“... Pensando bem, desde o começo, ela tinha a sensação de que as
coisas não estavam muito bem.” – Capítulo 01: Looking Back At Home.
Sinopse: Nicola A. Bradherley, o 4º homem mais rico da
Grã-Bretanha e um membro da Câmara dos Lordes, é visto por muitos como um
filantropo. A cada ano, ele adota uma série de meninas afortunadas de orfanatos
em todo o país em sua família, enviando o seu cocheiro de orfanado em orfanato para
recolhê-las. Algumas dessas meninas ainda têm sorte e viram atrizes na famosa
companhia de Ópera (um teatral musical)
dos Bradherley (o que na verdade, é o
sonho de todas elas). No entanto, nem todas são tão afortunadas. A grande
maioria acaba tendo um destino realmente muito...MUITO infeliz. Vejam só, o Lorde Bradherley tem um
outro uso para todas as garotas que não chegam ao palco principal. Algo terrível,
desumano... E que tem o apoio do governo.
***
Bradherley no Basha (em
tradução livre, A Carruagem dos Bradherley) é mais uma daquelas séries
intermediarias de Hiroaki Samura, se situando entre a comédia romântica Ohikkoshi ou aquele épico de espadas e sandálias,
a “desconstrução” samurai chamada Blade:A Lâmina do Imortal (Blade of the Immortal). Entre os longevos hiatos de
sua obra máxima, Blade, Samura publicou diversas obras curtas, a grande maioria
é material fetichista que invariavelmente acaba flertando com o guro, como o já
comentado aqui; Hitodenasi no Koi.
Enquanto nem todas as suas séries apele para o ero-guro, a grande maioria
possui aspectos misóginos, que é o grande fetiche de Samura. Mesmo aquelas em
que Samura optou por um roteiro, ao invés de puro fetichismo masturbativo. É o caso de Emerald e a série tratada aqui... Bradherley no Basha.
O curioso é que Bradherley no Basha inicialmente era pra ser
um material puramente erótico [como comentado pelo próprio Samura], mas as
cenas de sexo foram diminuindo e diminuindo após os primeiros capítulos. O que
explica a quebra de narrativa, onde a segunda parte do mangá possui um roteiro
muito mais denso e com um engajamento politico notável. Ou ao menos, foi uma
tentativa de Samura, onde o próprio acabou claramente se perdendo na narrativa
[como ele mesmo reconhece: “Comecei querendo fazer um mangá erótico,
mas as cenas de sexo foram diminuindo no caminho, e no fim eu não sabia o que
queria escrever”]. O que acaba refletindo na qualidade final da obra.
Mesmo o último capítulo, sofre com a falta de uma catarse para fechar a
história satisfatoriamente.
Bradherley no Basha é Anne of Green Gables encontra Marquês de Sade. Explico, Anne
de Green Gables é um clássico canadense, onde Anne, uma garotinha órfã sardenta
com seus longos cabelos vermelhos [e ela odeia essa aparência/Detalhe
irrelevante de fangirl do livro], acaba sendo adotada por engano. Como o
contato foi feito através de um intermediário, a garota acaba indo por engano,
mas ao se deparar com a tagarelice e a espontaneidade de Anne, o casal decide ficar
com a garota. Como podem notar, há sutilmente uma certa similaridade entre os plots. As garotinhas de Bradherley
no Basha são órfãs sonhadoras, que fazem o trajeto do orfanado ao suposto
castelo de Bradherley com certa insegurança, olhando descritivamente o ambiente
em volta [assim como Anne o fez] e imersas em pensamentos, mas com a esperança
de quê o que encontrará pela frente, é bem melhor do que está ficando para
trás. “Apesar de falar pouco, a garota estava na verdade ocupada sonhando com
outras coisas” – Trecho primeiro capítulo, Looking Back At Home. Há
muito detalhes presentes nessa série, que fora inspirado diretamente em Anne de
Green Gables, mas o mais notável são os nomes Mateus, Marilla, Ruby, Diana,
Gables e Ingleside.
