sexta-feira, 21 de agosto de 2015

[+18] Uncivilized Planet (2003) - Planeta Selvagem

Melancólico, metafisico, violento e humano. 
Texto escrito originalmente em 05/11/2013

Mikai no Hoshi ou Uncivilized Planet (Planeta Incivilizado) é um mangá distopico de autoria do artista de mãos selvagens, Jiro Matsumoto. Conta a história de três amigos de infância numa cidade tomada pelo exercito. Colon, Cookie, e Naomi que cresceram amigos, repletos de sonhos – Colon queria ser desenhista; Naomi simplesmente viver uma vida simples como esposa de Colon, trabalhando juntos, para que ambos pudessem sair daquele inferno; e Cookie não apenas tem o sonho de ser dançarina profissional, como possui talento nato – acabaram tomando caminhos distintos quando cresceram, embora estes caminhos estivessem entrelaçados em meio a uma cidade à sombra da ditadura e extrema pobreza. A amizade deles irá resistir ao tempo implacável, os caminhos tortuosos de uma vida que não permite sonhar e pune os sonhadores? Ocupação inimiga, militarismo, ciúmes, traições, ambições, conflitos, lealdade, vingança, sonhos defeitos, solidão, essa é a formula para Uncivilized Planet.

O que faz de um mangá psicologicamente maduro ou denso? Sua violência ou sexo gráfico, ou seria sua narrativa? A violência – física ou sexual – sem contexto não é nada mais do que apenas um fetiche vazio e sem substância. Um trabalho realmente pesado não necessita de um nenhum tipo de exposição visual para passar sua mensagem – apesar de ser um título que instintivamente pensamos como infantil, a quantidade de densidade e reflexões maduras de diversas camadas que pode ser encontrado em um livro como O Pequeno Príncipe, tido como leitura para crianças, imediatamente o coloca em um nível superior – da mesma forma que essas exposições visuais possuem um poder devastador quando dialogam com seu contexto. 

Depois de ler o primeiro volume de Uncivilized Planet, tarde da noite, depois de ver a história crescer gradualmente e aqueles personagens ganharem uma perspectiva tão humana, me senti abatida ao ponto de começar a ficar sonolenta (sintomas de cansaço mental. Sua mente tem um dispositivo de autodefesa em que o nível de sua sensibilidade varia muito de pessoa para pessoa de acordo com vários padrões subjetivos que não cabe aqui enumerar. O que faz com que, geralmente, pessoas depressivas ou imersas em tristeza desejem e passem tanto tempo dormindo ou sonolento), fechar o CDisplay e ir dormir. Tive pesadelos significativos, claro. Ao acordar, qual a primeira coisa que faço? Abrir o dispositivo de leitura e começar o segundo volume num impulso incomum. Falo incomum porque tendo a ter resistência a histórias que mexem demais comigo, como Oyasumi Punpun, em que eu fazia bastante cerimonia para abrir o volume seguinte, mesmo querendo ler. Mas Uncivilized Planet terminou em um ponto em que precisava urgentemente tomar conhecimento dos rumos tomados pelos personagens Colo, Naomi e Cookie. 

A história agora não era sobre Cookie praticando orgias e maltratando Colo...
...Nem de Naomi e seu falso puritanismo.
As linhas retas no bolão de Naomi, indicam que Colo é incapaz de entender o que ela está pronunciado, dado a sua inocência virginal
Era agora questão de tomarmos consciência do que aconteceu para que as inocências dos sonhos de crianças dessem lugar à maledicência do mundo adulto.

Do porque uma garota tão doce como Cookie se tornou tão cínica.

Do porque insistem em fazer Colo despertar para a realidade.
Do porque de Naomi se vê sem opções ao ponto de ser obrigada a se prostituir para que a família não morra de fome, para que alcance seus sonhos.

