme cultivou um pequeno culto, e deste culto nasceu Jouka no Monshou, que é um doujin/fanfic escrito por Gen Urobuchi ambientado no mundo de Equilibrium em formato de visual novel (curtinha, cerca de 2 horas ou menos de leitura, de apenas um capítulo).
Por se tratar de uma fanfiction, a história de Jouka no Monshou (O emblema da chama sagrada, 2003) utiliza o mesmo plano de fundo de Equilibrium, mas personagens diferentes. Na história, em algum momento do século XXI a Terceira Guerra Mundial eclodiu e a humanidade sucumbiu. Os poucos remanescentes que sobreviveram decidiram que a humanidade jamais se recuperaria de uma hipotética Quarta Guerra Mundial, decidindo, portanto criar uma sociedade em que as emoções e os sentidos fossem contidos por uma droga chamada Prozium, capaz de inibir e nivelar o emocional humano, contendo então a volátil natureza humana. Obviamente, se tratando de decisões político-sociais uma sociedade nunca é unânime sobre um mesmo panorama e aqueles que se rebelaram contra este novo sistema ficaram conhecidos como “Infratores Sensoriais”. Para evitar que estes infratores disseminassem sua ignorância sobre as pessoas emocionalmente puras e deturpassem os valores estabelecidos, foi criado o Clero Grammaton, uma entidade com a função de eliminar todos os rastros da cultura remanescente; livros, pintura, músicas, etc. e etc., e os rebeldes, que ao serem capturados, são mortos sumariamente por terem se oposto ao “Pai”, figura máxima do estado totalitário de Libria, que apenas aparece através de telões e qualquer audiência particular com ele é extremamente restrita. Qualquer um que deixe de tomar seu Prozium diariamente e demonstre qualquer grau de emoção é acusado de desobediência ao Pai e é rapidamente eliminado daquela sociedade, não importando quem, se trata de um governo absolutista fascista, o que é um tanto irônico numa sociedade que não sente.
Em Equilibrium, o protagonista é John Preston (Christian Bale), um Grammaton [ou Clero/Sacerdote], um oficial de elite que caça e pune os infratores conhecidos como “ofensores”. Sua vida muda no dia que ele descobre que seu parceiro está emitindo emoções, e ao investiga-lo, descobre que ele se tornara um “ofensor”. Preston a partir de então entra em um paradoxo, onde vários questionamentos começam a brotar em seu peito.
Em Jouka no Monshou o protagonista é Bernad, a trama é bem similar; Bernad desconfia que o seu parceiro Tirelli não esteja tomando Prozium, mas o imenso respeito que ele dedica ao colega faz com que seja emboscado em uma armadilha. O despertar de Bernad, ao contrário de Preston, se dá de um modo bem diferente. Para os entusiastas, o Gen Butcher dá um pequeno fanservice: Preston aparece em determinado momento, aconselhando Bernad. Ambas as tramas e os processos de descoberta e renascimento de Preston e Bernad acontecem concomitantemente, convergindo em um desfecho fantástico – Jouka no Monshou respeita bastante a linha temporal de Equilibrium.

Particularmente eu gostei mais de Jouka no Monshou – por ser uma narrativa escrita que dá uma chance infinitamente maior de imersão na psique dos personagens e seus conflitos. A espiral de tormento, perda de sanidade e loucura gradativa que toma conta do espirito de Bernad quando ele é impedido por Tirelli de tomar o seu Prozium é de uma imersão tão catártica e fascinante, a descrição de Butcher consegue te envolver tanto no personagem que os momentos de maior conflito psicológico fazem com que soframos ou possamos compreender tudo o que o personagem está sentido. As sensações de abandono e quase morte soam tão verossímeis que só poderia ter saído da mente de alguém que realmente teve uma experiência assim (como ocorre com o autor).
“Apesar de tudo, as emoções nascem de impulsos ilógicos. Isso não deveria vir como nenhuma surpresa o fato de que alguém que se tornou escravo da emoção tomaria ações ilógicas”

“O comportamento de Tirelli já é muito instável para ser avaliado com a razão. Talvez ele tivesse descido para o que eles chamam de ~insanidade~”

“Se é assim, então eu me tornei o brinquedo de um louco. De certa forma, este é o fato mais assustador de todos”