“Comecei a escrever
este mangá após ficar fissurado pelos livros da Anne há três anos, e disse ao
meu editor que eu faria uma série de mangá sobre alguém como a ruiva Anne. Mas
como podem ver, não segui a risca.” – Hiroaki Samura
É... realmente é bem aparente que o que Samura imaginou: A
pobre Anne inserida no universo ficcional do Marquês de Sade. Um universo misógino
e sádico. Ou ao menos, esse foi o aspecto no qual Samura se viu influenciado,
direto ou indiretamente, embora o universo de Sade é muito mais do que puro
fetichismo. Segundo Sade, durante o período que esteve recluso, nenhum Deus,
moralidade, afeição e esperança deveriam existir – apenas a extinção humana num
delírio erótico terminal. O homicídio, a sodomia, o incesto etc., seriam os
meios capazes para a obtenção desse fim. Erroneamente, considera-se que o sustentáculo
da obra sadeana seja a perversão, porém, o ponto principal é o ateísmo
intelectual para a qual segundo Sade, o bem e o mal não são aspectos
antagônicos, mas sim essenciais para a manutenção do equilíbrio. Podemos chamar
Sade de ateu exatamente como aquele que nega não a existência de Deus, mas como
quem nega sua moral. Ou melhor, a moral criada pela religião que por sua vez é
uma criação humana. Marquês fala de política, de moral, ética, descrevendo
assim aquilo que se tentava encobrir, mas que é a raiz dos poderes, a tenebrosa
natureza humana.
Em seu melhor romance, Justine
ou os Infortúnios da Virtude [que tem uma adaptação em forma de conto no
mangá de Senno Knife; “Sade” – Publico no Brasil pela Conrad], Sade expõe com
vigor toda a sua filosofia revelando suas ideias sobre a política, a igreja, o
amor, a Providência Divina e o sexo aos olhos do materialismo a partir dos mais
bizarros e infelizes desencontros na vida de uma jovem devota que abre mão de
seguir sua irmã ao tornar-se órfã de pai e mãe. Julieta aventurou-se pelos
caminhos da má conduta ao prazer de ser livre com o intuito de ser uma grande
dama portadora de grande riqueza. Conseguiu, mesmo que para isto tenha se
utilizado de subterfúgios, tais como: crime, roubo, mentira, prostituição entre
outros modos de vida descritos nas obras de Marquês de Sade. Enquanto isto,
Justine, ao contrário de Julieta, dotada das mais belas virtudes, cairia nas
mais ardis situações que colocariam à prova sua crença na Providência e na
bondade dos homens. Em momento algum abandonou o caminho do bem. Duas irmãs
separadas pela vida e pelo temperamento encontram-se anos mais tarde, uma rica
e a outra sendo condenada ao cadafalso.
Em Bradherley no Basha, vemos puras e recatadas garotas sendo
levadas na carruagem dos sonhos, onde acabam se deparando com um terrível pesadelo.
Toda virtuosidade fora condenada com maltratos físicos, abusos sexuais e
desespero. Mesmo a morte, lhes era negada. Paradoxalmente, a ironia e o cinismo
também é um dos alicerces da obra sadiana, onde ser mais esperto não significa
se dar bem no final. Vejo a ironia e o cinismo como o clímax do sadismo. É como
se você pudesse sentir um prazer sem culpa, afinal, a pessoa fez por merecer
aquele desfecho. No capítulo The Bond Of, duas amigas de internato estão
prestes a se separarem, onde uma teve a “sorte” de ser adotada pelos Bradherley,
e a outra deixada para trás. Obstinada, esta, numa trama maquiavélica atrai a
amiga para a morte, ficando com sua vaga. O conto para ai, com a garota
seguindo no lugar da amiga na carruagem dos Bradherley, desaparecendo no horizonte,
imersa em um objeto que talvez nunca se realize. Samura não mostra o que
acontece com ela, mas fica claro pelo tom sadicamente irônico da narrativa.
