quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Revisitando o thriller HIDEOUT

No meio da noite, olhos famintos espreitam na escuridão. 
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Quando a Panini anunciou o lançamento de HIDEOUT, de Masasumi Kakizaki (sua série mais famosa é Green Blood, que está sendo lançada pela editora JBC), para mim já foi imediatamente um título descartado. Eu já tinha lido a história, e apesar da arte deslumbrante do autor e da sua ótima estrutura de quadrinização e layout, assim como o ritmo sequencial e a narrativa em si serem conduzidas sem perder o folêgo, ela simplesmente não me cativou ao ponto de querer colecionar.

Ao menos era o que eu pensava, porém, tenho o péssimo defeito de ser uma consumista impulsiva. Então num belo dia, parada em frente a uma banca, sem nada que despertasse meu interesse, avistei HIDEOUT, em um formato físico altamente sedutor, me chamando com os olhos. O flerte começou com olhares incisivos seguido do contato físico e as caricias. Eu estava hesitante, mas não pude resistir ao charme do formato, belo acabamento e a beleza daquela arte. Me deixei levar. Quero dizer, HIDEOUT foi levado da banca para a minha estante. E já que gastei, resolvi ler novamente. Vai que... né!? Muitas vezes traduções ruins ou equivocadas nos fazem ter uma péssima impressão sobre um autor ou história. 

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Kirishima Seiichi é um mangaká falido e medíocre, que tenta salvar seu casamento com uma viagem exótica para uma ilha. Só ele e sua esposa. Assim é o que parece, mas com a progressão da história, vemos o ensolarado cenário ser circundado por manchas pretas que vão tomando as bordas do mangá até obscurecer por completo todo o seu conteúdo. Seiichi começa uma alucinante perseguição à sua esposa em meio a uma chuva torrencial e uma floresta assustadora completamente encharcada pelas trevas em um jogo de acusações e ofensas mutuas. Ao alcançarem uma caverna visivelmente ameaçadora e ao adentrarem-na, se deparam com monstros asquerosos e assustadores.

Lentamente temos acesso às memórias de Seiichi através de flash sideways, intercalando pontos críticos da narrativa principal com uma subtrama que vai se formando no passado, até que ambas chegam ao seus clímax, revelando os motivos e as consequências. É muito bacana essa interjeição criada pelo autor, sem perder o ritmo sequencial, ampliando o suspense. Se por um lado é obvio tudo o que está rolando, por outro não deixa de ser surpreendente ver tudo se formando. Nisso, Seiichi vai se tornando cada vez mais obscuro e desequilibrado, como se a sanidade estivesse a ponto de se tornar irreversivelmente inalcançável a qualquer momento.

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O que não se podia contar é que esses monstros fossem tão humanos quanto eles. Na verdade, HIDEOUT sob a camada de um thriller alucinado de terror bem na moda americana, pretende – de forma bastante obvia até – contar uma metáfora existencial sobre um tipo de relação bastante corriqueira na sociedade. Quando Seiichi revela seu plano diabólico a nós, um par de olhos arregalados e sem pálpebras se abrem na escuridão em uma estonteante página dupla; em um timig perfeito. Fica evidente a partir de então um exercício de metalinguagem que permeará a narrativa até o final. Seiichi é o próprio monstro que mantém a si mesmo em um cativeiro, se enganando e criando ilusões, assim como buscando, um ideal de família. 

Seiichi está preso em uma relação falida e desajustada, procurando no outro, seja na esposa ou na figura do filho, que neste instante se transforma numa promessa utópica de união e sustentação de um núcleo rachado, um sentido para a sua vida. Sem perceber, está condenado para sempre a um quarto sem chave ou portas ou janelas. Pois, aqueles que trilham uma jornada e são incapazes de aprender qualquer coisa durante o caminho, vive um ciclo infinito de repetições. 

