Um das dicotomias mais celebradas da ficção.
*Este texto possui espoilers de Shiki e Shinsekai Yori*
Todos estes eventos fantásticos e, nem tão surpreendentes
assim, mas igualmente impactantes, desses últimos episódios de Shinsekai Yori me levaram de volta à uma outro anime já finalizado; Shiki. Ambos apresentam
um ritmo cadenciado em sua execução, com uma trilha sonora impactante que
consegue se fazer sentir na pele nos momentos mais intensos de suas tramas. Apesar
de ostentar a bandeira do suspense e do horror, possuírem premissas destoantes
uma da outra. O que fez chamar minha atenção realmente é o embate eterno entre
humanos e criaturas na ficção, estas sendo evoluídas, ou não. De Space
Battleship Yamato à Nausicaä do Vale do Vento, ou de Devilman à Elfen Lied; a
polaridade no conflito entre espécies diferentes é algo que fascina. Conflito
este que normalmente parte da ideia da superioridade de uma espécie frente à
outra. Dominante e dominado. O Homo sapiens evoluiu, dotado de uma inteligência
única na natureza, mas e se houvesse outras espécies capazes de um raciocínio distintivo
similar? Com este questionamento, a ficção cientifica volta e meia cria
histórias onde podemos obter esta resposta.
Já em Shinsekai Yori, a narrativa não se preocupa tanto em construir
um vinculo afetivo entre personagens e sua audiência, até mesmo pela natureza
de seu argumento, que não se foca no drama humano [ainda que haja um louvável trabalho
de caracterização, que, aliás, é importantíssimo para contar a epopeia da
personagem Saki], mas na trama sobrenatural, ao menos a principio; Shinsekai
mostrou que tem muito mais engajamento politico social do que aparentava (embora isto se mostre presente desde o
primeiro episódio). Isso fica mais obvio quando você percebe que não é tão perceptível
entre os espectadores de Shinsekai, uma acepção de lados. Paradoxalmente, o
conflito prende, no entanto há uma indiferença à tragédia. Somos voyeurs apreciando
um espetáculo.
O que brilha na escrita de Shinsekai Yori é a construção e
subversão histórica de uma nova população primitiva que adquire conhecimento na
anterior, e ironicamente seguem os mesmos passos que a levaram à extinção. A
ideia mais comum do conceito cientifico de ‘Mundo Novo' é de uma sociedade
altamente tecnológica e sufocada pelos olhos do sistema que, mesmo no nosso
mundo contemporâneo já é uma realidade. No entanto, o autor de Shinsekai optou
por pegar outra faceta da ficção cientifica: A espécie humana evoluindo tanto, que
precisa regredir à uma sociedade retro utópica de colônias primitivas.
Recentemente Jinrui wa Shimashita teve abordagem semelhante, caindo mais para
o lado satírico, onde a humanidade está entrando em extinção e precisam coexistir com nova espécie humana. Já no mundo de The Music Of Marie, de Usamaru Furuya (já escrevi sobre ele em Plastic Girl),
a humanidade vive em tribos, também primitivas, e a manutenção de sua paz, se
dá através de um acorrentamento à religiosidade, que lhes restringe o
conhecimento para que continuem à viver em harmonia.
E num mundo onde animais possuem os mesmos hábitos humanos e
detém a capacidade de raciocínio, e ainda precisam se sujeitar aos seres
humanos e vê-los como “deuses”, era questão de tempo até que a raça tida como
inferior, descobrisse mimetizando a raça humana e adquirindo seu conhecimento
através da literatura proibida, como lutar por sua liberdade e criar estratégias
de combate, além de estabelecer uma democracia ao depor a rainha e torná-la um
mero reprodutor, apenas um símbolo politico, com o poder ficando na mão do
parlamento. Os bakenezumis foram tão hábeis em manobras politicas com os
humanos, que conseguiram tramar um golpe de estado bem de baixo de seus
narizes, e quando estes perceberam, já era tarde.
Bakenezumi – “As vidas perdidas não valem nada perto da
grande causa. A libertação de nossa espécie da tirania de vocês.”
Saki – “Tirania? Nós nunca lhes tratamos mal.”
Bakenezumi – “Somos uma espécie inteligente. Temos de ser
tratados com igualdade. E ainda assim, com seus poderes malignos, vocês roubaram
nossa dignidade e nos tratam como animais. Agora o único jeito de recuperarmos
nosso orgulho, é exterminando vocês da face da terra. (...) Demônios? Vocês são
os demônios!”
Muitos se questionam das atitudes dos Bakenezumi, mas não
podemos nos esquecer de que eles mimetizam os seres humanos, em seu orgulho,
idealismo, inteligência, dissimulação, classes sociais, arte da guerra e até preconceito.
Novamente temos uma dicotomia entre humanos e criaturas, só que dessa vez pelo
aspecto politico, que vai além do certo
e errado, mocinho e bandido. Este
aspecto em Shinsekai Yori se torna rico ao abrir mão do maniqueísmo no retrato conflituoso
entre uma espécie que deseja declarar sua independência sobre a outra. Na
história temos diversos exemplos, e nem precisamos ir tão longe. Qualquer que
já saiu do ensino médio, tem a plena consciência de que os nossos heróis
transformados em estatuas, eram pessoas comuns, com seus próprios interesses,
longe de serem de fato heróis. Numa guerra, há apenas dois lados lutando por
seus interesses, com cada um tomando atitudes, muitas vezes questionáveis, para
garantir a vitória do seu partido.
Tanto em Shiki, quanto Shinsekai, mais uma vez vemos que
entre espécies diferentes, existe um abismo estabelecido sobre um único
conceito hegemônico: O de que a racionalidade, por si só, garante uma relação
de inexorável conflito entre dominantes e dominados. A fagulha que acende a pólvora?
Não apenas o instinto de sobrevivência, também a inteligência. Os vampiros, ou
melhor, os ressurgidos do mundo dos mortos em Shiki, só conseguiram se manter
tanto tempo desconhecidos e se alimentando do sangue humano, por usarem a
estratégia de se manterem escondidos – O instinto de sobrevivência se
caracteriza não só pelo ataque, mas também pela capacidade de se manter invisível. Os bakenezumis conseguiram se organizar e rebelarem-se,
por mimetizar a civilidade comportamental dos seres humanos. Em contraste, em
ambas as obras, os seres humanos para se manterem vivos, também precisam
mimetizar a cadeia alimentar animal.
Essa inversão de papéis é fascinante; Os ressurgidos que atacavam na
calada da noite, foram cercados por suas presas enquanto dormiam. Os seres
humanos em Shinsekai são os que agora temem e se arrastam pelos cantos. A
mitologia estabelecida dentro dessa dicotomia de espécies é a de que estamos
diante de um embate sem vencedores.
Em Tempo:
“Planeta dos Macacos” (1968)
faz um belo paralelo entre essa inversão de papeis, numa época de guerra fria e
forte preconceito racial – Inclusive, o filme parte dessa pressuposta ideia
entre raças. Estes dois elementos tornam essa obra intrinsecamente presa à um
contexto histórico. Nos quadrinhos, The Music of Marie é um ótimo exemplo da
disparidade entre religião e progresso. Também vale citar Believers, um belo
rascunho sobre pessoas atreladas à crenças, e como elas se tornam facilmente manipuláveis.
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