Saudações do Crítico Nippon!
Seguindo a onda de posts sobre as obras do autor Hiroaki Samura da Beta Roberta, resolvi falar daquela que talvez seja a mais famosa dele: Blade of the Immortal (no Brasil: “Blade a lâmina do imortal”). Por aqui, infelizmente alcançamos a versão japonesa e o mangá acabou parando de ser lançado e não voltou mais. Adaptado para anime em 2008, com apenas 13 episódios (não chega nem na metade do original), faz jus aos quadrinhos: mantém as pausas para os personagens exporem suas filosofias, corta o que poderia ser considerado “filler”, ao mesmo tempo em que traz ótimas seqüências de ação e uma excelente trilha sonora. Por outro lado, o intenso uso de cores vivas tornando tudo “limpo” demais e o próprio conceito de “fillers” que é cortado, acaba tirando bastante da identidade do mangá. Os personagens e seu ambiente tem que ser sujos e as pequenas dificuldades de vida dos dias árduos daqueles indivíduos, servem para nos fazer mergulhar naquele universo (os tais “fillers” cortados). E a arte rabiscada de Samura com apenas lápis preto - raramente finalizados com nanquim - e, às vezes, apenas rascunhos, é a sua maior virtude e charme, impossível de se passar para a obra animada. Dito isso, por melhor que seja a animação, passamos o tempo inteiro encarando-os como desenhos de computador. Já com o mangá, acreditamos o tempo todo que cada um daqueles indivíduos realmente existiu e que estamos tendo o privilégio de acompanhar o que seria quase uma fotonovela da época.
A trama de Blade gira em torno de Manji e Rin, esta última que teve os pais assassinados por uma gangue misteriosa liderada por tal de Anotsu, e dois anos depois parte em uma jornada em busca de vingança. Manji, por sua vez, é um espadachim desamparado que já matou mais de 100 pessoas. Após ter sua irmã morta, Manji decidi “compensar” seus assassinatos frios matando mil malfeitores em troca. É aí que Rin e Manji se completam e a garota o contrata como seu guarda-costas em sua busca pelos assassinos de seus pais. A premissa inicial já mostra uma falha de caráter e imaturidade da parte de ambos, mas isso só abre espaço para o crescimento dos dois ao longo da série.
Contando com um protagonista com a habilidade de regeneração já usada em personagens de mangás lançados no Brasil como Chonchu (sim, também a habilidade do Wolverine), o autor aproveita isso para banhar os quadros com o sangue de Manji inúmeras vezes. E ainda que isso possa ser considerado um ponto negativo por faltar tensão, temos a Rin que depende da proteção dele e nos preocupamos com ambos (afinal, sempre há o risco de Manji perder a cabeça, como ele mesmo diz). Nesse sentido, é interessante notar que por mais que sua imortalidade seja uma garantia, na maioria das lutas é ele quem sofre os primeiros ferimentos fatais no tronco. Assim, mesmo sendo o herói imortal da trama, certamente está longe de ser o mais habilidoso.
Uma das inúmeras coisas que chama atenção em Blade of the Immortal são os diálogos saídos diretamente do século 21 em uma época muito distante (por volta do século 16). Repletos de gírias e maneirismos, soam todos como jovens adultos “criados por gentis macacos”, como menciona certo personagem (“Não enche o saco, mané!”, “Seu cuzão!”...). Outro detalhe que é aparentemente disfarçado pelo traço realista, são as características clássicas dos shonens costumeiros: a Itto-ryu faz o papel da gangue de vilões bizarros e heterogêneos que precisam ser vencidos, o penteado espetado do Magatsu, Manji treinando Rin em certa altura da trama, etc. Inicialmente esses detalhes são um pouco mais escancarados, incluindo a marcha lenta da trama inicial em situações repetitivas de “mocinho salvando a mocinha”, seja com Manji e irmã ou Manji e Rin. Porém conforme a história se desenvolve, percebemos estar lidando com algo muito superior, envolvendo questões políticas da época e reviravoltas surpreendentes.
Afinal, de “shonen costumeiro”, Blade está muito longe. O autor tenta fazer o universo mais realista possível, colocando personagens que dormem em cabanas abandonadas ao relento, pescam e caçam a própria comida, mantém longas conversas durante as refeições, levam suas armas brancas para polimento. Assim como suas viagens através de estradas defeituosas de terra, sendo retratadas sempre de maneira difícil, onde sentimos frio, cansaço, fome, à mercê de assaltos e emboscadas, e todo tipo de desconforto. E claro, algo muito comum para a época e quase nunca é explorado nos animes, a prostituição. A maioria das mulheres deste mangá vende ou vendia seu corpo, e quando a situação requer, é sempre uma das primeiras estratégias recorridas por elas (vide a própria protagonista Rin, de 16 anos, tentando convencer Manji logo no início).
Desta forma, se todos estes itens ajudam na caracterização da época e de sua rotina, o traço de Samura só contribui para este feito. E sua habilidade torna quase todos os ambientes ao ar livre poeirentos, sujos e secos, mesmo assim não o impede de desenhar retas perfeitas da arquitetura japonesa e dos ambientes internos. Também desenhando sempre personagens com rostos e corpos surpreendentemente humanos e diferentes entre si. Incrível notar diversas vezes como, sem exagerar nas linhas ou sombras, com poucos traços já temos uma mulher simples, porém inquestionavelmente bela. Assim mesmo, a maioria dos indivíduos está sempre com marcas na face, seja de veias, suor, saliva ou nariz escorrendo, cicatrizes e linhas de idade... Com o estilo rabiscado de Samura deixando tudo ainda mais cru e selvagem.
Outro diferencial de Blade reside no desprezo total de praticamente todos os personagens pelo conceito do “samurai” (para os que não sabem, significa “servir”), no caso, o “saber morrer”, como descreve um deles. O bushido é ridicularizado tanto por Manji quanto pelo inimigo Anotsu. Aliás, é interessante notar o quanto são semelhantes nesse ponto, e com personalidades completamente diferentes. Manji é um bicho do mato, irônico, convencido, impulsivo e nada gentil. Já o líder da Itto-ryu é calmo e sereno, com a expressão do rosto praticamente sempre igual. Inicialmente podemos pensar que a única qualidade de Manji é seu corpo imortal, porém aos poucos ele se mostra muito além disso. Seja com alguns discursos que este dá a um velho amigo pintor de Rin, ou sua percepção de que há algo estranho com os membros da Mugai-ryu simplesmente por detalhes no ambiente, nos mostram que não é só de força bruta que ele sobreviveu. E o mesmo pode ser dito de Anotsu, que visto inicialmente como um vilão cruel e distante, os volumes focados nele são surpreendentes, e mostram todo raciocínio por trás de suas ambições. “Se o simples ato de morrer mantivesse a dignidade de um ser, até um macaco poderia ser um samurai”, diz ele. Aí já percebemos como é um visionário desde jovem, culminando com este já adulto e a revelação de colocar um membro da Itto-ryu em cada nível do exército japonês, para controlar todo o poder bélico.
Demonstrando ainda uma humildade em reconhecer pessoas igualmente fortes (algo que não estamos acostumados em outras obras), Anotsu declara diversas vezes ao longo do mangá pessoas tão habilidosas quanto ele. Não é porque é o “vilão” que seja insuperável, e o mesmo serve para o “herói” Manji. Coadjuvantes completamente encontrados ao acaso demonstram serem páreos duros para ambos, diferentes dos shonens normais, onde somente os capangas do vilão e os aliados do mocinho parecem lutar direito. Outro ponto em comum dos dois é perceber que em determinado momento, ambos mencionam “os olhos” de alguém, metaforicamente falando. Manji nota isso na lutadora Makie, quando esta assume uma postura completamente diferente na luta; enquanto Anotsu diz que “os olhos” da Rin estão voltados em uma direção diferente de seus pais. Não é a toa que a garota parece tão conflitante em enfrentar de uma vez por todas o assassino de seus pais, tendo o encontrado duas vezes e falhado psicologicamente em ambas.
Explorando cada vez mais os personagens secundários, abrindo bastante espaço para outros dois núcleos, além de Manji e Rin: os membros da Itto-ryu e membros da Mugai-ryu. Tornando-se personagens extremamente complexos e tridimensionais, temos ainda diversos flashbacks chocantes e histórias comoventes. Desde os Itto-ryus Magatsu e sua camaradagem e relacionamento com uma prostituta, até sua busca por vingança; passando pelo filho de outro membro da Itto-ryu, o garoto Renzo, em uma interessante brincadeira que coloca a Rin como o papel de assassina do pai do garoto, fazendo-a trocar de posição; ou mesmo a fascinante Makie, que até então é dita como a personagem mais forte. Com seu olhar que parece sempre mais constrangido e desconfortável do que ameaçador, percebemos que sua força física contrasta com sua fraqueza emocional.
E finalmente chegando aos membros da Mugai-ryu: passando pelo cruel e sádico Shira, com seus gostos maníacos espelhados em sua espada serrote, que serve não para matar, mas para causa dor; e pela dupla Hyakurin e Shirinji, que nos conquistam por vários volumes em sua dinâmica de casal não-declarado, e nos emocionando em seu trágico destino. Com várias seqüências belíssimas (e tristes), como quando Hyakurin mata um torturador no meio da rua, emanando uma libertação quase poética, e também o significado por trás de seu corte de cabelo final, que vinha sendo mencionado há vários volumes sem que percebêssemos onde iria chegar (e mais tarde, com a introdução de novos personagens como Doua e Isaku, soam como meros substitutos para estes dois); e por último, o sempre quieto e metódico, Giyti. Sem nunca sorrir e com óculos escuros que fecham ainda mais sua expressão, demonstra uma habilidade incrível em todas as suas lutas, sem perder a compostura. Além de uma inteligência do mesmo nível, como por exemplo, ao descobrir o cativeiro de uma amiga pelo cheiro dela no corpo de seu seqüestrador.
Infelizmente, o mangá se vende à ação desenfreada em alguns momentos. Não momentos, volumes. Após a traição sofrida pela Itto-ryu e a separação de Anotsu, Rin e Manji, voltamos a estaca zero de “mocinho salvando a mocinha”, em um seqüestro ridículo que ocupa quase três volumes inteiros. Entretanto, por melhor que sejam os confrontos na “saga” anterior a esse seqüestro babaca, onde todos tinham objetivos e problemas bem definidos, a maioria deles eram ex-adversários querendo vingança por membros amputados. O lado bom é que ajuda naquela imprevisibilidade do mundo real, de que qualquer um pode ser forte, não só o grupo de pessoas que acompanhamos. O lado ruim é que após se dar conta de estarmos vendo 3 lutas simultâneas (ou mais!), todas elas por mero rancor, é impossível não pensar em uma certa preguiça mental para gerar lutas. Felizmente a trama é suficientemente dinâmica para disfarçar um pouco e nos envolver.
E por incrível que pareça, alguns dos melhores momentos e climas de Blade of the Immortal, surgem justamente quando os personagens não estão lutando. Isso é provado na última “saga” publicada no Brasil, envolvendo o experimento de passar a imortalidade de Manji adiante. E finalmente o autor encontra um meio de colocar o indestrutível protagonista em perigo constante: o cativeiro. E justamente por isso a ação diminui (porém, aumentará gradativamente com o passar do tempo), e o clima torna-se cada vez mais sombrio, em uma direção de roteiro impecável por parte de Samura, chegando a momentos que podem ser descritos como o puro aterrorizante.