O dicionário define incivilizado como algo que não é civilizado. E o que não é civilizado é rude, grosseiro, violento, agressor, selvático. Essa é a figura do Estado. No caso, aquele Estado. Jiro Matsumoto não se preocupa em definir datas, localidades exatas; é tão somente uma história que ocorre todos os dias no nosso mundo em cidades devastadas pelas guerras, tomadas pela ocupação de soldados de países rivais, com seus habitantes violentados – em todos os sentidos – e seus sonhos castrados. É por não delimitar os contornos da história citando países e contextos históricos, que Uncivilized Planet se torna tão rico. Uma história que pode ter ocorrido ou estar ocorrendo ou vir a ocorrer em qualquer lugar do mundo, uma autêntica alegoria. 

Um mundo violento e bárbaro que tira tudo de seus habitantes mais pobres e prostitui suas mulheres, só poderia ser olhado por quem mora nele pela perspectiva de bom X mal. De inimigos X amigos. É um quadro complexo demais para que seja delimitado dessa forma, o classicismo impõe essa visão a todos as classes sociais, mas sua visão também é limitada. O que eles sabem é o que veem. E o que veem, não é nada mais do que miséria. Colo é um garoto incomum, assim como Pipi de The Music of Marie, assim como várias outras pessoas que a despeito da realidade que o cercam ainda carregam uma ingenuidade incorruptível. Só que tanto Colo como Pipi são psicologicamente disfuncionais, como que se seus autores dissessem, que neste mundo não há a possibilidade de existir pessoas adultas de pensamentos tão puros que não sejam de alguma forma mentalmente sã. 

Colo quer que Naomi e Cookie voltem a se darem bem uma com a outra, que se tornem amigas mais uma vez. Ele acredita no perdão, no poder da escolha, de que as pessoas podem trilhar um caminho melhor se quiserem e se esforçar. Ele não entende do porque todos são tão obstinados pelo sexo e seus fetiches, do porque são capazes de humilhar, violentar e degradar por este capricho. Ele anda pela cidade, vê pessoas falando de inimigos, de qual lado ficar. É gratuitamente espancado e humilhado por Cookie, de quem tanta gosta, mas continua voltando pra ela com a lealdade de um cachorrinho. Sofre por Naomi, lamenta e não entende suas decisões, mas decide se esforçar com seus desenhos da mesma forma que ela também está se esforçando por seus objetivos. 

Para se proteger do mundo real, repleto de injustiças e esperanças desfeitas, Colo se refugia em suas fantasias, adentrando num mundo imaginário onde nada pode feri-lo. 

Vamos interromper este monólogo sobre Colo, para também falarmos das amigas conflitantes, Naomi e Cookie. Cookie é uma pessoa fácil de ser julgada; manipulativa, libidinosa, gênio forte, cruel, cínica, é capaz de qualquer coisa para alcançar seus objetivos. Vive maltratando e ameaçando Colo, é extremamente egoísta e arrogante. Odeia os soldados da ocupação, que mataram seu pai quando ainda era pequena, e é incapaz de baixar a cabeça mesmo nas piores situações. Nem mesmo sob torturas.
É uma personagem fascinante, revestida de tamanha humanidade que é impossível odiá-la sem ser hipócrita e insensível. É difícil não sentir empatia e não se colocar no lugar da moça, que usa a agressividade como escudo para se proteger.

Do outro lado temos Naomi, a moça estereotipada por todos daquele local com uma imagem virginal, pura, bondosa. Não poderia ser diferente, Naomi é simpática, trabalha duro todos os dias fazendo e vendendo pão, carregando sozinha o peso de uma família enorme, incluindo o pai doente e a avó idosa. Ao contrário de Cookie, que vive fazendo aquela dança cigana caliente, transando com dois ao mesmo tempo e não se inibindo por nada. Porém, Naomi por pensar demais nos outros, acaba abrindo mão de si mesma. Diante de uma oferta tentadora, abre mão daquilo que tanto se orgulhava e acusa Cookie, ao se prostituir. Essa que foi uma das sequências mais densas repletas de calafrios, ao lado da tortura sofrida por Cookie. Nessa sequência, realidade e onirismo se misturam. Dentro do quarto repleto de depravação moral, ela se arrepende, mas já é tarde. É perseguida, estuprada, duplamente penetrada. Em meio a este horror, visões de sonhos e fantasias se misturam a uma terrível realidade. 

