sexta-feira, 1 de março de 2013

Shiki & Shinsekai Yori: Humanos Vs Criaturas


Um das dicotomias mais celebradas da ficção.

*Este texto possui espoilers de Shiki e Shinsekai Yori*

Todos estes eventos fantásticos e, nem tão surpreendentes assim, mas igualmente impactantes, desses últimos episódios de Shinsekai Yori me levaram de volta à uma outro anime já finalizado; Shiki. Ambos apresentam um ritmo cadenciado em sua execução, com uma trilha sonora impactante que consegue se fazer sentir na pele nos momentos mais intensos de suas tramas. Apesar de ostentar a bandeira do suspense e do horror, possuírem premissas destoantes uma da outra. O que fez chamar minha atenção realmente é o embate eterno entre humanos e criaturas na ficção, estas sendo evoluídas, ou não. De Space Battleship Yamato à Nausicaä do Vale do Vento, ou de Devilman à Elfen Lied; a polaridade no conflito entre espécies diferentes é algo que fascina. Conflito este que normalmente parte da ideia da superioridade de uma espécie frente à outra. Dominante e dominado. O Homo sapiens evoluiu, dotado de uma inteligência única na natureza, mas e se houvesse outras espécies capazes de um raciocínio distintivo similar? Com este questionamento, a ficção cientifica volta e meia cria histórias onde podemos obter esta resposta.

 O que me fascina nesse sangrento, brutal e impiedoso embate entre criaturas e humanos não é a guerra em si, mas o conflito. Fazer com quê nos importemos mais, e até mesmo torcer, para a “espécie inferior” não é uma tarefa difícil, o ser humano tende a sentir empatia pela classe vitimizada, há sempre a ténue linha entre a humanização e vilanização do ser humano. Em Shiki, por exemplo, a construção do conflito é tão humano que fica difícil escolher um lado. São duas faces da mesma moeda, lutando pela sobrevivência, que para a sua manutenção, depende da extinção da outra espécie. É fascinante como o texto consegue equilibrar bem essas duas espécies, que essencialmente são uma só, ao mesmo tempo em que cria um vinculo emocional com sua audiência.

Já em Shinsekai Yori, a narrativa não se preocupa tanto em construir um vinculo afetivo entre personagens e sua audiência, até mesmo pela natureza de seu argumento, que não se foca no drama humano [ainda que haja um louvável trabalho de caracterização, que, aliás, é importantíssimo para contar a epopeia da personagem Saki], mas na trama sobrenatural, ao menos a principio; Shinsekai mostrou que tem muito mais engajamento politico social do que aparentava (embora isto se mostre presente desde o primeiro episódio). Isso fica mais obvio quando você percebe que não é tão perceptível entre os espectadores de Shinsekai, uma acepção de lados. Paradoxalmente, o conflito prende, no entanto há uma indiferença à tragédia. Somos voyeurs apreciando um espetáculo.


O que brilha na escrita de Shinsekai Yori é a construção e subversão histórica de uma nova população primitiva que adquire conhecimento na anterior, e ironicamente seguem os mesmos passos que a levaram à extinção. A ideia mais comum do conceito cientifico de ‘Mundo Novo' é de uma sociedade altamente tecnológica e sufocada pelos olhos do sistema que, mesmo no nosso mundo contemporâneo já é uma realidade. No entanto, o autor de Shinsekai optou por pegar outra faceta da ficção cientifica: A espécie humana evoluindo tanto, que precisa regredir à uma sociedade retro utópica de colônias primitivas. Recentemente Jinrui wa Shimashita teve abordagem semelhante, caindo mais para o lado satírico, onde a humanidade está entrando em extinção e precisam coexistir com nova espécie humana. Já no mundo de The Music Of Marie, de Usamaru Furuya (já escrevi sobre ele em Plastic Girl), a humanidade vive em tribos, também primitivas, e a manutenção de sua paz, se dá através de um acorrentamento à religiosidade, que lhes restringe o conhecimento para que continuem à viver em harmonia.

 Em Shinsekai, a sociedade dá o passo seguinte à evolução da espécie humana ao desenvolverem habilidades psicocinéticas. Como explicar que a humanidade precisou regredir à um sistema económico e civilizacional isolado em pequenas aldeias à lá Ilha de Pascoa, por estes terem desenvolvidos habilidades especiais? O ser humano se torna sucessível ao domínio em pequenas comunidades regidas por crenças e valores idiossincráticos. Por isso, o culto desempenha um papel tão proeminente em ficções, ele exerce um papel de controle absoluto.  Aqui, os seres humanos coexistem com uma espécie inferior denominada como “Bakenezumi”, que literalmente significa “rato monstruoso”; Eles evoluíram a partir de roedores, ganhando inteligência para construir sua própria civilização, embora vivam num regime ditatorial; segundo as leis impostas pelos humanos. O que os bakenezumi fazem, é mimetizar o comportamento humano. Novamente, temos um interessante aspecto de nossa sociedade retratada ali: Para guerrearem ou fazer sanções à outras tribos de bakenezumis, eles precisam da autorização de um comitê formado por humanos, que podem dizimá-los com suas habilidades, quando seus interesses se tornarem dissonantes. Conflitos políticos, desenvolvimento de tecnologias, armamento, tudo precisa ser aprovado pelo comitê. Similar à ONU, com os seres humanos exercendo papel dominante dos EUA, o diferencial é que os bakenezumis não são tratados, nem mesmo em teoria, com igualdade. Sua sobrevivência está atrelada à sua subserviência aos “Kami-sama”, os deuses seres humanos (que por sua vez, se mostram receosos perante eles quando estão em posição de desvantagem, afinal, suas habilidades é o que tornam os bakenezumis receosos aos humanos).