A determinação e diário mostrados pelo dr. Blando, criam um personagem inquestionavelmente inteligente, ao mesmo tempo em que aos poucos percebemos sua personalidade destrutiva que o fez ter sido condenado à morte. E a evolução no processo criativo dos médicos e suas experiências clínicas ficam mais fascinantes – e sangrentas - a cada volume, ricas em detalhes, porém de fácil compreensão para o leitor leigo. Trazendo ainda Kagimura Habaki como uma figura de peso em todas suas aparições, é um vilão digno de ser temido. Por ser um homem de poucas palavras, ao ouvirmos seu monólogo motivacional para Blando quando este começa a falhar sucessivamente (mesmo que estejamos cientes de suas reais intenções), nos mostram um verdadeiro estrategista com uma lábia realmente perigosa (e uma habilidade com a espada idem). Melhor ainda, é acompanhar simultaneamente os esforços de Rin para invadir o Castelo de Edo à procura de seu guarda-costas. Passando por vários processos até começar a alcançar os primeiros resultados, de observação e espera, mapeamento, e improvisações de tirar o fôlego. Afinal, nós, assim como ela, não fazemos idéia do que poderá surgir uma vez dentro de uma fortaleza do governo em um mangá extremamente cruel como este. São volumes de pura tensão, imprevisibilidade e, em certos momentos, por que não, terror.
Acertando ainda em fazer Manji e Rin terem uma relação repleta de metamorfoses, e não caindo no óbvio do romance. Podemos supor diversos significados que Manji tem para Rin, como por exemplo, seu guarda-costas, figura paterna, treinador, irmão, amigo e, sim, amante.
Colocando ainda diversas informações sempre interessantes da época de forma orgânica, ouvimos coisas como “tomei 3 copos de óleo de gergelim para proteger o estômago do veneno!”; bem como sintomas do tétano e o modo como preparavam as espadas especificamente para transmitir essa doença, colocando-as à noite em esterco; entre diversas outras.
Contando com quadros sempre largos, que facilitam a compreensão do que está acontecendo, Samura ainda é excelente em seqüências de ação que esbanjam movimento e rapidez. Embora sempre dê um jeito de nos proporcionar visões de câmera interessantes, seja com ela no canto da página, ou como os olhos embaçados de determinada personagem.
Em suma, Blade nos mostra sempre personagens que agem e lutam como verdadeiros animais. Lá, o “ser homem” é lutar usando todos os recursos possíveis até não restar mais partes do corpo que o sustentem de pé - literalmente. Dito isso, são inúmeras as batalhas em que os adversários continuam o confronto mesmo perdendo braços, pernas e até envenenados por inúmeras flechas. Situações em que chegam a amputar os próprios membros, como por exemplo, Manji prendendo seu braço em cima de uma árvore para que o inimigo se confunda no rastro de sangue. Não há lugar para lutas “limpas” e “justas”, o importante é o sobreviver naquele mundo a qualquer custo. Abusando de criaturas megalomaníacas que beiram a psicopatia, a história é povoada por crápulas que usam seus discursos só para disfarçar seus interesses e/ou gostos mórbidos e prazer pelo sofrimento. Dessa forma, não há maiores diferenças entre o autoritário Habaki, ou aquele que dá as chicotadas em Rin, ou Shira e seu serrote, ou até mesmo o louco Blando. E é justamente por sabermos que esses gostos mórbidos podem surgir de qualquer classe social e status, que torna os perigos dessa história realmente urgentes e desesperadores, bem como no mundo real. Hiroaki Samura nos deixa receosos do início ao fim, sempre duvidando do sucesso dos heróis, o que é uma incrível conquista quando temos um protagonista imortal. Agora só resta torcer para que um dia as bancas do Brasil voltem a lançar o espadachim mais punk de todos.
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@PedroSEkman
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