Jiro Matsumo foi genial nas sequências em que quebra Cookie, Naomi e Colo (não posso citar o contexto dele, já seria spoiler demais, embora tudo isso que eu disse seja também spoiler. Mas sem esses comentários, este meu texto ficaria bastante raso), de um modo similar ao que Gen Urobuchi faz com uma de suas garotas mágicas em Mahou Shoujo Madoka Magica. 

No fim, Naomi é uma personagem tão humana e fascinante quanto Cookie. Tinha seus preconceitos, julgava Cookie por suas atitudes, mas entendeu que a dignidade da pessoa não está atrelada ao seu corpo, ao que ela veste, ou com quem ou quantos ela transa. O que ocorreu com Naomi é o que ocorre com milhares de garotas repletas de sonhos bordados em todo o mundo todos os dias. Pressionadas ao extremo, se veem obrigadas a serem defloradas para se manterem sobrevivendo. O que acontece, é que quando se dão conta, seus sonhos foram todos roubados, se afundam em depressão, recorrem aos vícios, e mesmo com dinheiro, já não veem motivos para continuarem vivas. 

Naomi e Cookie são heroínas. Mas heróis do mundo real não são agraciados com a vitória ou reconhecimento, onde a fúria e ambição acabam por dar lugar ao conformismo... ou a morte. Principalmente quando se é mulher. Viva ou morra tentando nunca caiu tão bem no contexto de uma história.

Para este mangá, Jiro Matsumoto escolheu um estilo artístico mais rabiscado, mas ainda que o comum para o autor, com quadros mais poluídos e sem qualquer resquício de beleza paisagística, como que retratando o psicológico daqueles personagens, que não veem beleza, não importa para onde olhem. Os contrastes entre preto e branco são absurdamente orgasmaticos. A arte está bastante similar ao que o Hiroaki Samura faz em suas histórias, onde ele usa o lápis cru sem finalização de arte para dar um ar marginal e agressivo à narrativa visual. Os personagens masculinos não possuem muita particularidade artística, mas suas personagens exalam personalidade pelo traçado, cada uma revelando um pouco de si pelo modo que são desenhadas. 

Matsumo usa uma ferramenta de roteiro bem interessante, no primeiro quadro da história vemos o personagem Colo frente a um foguete enterrado ao chão gritando pelo nome de Naomi. Esse foguete existe realmente na história e tem o papel simbólico de representar o sonho de todas aquelas pessoas. Qual? Só poderia ser um: fugir daquele lugar. Como disse, não é explicado o contexto daquela cidade tomada pelo regime militar, mas é fácil supor que estão em uma guerra e aquela cidade fora ocupada pelas forças militares de um país rival. E isso já faz anos. Para muitos daqueles personagens, como Cookie, Colo e Naomi, eles não conhecem nada fora dos limites daquela cidade, e para os demais personagens que já estão há tanto tempo sob domínio dos militares, é como se a cidade fosse um planeta por si só e o foguete representa a única forma de escaparem dessa terrível situação. No decorrer da história, vemos que Colo fantasia com este foguete e então notamos uma história paralela se desenrolar ao fundo, intercalando as tramas principais. No fim, chegamos a conclusão que há muito em comum entre o que Colo vê e o que ele fantasia na sua mente. Este é sem dúvida um dos trabalhos mais exemplares de Matsumo, que utilizou de uma caótica linguagem de narrativa visual (que poderia ser perfeitamente o storyboard para um filme delirante de  David Lynch) para contar uma história de dor, com um final duro o suficiente para que possamos ter medo de sonhar muito e esquecermo-nos das consequências. 

Obs.: As traduções nas páginas foram feitas por mim

Avaliação: ★★★★
Serialização: Manga Erotics F (Ohta Books) 
Demográfico: Não definido 
Volumes: 02 (finalizados)
Licenciado: Não

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