“Eu estava preparado para que cativeiro tomasse conta dos meus nervos. No entanto, o meu primeiro gosto da emoção conhecida como o ~medo~ é poderoso demais para alguém que viveu toda a sua vida sob a proteção de Prozium”

“Eu estou sendo arrastado para um poço sem fundo, e nenhuma quantidade de esforço pode parar isso. No final, eu abandono meu orgulho e choro sem nenhuma vergonha, pedindo misericórdia. Se ele vai me salvar desse terror, eu vou com prazer sacrificar a minha dignidade. É claro – a salvação nunca chega”

“O medo continua a comer a minha alma, consumindo até a raiva e a vergonha, e com ele vem um sentimento de impotência. Este é o inferno chamado de ~desespero~”

“Às vezes eu choro e grito. Às vezes eu malho meus punhos contra a parede. Às vezes eu simplesmente me deito exausto no chão, ouvindo os sons, com medo na escuridão. Isso se repete – por quanto tempo, eu não sei”

Quotes de Bernad.
Voltando a falar de Equilibrium, não posso deixar de ressaltar o quão notável é a sua metáfora religiosa. Você deve ter percebido. A entidade do Clero Grammaton se chama Templo/Ordem ao invés de delegacia de policia; acima o grande Pai (que é uma espécie de Big Brother, o Grande Irmão do livro a984, de George Orwell); abaixo os clérigos/sacerdotes – e como tal, não existem mulheres nestas funções. Ao invés de cadeia; inferno. Essas são apenas algumas referências religiosas, assistindo, perceberá que existem bem mais. Equilibrium pode ser criticado por muitas coisas, mas não deve se deixar cair no erro de limitá-lo à sombra de obras clássicas da distopia, como Fahrenheit 451, através de correlações evidentes como o fato de os clérigos soarem como os bombeiros, responsáveis por queimar livros e outros tesouros históricos. É difícil fugir das referências ou até mesmo das formulas implantadas por grandes clássicos como Admirável Mundo Novo. Equilibrium consegue fazer uso de todos estes elementos e ainda apresentar uma premissa singular.  

Jouka no Monshou também acaba por ganhar contornos próprios ao fugir destes paralelismos – embora não em sua totalidade, afinal, ainda se trata de uma obra refletida por outra, portanto, léxicos de “Clérigo”, “Pai”, “salvador”, “fé” e “verdadeiro crente” para caracterizar os guardiões fascistas com alta sensibilidade religiosa e que proíbem, caçam e matam todos aqueles que não compactuam com sua fé; e a demonização de que tudo que se caracterize como indutor de emoção (qualquer forma de arte ou um simples cachorro de aparência meiga capaz de despertar afeição); também resplandece sutilmente em Jouka no Monshou através do embate entre Bernad e Tirelli.
O antigo filósofo Platão, em seu ensaio atemporal intitulado A Alegoria da Caverna [do livro VI de “A República”] investiga a natureza humana através de uma metáfora de prisioneiros mantidos em cativeiro em uma caverna escura. Acorrentado à parede desde sua juventude, sua única perspectiva é de que as sombras nas paredes são projetadas de fantoches por um “mestre de marionetes”. Sua perspectiva de sociedade gira em torno de um jogo de nomenclatura dessas sombras. Até que um dia o prisioneiro escapa e descobre que toda a sua vida fora uma mentira sórdida. Platão argumenta que os novos sentidos são enganosos e frequentemente predados pelo nosso governo. Ele afirma que somos prisioneiros de nossos próprios sentidos vítimas de nossa própria percepção da realidade.

A história de Equilibrium e Jouka no Monshou investiga a emoção humana em um universo distopico, governado por um líder fascista onde os sentimentos são proibidos a fim de alcançar uma utópica sociedade livre de dor e conflitos. Consequentemente, os cidadãos se tornam obedientes drones estúpidos do “Pai”. Prozium (sim, isto mesmo, referente à Prozac, a droga inibidora de depressão, transtorno obsessivo compulsivo, bulimia nervosa, síndrome do pânico, etc. que chegou a ganhar o título de “A felicidade reinventada” e fez muito sucesso a partir da década de 80) é a grande Nepente, opiáceos das massas entorpecidas, que os libertou de Pathos, libertando-os da tristeza e dos abismos mais profundos da melancolia e ódio, anestesiando a dor, aniquilando os ciúmes e obliterando a raiva. Estes impulsos humanos que são os responsáveis pelas maiores tragédias e conflitos da humanidade.
Tem um trecho da série The Strain que gosto bastante; “O amor é a nossa graça. O amor é a nossa ruína”. Uma personagem diz para Preston em Equilibrium; “Sentir é tão vital quanto respirar” – até que ponto isso é verdade [para você]? A reposta que Equilibrium e Jouka no Monshou trazem é a de que os sentimentos são essenciais para individualidade e todos devem passar por sua própria jornada para alcançar sua “iluminação”. Pode se entender desta sentença que a felicidade ou infelicidade só pode ser obtida através de uma jornada individual e solitária. Mas estaríamos maduros o suficiente para compreendermos a magnitude de nossas emoções [dica: Um Olhar no Romantismo Retrógrado ]? Em especial, Jouka no Monshou utiliza diálogos provocantes, e Equilibrium traz diversos simbolismos, que somados, revelam a importância da emoção para uma perspectiva de pensamento próprio. Para a individualidade, os pensamentos bons ou maus, generosos ou mesquinhos são o que formam o livre arbítrio. Para a personagem que interpelou Preston, ele não tem capacidade de responder sua pergunta sobre “a que se destina a sua existência?”, e então ela responde “Sentir. Você nunca fez isto, então você não pode saber o que isto significa, mas é tão vital quanto respirar. E sem isso, sem amor, sem raiva, sem tristeza, a respiração é apenas um relógio tiquetaqueando”.

Tirelli, ao descobrir a emoção e a profunda diferença existente entre ser oco/vazio emocionalmente e a excitação de ser preenchido por chamas borbulhantes de uma amálgama de sentimentos, não mais pôde retornar ao seu antigo ser. Penso que deve ter sido similar à metáfora de Adão e Eva ao comerem do fruto proibido. Vai ai um diálogo sensacional de Tirelli com Bernad; “Você acha que todos os seres humanos que recuperam suas emoções tornam-se apaixonados por colecionar obras de arte e manter animais de estimação? Você nunca vai ser um bom pesquisador, se você se permitir ser enganados por esses estereótipos. As pessoas que leem e escrevem livros como estes, em seguida, falam sobre 'beleza' e 'amor'... Sinceramente, eu tenho pena deles. Eles são livres das amarras da Prozium, mas eles entram em tais empreendimentos insípidos. É tudo porque eles nunca realmente mataram alguém. Sem saber o impacto de tirar uma vida, eles só podem buscar estímulos emocionais inúteis”
E ele continua “Deve ser óbvio o porquê de eu não ter deserdado. Depois de recuperar as minhas emoções, meu dever como um carrasco se tornou a alegria suprema! Ideais do Pai não significam nada para mim agora. Matar seres humanos, atropelando suas vidas sob os meus pés.... faz minha alma pulsar com o ritmo da vida! (...) A proposito Bernard... eu comi um cão um pouco tempo atrás. Matei-o e comi seu fígado, com pingos de sangue fresco. Você consegue imaginar isso? Eu caçava um animal em fuga, o peguei, matei e o comi! Com minhas próprias mãos! Você pode imaginar o gosto de seu sangue quente? Como era delicioso!? Haha! Isso é o que é estar vivo! Eu provei a alegria da vida que o Pai nos roubou!”. Enquanto ouvia, Bernad pensava “A voz de Tirelli tornou-se um frenesi de excitação maníaca, pontuada por gargalhadas insanas”.

