São poucos os diretores de animações para TV, que conseguem deixar gravados seus nomes na cabeça do público médio, e Kenji Nakamura vem se despontando como um deles. Embora jovem se comparado com os diretores mais tarimbados que ainda estão na ativa, sua assinatura estética já está formada. A maioria das séries com que ele se envolveu indiretamente antes de estrear como diretor [no bloco de TV noitaminA, com Mononoke, uma das histórias da ótima série, Ayakashi Japanese Classic Horror, e que posteriormente ganharia um anime próprio] possuem um forte senso estético; Big O, Kemonozume, Serial Experiments Lain, Karas, entre outros. Aliás, o próprio Karas [uma série de OVA’s em comemoração ao aniversário da Tatsunoko productions] tem muito do feeling presente em [C] The Money of Soul and PossibilityControl, também produzido por uma Tatsunoko incapaz de sustentar o apelo estético da série e o primeiro fracasso de críticas do Nakamura.
Mononoke, Kuuchuu Buranko (única que não saiu da cabeça de Nakamura, sendo inspirada no livro homônimo de Hideo Okuda), [C] e agora, Tsuritama, são todas as séries do diretor até então; São histórias bem originais, inventivas, com cores vibrantes, uma textura incomum e muita criatividade na angulação de câmeras pra disfarçar um orçamento médio. Em Tsuritama, a forma meio artesanal com que ele fez a textura estilizada do mar, com os personagens e todos aqueles objetos que pareciam recortes, deu um efeito incrível e a mesma sensação da grandeza de um final apoteótico com uma animação acima da média. Suas cores sempre jogam com a identidade visual especifica de cada série que produz. Já [C], é o trabalho mais distinto de Nakamura, embora igualmente criativo, pela primeira vez ele dirige uma história linear, com uma paleta de cores com tons mais escuros e fora do seu habitual universo niilista [apesar da trama extremamente fantasiosa].
Enoshima Engi - Uma história vinda dos templos e santuários da ilha de Enoshima, escrita pelos monges budistas |
"Muito tempo atrás, um dragão de cinco cabeças vivia neste oceano. O violento dragão causou muito sofrimento para as pessoas. Eventualmente, uma novem negra cobriu o céu. Quando todos haviam desistido, e pensaram que o mundo iria acabar, algo aconteceu. Um raio de luz veio do céu. Uma linda princesa extra-terrestre apareceu, montando em uma nuvem roxa. A mulher sorriu, e o sorriso dela iluminou nosso mundo obscuro." - Prólogo de Tsuritama
Bem, depois desse tropeço, Nakamura voltou a investir numa trama linear, mas com aquele tom habitual que já é sua marca; muito colorido, estilizado, divertido, com o aspecto cult das animações artísticas que não costumam agradar a audiência mainstream [e até por isso, todas as suas séries até aqui vieram pelo noitaminA] e com uma característica estranheza que acaba sendo mais um charme do que qualquer outra coisa. Divertido. Intrigante. Misterioso. Com forte apelo estético em um ambiente pensadamente caricato. Uma trilha sonora adequadamente revigorante. Um agente com turbante que tem como parceiro, um pato. Um auto proclamado alienígena que é capaz de controlar a mente dos seres humanos com pistolas d'água. Personagens que passam boa parte do screenTime pescando (!).
Com um desenvolvimento que se intensifica gradualmente, Nakamura introduz questões e personagens sem permitir que saibamos inicialmente qualquer coisa sobre eles, mas sempre provocando certa curiosidade e estabelecendo uma ligação que acaba se tornando fundamental a medica que descobrimos mais do que se trata aquela trama.
Mas Tsuritama pode ser indigesto para quem curte uma experiência de audivisual mais pautada no puro entretenimento industrial [algo pra se sentir com os olhos e menos com o coração] ou roteiros mais pontuais. É em alguns momentos, novelesco, e apesar de trazer um roteiro simplérrimo, consegue ser uma história protagonizada por personagens que dialogam com o espectador. E claro, o cativam – Estes, se identificando, ou não. Grande parte do mérito de Tsuritama jaz em Yuki e seu complexo interior de lidar com questões triviais do dia-a-dia.