O interessante em Bradherley no Basha, é que a trama se
situa num período de tempo – meados do século 20, por volta de 1910, na Europa
dos influentes aristocratas – que torna o contexto extremamente verossímil. E Samura percebeu que poderia explorar bem
mais a história, atenuando o erotismo e partindo para uma narrativa então
conhecida como filosofia sadiana. Diálogos que falam sobre o governo, a moral,
relacionamentos familiares, troca de favores, mentira, crime, instinto animal...
mas, claro, sem o mesmo primor narrativo de Sade ou mesmo seu discípulo fiel, Suehiro Maruo.
A esta altura, não cabe mais fazer segredo sobre o enredo.
Eu preciso seguir com o meu vômito narrativo. A trama de Bradherley no Basha gira
em torno do festival de Páscoa [o chamando “Projeto 1-14”] que visa saciar os
desejos violentos e sexuais dos condenados à prisão perpétua. Uma ideia apoiada
pelo governo, depois de uma grande revolta massiva de presidiários, onde
garotas acima dos 13 anos [que são chamadas de cordeiros] são recolhidas uma
vez por ano nos orfanatos que mantêm um acordo [em troca de grana] com o
projeto, e jogadas nas selas onde são submetidas a várias sessões de estupro
coletivo [em certo capítulo, uma garotinha é enfiada em uma sela com 68 condenados!].
Eles podem torturar as garotas da forma que quiserem, desde que não a matem.
Mas, ainda frágeis, sendo vítimas de atos tão violentos, as garotas mal
conseguem resistir a uma semana de abusos físicos consecutivos.
A narrativa de Samura não prima por uma técnica exemplar,
mas brilha nos detalhes. Temos uma narrativa que mostra ambos os lados, com
diversos pontos de vista que vai do da vítima, passando pelo detento, até
chegar nas peças que fazem aquela engrenagem funcionar. Não é nada de mais para
quem já está imerso nesse universo, mas para pobres almas e corações frágeis, tudo que é retratado nessa
história será chocante, nojento, repulsivo ou até mesmo poderá te tirar o sono,
dependendo do seu nível de sensibilidade [“Essa é uma história muito doente e
perturbadora. Houve algumas cenas que eu não aguentei.” Comentário de um leitor].
Chocante? Talvez. Mas temos exemplos do mesmo conceito na
História Mundial. A nobreza sempre gostou de entretenimento violento à custa de
seus súditos. Durante o período romano, havia os gladiadores, período medieval,
o bear baiting [luta entre um urso e um Bulldog] e as rinhas de cães. Em 1600 houve
o caso da Condessa Elizabeth Bathory,
que fora condenada à solidão, em uma prisão perpetua em seu castelo, onde foi
praticamente entijolada viva (!).
Fora outros adventos similares, o que mais se destaca realmente são as “Comfor twomen” [mulheres de alívio], um eufemismo utilizado para designar
mulheres forçadas à prostituição e escravidão sexual nos bordéis militares
japoneses durante a II Guerra Mundial. O
objetivo em facilitar esse projeto, era pensando na prevenção de crimes de
estupro cometidos pelos integrantes do exército japonês imperial e evitando
assim o aumento da hostilidade entre as pessoas em áreas ocupadas.
O capítulo quatro, A Family Shot, é um dos melhores [e
talvez, o melhor capítulo do mangá] e representa a virada definitiva na narrativa,
deixando de lado o poético, melancólico e trágico ponto de vista das garotas
órfãs – que na verdade só explorou o lado erótico no primeiro capítulo, com os
dois seguintes se focando no drama das garotas. Em A Family Shot, vemos a trama
retratada pelo ponto de vista dos presidiários em uma múltipla narrativa. Se
focando no “sistema” politico, onde um jornalista preso por saber demais, espalha
algumas teorias sobre os Bradherley e o Projeto de Páscoa, mas acaba sendo
silenciado. É um retrato obvio das engrenagens do sistema politico, capturado
de forma esplendida por Samura em diálogos que predominam os cochichos, o boca a
boca, a impunidade. Em outro ponto da mesma trama, os presidiários comentam sobre
sua rotina, suas famílias e o ato libidinoso com os “cordeiros” que lhe são
oferecidos no Festival de Páscoa.