Você consegue compreender o que é fazer uma descoberta que contradiz toda a sua existência até então? Se você conseguir compreender isto, conseguirá entender a frenesi enlouquecida que tomou conta de Tirelli, tal como se tivesse sido arrebato por um súbito horror cósmico (que faz a pessoa perder a sanidade). O que ele descobriu estava além do que poderia imaginar, no entanto, ao ser tomado pela ampla gama de emoção que lhe fora negado por toda a vida, Pirelli descobriu que o que mais lhe causava satisfação era o sadismo.
Preston em Jouka no Monshou
Preston e Bernad se tornam prisioneiros de suas consciências, incapazes de sentir ou tomar decisões próprias (aqui, fica mais claro o porquê de Kurt Wimmer empregar a metáfora religiosa no contexto de sua obra), mas apenas se deixam guiar sem questionamentos pelos mandamentos do Pai. Para mim, as emoções são o que fazem a vida vale a pena viver e que nos definem individualmente, obviamente nossas mazelas também se originam nestas emoções, porém são frutos mais da nossa falta de equilíbrio e sabedoria – a possibilidade de aprender com os nossos erros, das lições que a vida nos dá e evoluir como pessoas são algumas das possibilidades que nos são ofertadas e que jamais poderíamos alcançar sem a consciência da emoção.

Como na Alegoria de Platão, uma vez que o preso tenha atingido o mundo superior, ou iluminação, ele preferiria sofrer qualquer coisa a voltar se entreter com essas falsas noções e viver desta maneira miserável. Ignorância obstrui a nossa qualidade de vida. Depois de obter esse conhecimento, é impossível viver da mesma forma ignorante. É por isso que os rebeldes estão dispostos a dar a vida por suas emoções, porque a vida sem ela é pior do que a morte. [SPOILERS selecione para ler >>>] Bernad alcança essa iluminação espiritual, e mesmo tendo relutado inicialmente ao ver o Prozium evaporar de suas veias, ao entrar em contato com a emoção ele não mais consegue abandonar este sentimento; “Pela primeira vez, eu percebo que é a morte. Infinitamente fria, infinitamente vazia – é a única lei imutável. É zero absoluto, congelando instantaneamente o meu medo, a minha raiva, e até mesmo o meu desespero. Eu entendo essa frieza. Agora que eu tenho experimentado as chamas da emoção, eu finalmente sei o que é que transforma meu sangue em gelo.”
As palavras não são suficientes para descrever completamente o conhecimento que Platão procurava. Talvez, a iluminação não é nada mais do que tomar diferentes ensinamentos e ideias para perceber a realidade de uma maneira nova e diferente. Mente aberta é a chave para mudar e pode ser o maior obstáculo que temos sobre nós mesmos. Para nós, que não experimentamos este mundo, pode ser complicado entende-lo completamente, porque a emoção é algo complexo – como crer que essas pessoas conseguiam viver sem sentir nada? Porém, devemos nos lembrar que o Prozium não elimina completamente a emoção, mas a inibi, e tomando em dozes periódicas diariamente, as pessoas se tornavam inexpressivas, um bando de gados, robôs cumprindo operações programadas. E ao desfecho, a obra nos brinda com uma reviravolta irônica, similar a de Psycho-Pass, [SPOILERS selecione para ler>>] descobrimos que o Pai já não existe e que aqueles responsáveis pela manutenção da mentiram, não tomavam Prozium e eram livres para sentir e colecionar arte, como se nota gabinete do Pai.

O embate entre individualismo e coletivismo e a noção de que cada pessoa é um fim em si mesmo são tratados de forma magnifica, tanto no original quanto na fanfiction. E como já disse gosto mais da versão escrita por refletir mais intensamente as melhores qualidades de Equilibrium. A escrita de Butcher é deliciosamente imersiva e o character design a cargo de Chuuou Higashiguchi (Mnemosyne: Mnemosyne no Musume-tachi, Kikokugai - The Cyber Slayer) dá o tom ideal para os personagens e o mundo descrito, além da boa trilha sonora bem colocada em todos os momentos. A descrição das performáticas lutas de Equilibrium também foram bem reproduzidas em Jouka no Monshou; a obra original utiliza uma técnica fictícia chamada Gun Kata, artes marciais somadas à alta pericia no manejo de espadas e armas em uma ação matemática – é utilizada como controle militar, e apesar da arte marcial ter sido moldada no Yoga e Zen, alheia a violência, acabou se tornando de uso militar para melhor controle da mente e do corpo, convergido em um estado de ordem coletiva.

Sentença; assista o filme, leia a novel.


“É a criatividade, a porta para o desconhecido, que só pode ser aberta em um lampejo de inspiração, a verdade suprema que só uma mente verdadeiramente livre pode alcançar” – Bernad 


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