O que explica aquela coragem que precisamos para perguntar/pedir algo a um estranho? Aquela medo que te corrói por dentro ao se ver numa situação desconfortável, como por exemplo, oferecer seu acento dentro de um ônibus para um idoso, quando ninguém mais o fez. É o óbvio a se fazer, mas e se ele negar? E se todos começarem a olhar pra você? Como você pode dizer isso de forma que possa ser escutado, sem chamar muita atenção para si?Todos aqueles olhares em você é algo muito maldoso. Ou quando você está em um ambiente novo e precisa fazer novas amizades. Você vai se apresentar na frente da classe e decora todo um discurso, se sente confiante. Tenta prolongar o discurso e acaba dando branco, se atrapalhando completamente.
“Não significa que o meu sonho seja eu me tornar um homem
grosseiro e arrogante. No fundo, eu odeio gente assim. O que me impressiona
nesse samurai, são as suas atitudes diretas e a forma clara como se
auto-afirma, quase como um galã de TV. Comparado a ele, o que eu sou? Nem
sequer abrir a porta com determinação eu consigo. No máximo, abrir uma
frestinha pra espiar... (....)” – Jiro Taniguchi
Em seu posfácio, no mangá desenvolvido em forma de crônica; Gourmet, Jiro Taniguchi narra de forma
soberba as desventuras de um homem adulto, no caso, ele próprio, que sente
intimidado em certos locais, que não tem confiança em manter uma conversa em pé
de igualdade nem com uma garçonete e a vontade de ter um espírito samurai, que
não se intimada por nada e anda sempre com a cabeça erguida. Tsuritama,
principalmente em sua primeira e melhor parte, trabalha essa autoconfiança
através dos laços de amizades.
Como já é comum nas obras de Nakamura, Tsuritama é repleto de metáforas [como as flores da Keito], referências [como Triângulo do Dragão – Que também aparece em um dos episódios de sua série; Mononoke] que muitas vezes são tão culturais que passavam despercebidas e flertes com a psique humana e seus personagens repletos de múltiplas camadas. Acaba este último, o que mais se destaca e torna Tsuritama tão mais – vejam só – digerível e acessível, que suas obras anteriores. O ser humano é complexo por natureza e é também o que o torna fascinante e diferente de outras espécies.
Então, Nakamura introduz Haru, um alienígena naturalmente alegre, que não entende as emoções humanas e veio a terra para pescar (!!). Este que acaba sendo a grande sacada da série e que a divide em duas partes; Onde Yuki precisa aprender a pescar, que nada mais é que um aprendizado de em como lidar com a pressão e o sentimento das outras pessoas ao redor – e não por coincidência, o arco fecha justamente quando a lição é aprendida por aqueles adolescentes –, e a segunda parte, onde é necessário botar em prática o que se aprendeu. Não por acaso, é o momento mais denso do enredo e onde Nakamura acaba não sendo tão hábil nessa transição climática, onde se sente o ritmo um pouco puxado. Acredito que, com 11 episódios fecharia perfeitamente, levando em conta que – Excluindo o cenário de um Enoshima inspiradamente e cinematograficamente caótica, um Tapioca que roubou a cena [literalmente] e parte dos personagens secundários [incluindo os agentes da Duck] – o trio [Yuki, Haru, Natsuki] parece estar perdido. Isso até que um destoante Yamada, que estava ótimo como agente rebelde da Duck juntamente com o seu parceiro Tapioca, consegue reuni-los. Mesmo ai, faltou um toque mágico de um Takahiro Omori em seus momentos inspirados em Natsume Yuujinchou ou um Shinichiro Watannabe que conseguiu tirar de uma sequencia clichê no episódio 11 de Sakamichi no Apollon, algo magistral.
Por outro lado, a construção da narrativa na primeira parte é exemplar. Vale lembrar que Nakamura é um diretor sem pressa. Mesmo no delirante Kuuchuu Buranko ou no exótico Mononoke, que são tramas predominantemente episódicas, a narrativa se constrói sutilmente interligando todos os eventos, nem sempre de forma óbvia. A falta de pressa de Nakamura é parte da estrutura de seus animes – E onde [C] acaba pecando, pela falta de tempo hábil do desenvolvimento de suas múltiplas tramas. Tsuritama é como um viajante: Não se interessa pelo ponto onde vai chegar, mas pelo caminho que percorre. Concentra toda a atenção na trajetória e em seus detalhes, dá todas as voltas que seu diretor deseja, recusando sistematicamente os atalhos. É possível que seja insuportavelmente lento ou desinteressante para quem acha que a parte importante de sua narrativa é o final.