“Caramba. Quando chega a época, todos eles... realmente não há melhor
maneira de deixa-los comportados” – Como era de se esperar, todos ficam
ansiosos, e se há algum que não concorda, ele se cala e observa a vítima
indefesa completamente acuada. A moralidade do que acontece é questionada, mas
nunca afrontada. Em uma cena impressionante, um dos presidiários acaba ficando
frente a frente com sua filha, transformada em cordeiro para saciar a fome dos “lobos”.
As situações se invertem. O sistema falhou e o homem que seguia indiferente a
tudo, fazendo parte do jogo, virou a vítima. Seria magistral, se o desfecho
fosse mais sínico, debochado, sádico e menos dramático.
Temos aqui então, a base principal para a história de
Bradherley no Basha, que sim, se passa no período da Primeira Guerra Mundial,
com o continente Europeu sendo palco de grandes conflitos. Conflitos estes que
dão o tom para o desfecho da história, que acaba sendo bem ameno. Bradherley no
Basha tem um conceito interessante e não apela para o erotismo descaradamente,
apesar de ter sido a intenção inicial de Samura. Mesmo a primeira história, que
tem uma pegada mais fetichista, está longe do primor gráfico que Samura já
havia explorado em obras anteriores. Os ângulos e enquadramentos só mostram o
necessário e não sei o que o Samura pretendia, mas não me parece nada erótico.
A arte como já é típico de Samura, é muito bem detalhada e com seu caraterístico
traçado a lápis, sem finalização e com algumas aplicações em nanquim que gera
um conflito visual bacana entre o cinza rascunhado e o negro. A proporções
estão são ótimas, ele sabe muito bem usar um espaço dentro de um quadro,
alternando entre contornos suaves e grossos. A narrativa tem uns momentos de
silêncio que são absolutos. Diálogos entrecortados, ora por um ambiente morto, ora
por puro silêncio. É como se desse pra você sentir a gravidade da situação.
Ainda assim, mesmo sua representação artística aqui, não
está em seu melhor e a narrativa possui algumas problemas de consistência.
Poderia ser tomado como “liberdade poética” se Bradherley no Basha fosse
puramente erotismo descarado, porém com um contexto sério e plausível, há de se
questionar a conveniente falta de atitude de alguns diante o Festival de
Pascoa, mesmo sendo evidente para qualquer um com dois neurônios que os números
não batiam. De cada 10 garotas levadas do orfanato, apenas uma era realmente
adotada. Eram muitas pessoas por dentro do que estava acontecendo, para que
ficasse tanto tempo encoberto e sem que ninguém do lado de fora tomasse uma
atitude, mesmo o Projeto tendo o aval do governo. Fora que, claro, era um
projeto complexo demais, diante de alternativas tão mais simples. Essa
inconsistência ainda é evidenciada por Samura no último capítulo, ao retratar o
chefe da família Bradherley como alguém de que só fazia aquilo porque era
necessário, mas que no fundo sofria por isso. O que eu posso dizer é “por
favor, né Samura, não precisa subestimar a inteligência do seu leitor” –
Assim, Bradherley no Basha é um exercício até interessante da filosofia sadeana
[em um aspecto mais politico e menos polida], mas que acaba se perdendo na
indecisão do seu autor sobre a mensagem final.
Nota: 06/10
Autor: Hiroaki Samura
Revista Manga Erotics F (editora Ohta Shuppan)
Ano: 2005
Volumes: 01 (finalizado)
Demografia: Seinen