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Essa é a jornada de Seiichi. É a sua história. Mas, em um enredo que humaniza tanto o seu protagonista, é lamentável que se mantenha em um nível tão bidimensional quando se trata de construir sua personagem feminina principal. A história, até então dramaticamente humana, se torna anticlimaticamente maniqueísta, já que seu autor Kakizaki Masasumi pretende estruturar seu protagonista no maniqueísmo de sua esposa. O que é um insulto, porque soa quase como se fosse uma justificativa para o caráter deturpado de Seiichi, e isto é imperdoável para o que o autor pretendeu entregar com estra trama. Seria interessante que, uma vez que acompanhamos tudo pela visão subjetiva de Seiichi, que essa construção da esposa fosse apenas fruto de sua mentalidade instável, pegando como respaldo o fato de nossas mentes criarem uma imagem do outro de acordo com nossos próprios julgamentos. No entanto, quando vemos o modo de agir da esposa em tempo real, não dá pra negar que aquilo é exatamente o que o autor quis passar.

Oras, é incoerente que a esposa, a despeito de ser uma perua egocêntrica e fútil, que sempre demonstrou carinho e afeto ao filho, seja exatamente o tipo de mãe que se desenha à frente. Seu caráter pode ser o pior, mas faltou uma ponte que ligasse uma personagem na outra: a esposa de antes da tragédia e após. O que há é um vácuo incompreensível. Bem, o terror é classicamente um dos gêneros mais sexistas que existem e a sua moral é conservadora, mas é importante que se mantenha coerente o núcleo temático. 

E apesar das muitas qualidades, HIDEOUT se torna genérico e completamente esquecível é paradoxalmente na sua narrativa, tanto visual quanto escrita. Não que a arte em si seja genérica ou esquecível, pelo contrário, mas na elaboração do conceito. As criaturas das sombras apenas sugestionam, mas não são repugnantes ou ameaçadoras como se devia supor. Isso se dá pelo efeito visual. São clean demais e são mais pessoas do que exatamente alguém que se tornou inumano em aparência – muito porque a estética do autor prima por uma caracterização realista, e à própria desconstrução da figura do monstro. Só que fica esquizofrênico por ele não fazer essas partes funcionarem harmonicamente. Não é assim que terror funciona. Não funciona, pois não é atmosférico. Antes manter as criaturas parcialmente fora do campo de visão, cria-se um efeito muito mais instigante. Se fosse um filme, poderia se salvar pelos efeitos especiais, mas em quadrinhos, a imagem é estática, por mais que se tente passar um sentido de movimento. Nesse sentido, HIDEOUT não é melhor nem que o mais mediano dos B americanos. E como thriller, a catarse do protagonista é totalmente falha pelo motivos que relatei, embora funcione parcialmente. Note que um Perfect Blue consegue trabalhar todas essas frentes sem que as partes contrastantes da construção criem atritos entre si. O resultado final é uma gema, se consagrando tanto como thriller, suspense, horror e drama. 

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Mas o que há de provocante e charmoso em relação a este mangá, fora a sua arte, é a forma como a editora Panini o vendeu. Ao invés de uma sinopse, frases instigantes e convidativas espalhadas pela contracapa, no maior estilo found footage. Inclusive a editora também acertou nas orelhas com dizeres do protagonista, mantendo a coerência e criando um ambiente atmosférico com o próprio formato do enredo, que é embalado como se fosse mesmo um found footage. . 

Ficou show! É algo atrevidamente convidativo quando se vê na banca. A edição está ótima, a tradução e edição não despontam com equívocos perceptíveis e proporcionam um ritmo de leitura relaxante, pois você se esquece do resto e se atém exclusivamente à história. E com isso, quero dizer que o papel também está bom, sem transparência (offset de boa gramatura,  formato padrão 13,5 x 20 cm, capa cartonada com verniz, que dão um efeito elegante). Traz ainda as páginas coloridas do original. Só tenho uma pequena crítica por terem mantido os títulos dos capítulos em inglês, mas entendo que quiseram manter uma rima com o título e projeção original. Ou seja, realmente vale o preço, considerando que ainda não se coloca valor sobre a história (até se coloca, mas depende muito da história e do autor, e é sempre pra mais).

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resenha, review, análise, crítica, mangá HIDEOUT de Masasumi Kakizaki, editora Panini