Tsuritama está para amizade, como a família está para Summer Wars. E mesmo nisso, a série de Nakamura tem muito do tema tratado no filme de Mamoru Hosoda. A relação entre Yuki e “sua mãe adotiva” Keito [dublada de forma soberba pela veterana Fumi Hirano – Que pela idade, dificilmente encontra bons papeis em que possa atuar] não é apenas algo bonito, como muito autêntico. Aliás, até mais pontual, é a sua relação com Haru. A conturbada relação de Natsuki com sua família é tratado com luvas de pelica e com um desfecho bem hábil, onde mesmo nos momentos mais intensos, Nakamura consegue segurar o clima leve, feliz, que por vezes dá aquela sensação de estar flutuando entre as nuvens.
Haru, como alienígena que não consegue compreender as emoções humanas, o que gera diversos momentos admiráveis. Haru é ingênuo, e como uma criança de 8 anos da idade, tem o costume de aprontar e depois pedir desculpas. Em um dos episódios, quando Haru se sente triste por ter chateado Yuki, numa dos vários ótimos momentos com Keiko, ele tenta colocar um band-aid no peito, como se isso pudesse aplacar a sua dor (!).
Keito: Aconteceu algo ruim?
Haru: Ruim?
Keito: Seu peito dói, não?
Haru: O seu também dói as vezes?
Keito: às vezes, mas isso não melhora com um band-aid.
Haru: Como melhora?
Keito: Você tem que tentar.
Haru: O quê?
Keito: Tem que tentar.Pense bastante no que você pode fazer.Você precisa tentar.
Haru: Tentar...
Keito: Aconteceu algo ruim?
Haru: Ruim?
Keito: Seu peito dói, não?
Haru: O seu também dói as vezes?
Keito: às vezes, mas isso não melhora com um band-aid.
Haru: Como melhora?
Keito: Você tem que tentar.
Haru: O quê?
Keito: Tem que tentar.Pense bastante no que você pode fazer.Você precisa tentar.
Haru: Tentar...
Como bem sacado pelo Guardian Enzo, as questões que envolvem Haru, tem muito da delicadeza de Le Petit Prince (O Pequeno Príncipe – Um dos meus livros preferidos ever), obra máxima de Saint Exupéry. Mesmo o character designer de Haru remete completamente ao pequeno explorador de planetas distantes, que se via maravilhado a cada nova descoberta que fazia. Sempre descobertas que evidenciavam o seu eu interior e aquela coisa tão importuna chamada sentimentos.
"Eu sempre tinha amigos do meu lado. E até eu mesmo fiquei surpreso...com o quão alto eu aprendi a rir e a sorrir." - Yuki
"Eu sempre tinha amigos do meu lado. E até eu mesmo fiquei surpreso...com o quão alto eu aprendi a rir e a sorrir." - Yuki
Da mesma forma nós temos esses personagens lidando com seus traumas internos e as pessoas ao redor. Tsuritama lembra que na vida, haverá instantes tristes e alegres, momentos de ódio e amor. Que a amizade ajuda a superar todos os seus medos internos e que você se sente muito mais seguro, quando alguém segura a sua mão. Clichê. Obvio. Mas, contundente. Que alienígenas e seres humanos se equivalem em importância ou falta dela. Que o universo surgiu em algum dia e provavelmente desaparecerá em algum outro dia, e que entre um e outro, cataclismas e tragédias poderão acontecer, mas serão apenas capítulos secundários numa história maior. Paradoxalmente, seremos lembrados, e aqueles momentos também. E por mais que sejamos nada, somos alguma coisa, e que em cada um de nós está contido um universo inteiro, aquele mesmo universo que , do lado de fora, nos assusta, oprime, emociona, liberta. Tão paradoxal, são os sentimentos humanos. E Nakamura conseguiu transmitir isso com maestria. Ainda que as situações ali não despertassem sensação de perigo, sempre trouxe a tona um realismo mágico aquático revigorante, deixando no rosto, um sorriso de canto a canto da orelha. Marcante ou não, certamente essa foi uma viagem despretensiosa e agradável.
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E depois desse BEEEELÍSSIMO final, dá licença que eu vou escutar Sora mo Toberu Hazu, lado B da OST da Tsuritama. Bye bye. Haino, Haino, Haino, Yoisho, Yoisho Yoshonaaaa!!!!
Nota: 08/10
Episódios: 12
Direção: Kenji Nakamura
Roteiro: Toshiya Ono (7 episódios), Shinsuke Onishi (episódios 4, 6, 9),
Touko Machida (episódios 5 e 10)
Estúdio: A-1 Pictures
P.S.: (spoilers livres)