E num mundo onde animais possuem os mesmos hábitos humanos e detém a capacidade de raciocínio, e ainda precisam se sujeitar aos seres humanos e vê-los como “deuses”, era questão de tempo até que a raça tida como inferior, descobrisse mimetizando a raça humana e adquirindo seu conhecimento através da literatura proibida, como lutar por sua liberdade e criar estratégias de combate, além de estabelecer uma democracia ao depor a rainha e torná-la um mero reprodutor, apenas um símbolo politico, com o poder ficando na mão do parlamento. Os bakenezumis foram tão hábeis em manobras politicas com os humanos, que conseguiram tramar um golpe de estado bem de baixo de seus narizes, e quando estes perceberam, já era tarde.


Bakenezumi – “As vidas perdidas não valem nada perto da grande causa. A libertação de nossa espécie da tirania de vocês.”

Saki – “Tirania? Nós nunca lhes tratamos mal.”

Bakenezumi – “Somos uma espécie inteligente. Temos de ser tratados com igualdade. E ainda assim, com seus poderes malignos, vocês roubaram nossa dignidade e nos tratam como animais. Agora o único jeito de recuperarmos nosso orgulho, é exterminando vocês da face da terra. (...) Demônios? Vocês são os demônios!”

Muitos se questionam das atitudes dos Bakenezumi, mas não podemos nos esquecer de que eles mimetizam os seres humanos, em seu orgulho, idealismo, inteligência, dissimulação, classes sociais, arte da guerra e até preconceito. Novamente temos uma dicotomia entre humanos e criaturas, só que dessa vez pelo aspecto politico, que vai além do certo e errado, mocinho e bandido. Este aspecto em Shinsekai Yori se torna rico ao abrir mão do maniqueísmo no retrato conflituoso entre uma espécie que deseja declarar sua independência sobre a outra. Na história temos diversos exemplos, e nem precisamos ir tão longe. Qualquer que já saiu do ensino médio, tem a plena consciência de que os nossos heróis transformados em estatuas, eram pessoas comuns, com seus próprios interesses, longe de serem de fato heróis. Numa guerra, há apenas dois lados lutando por seus interesses, com cada um tomando atitudes, muitas vezes questionáveis, para garantir a vitória do seu partido.

Tanto em Shiki, quanto Shinsekai, mais uma vez vemos que entre espécies diferentes, existe um abismo estabelecido sobre um único conceito hegemônico: O de que a racionalidade, por si só, garante uma relação de inexorável conflito entre dominantes e dominados. A fagulha que acende a pólvora? Não apenas o instinto de sobrevivência, também a inteligência. Os vampiros, ou melhor, os ressurgidos do mundo dos mortos em Shiki, só conseguiram se manter tanto tempo desconhecidos e se alimentando do sangue humano, por usarem a estratégia de se manterem escondidos – O instinto de sobrevivência se caracteriza não só pelo ataque, mas também pela capacidade de se manter invisível.  Os bakenezumis conseguiram se organizar e rebelarem-se, por mimetizar a civilidade comportamental dos seres humanos. Em contraste, em ambas as obras, os seres humanos para se manterem vivos, também precisam mimetizar a cadeia alimentar animal.  Essa inversão de papéis é fascinante; Os ressurgidos que atacavam na calada da noite, foram cercados por suas presas enquanto dormiam. Os seres humanos em Shinsekai são os que agora temem e se arrastam pelos cantos. A mitologia estabelecida dentro dessa dicotomia de espécies é a de que estamos diante de um embate sem vencedores.


Em Tempo:

“Planeta dos Macacos” (1968) faz um belo paralelo entre essa inversão de papeis, numa época de guerra fria e forte preconceito racial – Inclusive, o filme parte dessa pressuposta ideia entre raças. Estes dois elementos tornam essa obra intrinsecamente presa à um contexto histórico. Nos quadrinhos, The Music of Marie é um ótimo exemplo da disparidade entre religião e progresso. Também vale citar Believers, um belo rascunho sobre pessoas atreladas à crenças, e como elas se tornam facilmente manipuláveis. 



Veja Também: