“A música linda, porém cruel, de Marie...” – Essa música dela
me lembra Sagrado Coração.
‘A Música de Marie’ é uma fantasia cientifica sobre uma
sociedade utópica pós-apocalíptica que vive à margem da tecnologia e sob a
proteção da deusa mecânica Marie, uma entidade mitológica que sobrevoa os céus
de Pirit. No entanto, apenas Kai pode vê-la, assim como apenas ele pode ouvir a
sua música harmoniosa que transmite paz e fraternidade a todos. Kai vive na
cidade de Gil ao lado de sua amiga de infância Pipi, que é apaixonada por ele;
este que por sua vez se mostra cada vez mais fascinado por Marie, numa
idolatria que vai se tornando mais e mais carnal, ao ponto de perder o controle
e começar a se apaixonar de modo carnal por ela. Pipi resolve
enfrentar Marie pelo amor de Kai, ainda que não possa vê-la, usando uma das
invenções de seu pai para disputar o espaço no céu. No entanto, a máquina
voadora entra em pane assim que Marie começa dispersar uma dissonante canção,
fazendo com que Pipi caia se machucando gravemente.
Kai procura a figura espiritual de pai Gule e percebe que é
Marie quem tem evitado o progresso tecnológico do homem sempre que alguma
invenção ameaça a sua soberania e começa a se questionar “Sem dúvida nenhuma, a música de
Marie purifica o coração do homem”, “Se Marie não existisse, as pessoas
realmente lutariam umas contra as outras por terras e bens? As pessoas
realmente lutariam e matariam uma as outras...?”. A verdade que se esconde por trás daquele mundo
virtuoso e utópico pode se revelar mais cruel a medida que Kai se questiona e
busca pela verdade, enquanto Furuya continua destilando sua filosófica reflexão
acerca de ciência, fê e felicidade. Será que para que o homem continue vivendo
harmoniosamente e feliz será preciso continuar na ignorância e vivendo
primitivamente?
The Music of Marie (originalmente
Marie no Kanaderu Ongaku) é a pomba da paz de Usamaru Furuya e não deixa
de ser curioso que, embora se trate de um autor prolifico e versátil, esta é a
história mais puramente ingênua de sua mangagrafia, que é pautada em obras
carregadas de violência gráfica e delírios psicológicos.
Uma das peculiaridades de Furuya é sua versatilidade em se
reinventar artisticamente em cada obra, dando a cada uma um aspecto único (arte, argumento, tom, atmosfera,
perspectiva, ritmo). Você pode ler Kanojo o Mamoru 51 no Houhou e Litchi
Hikari Club sem ao menos desconfiar que se trata do mesmo artista. Isso já
aconteceu comigo enquanto lia Jisatsu Circle há muito tempo atrás e só me dar
conta quando depois de outra obra lida, ao ir procurar outras do mesmo autor,
encontrando aquele primeiro mangá entre sua mangagrafia. The Music of Marie
representa a incursão definitiva de Furuya por territórios mais clássicos
depois de sua curta estadia na extinta revista Garo, detentoras de obras
repletas de irreverência e experimentalismo. Sua estreia com Palepoli lhe
possibilitou um exercício de aprendizagem à incursão no mundo dos mangás,
testando os limites plásticos de sua capacidade. Partindo pra uma grande
editora, Shogakukan, ele se dedica a desconstrução do fetichismo em torno das
“kogal” (high school gal, o uniforme
escolar japonês que as garotas usam, sempre muito sexualizado) em Short
Cuts, reutilizando temas e técnicas, formalismo e misturas de gênero.
Eu considero Garden (2000)
um protótipo de The Music of Marie, que tem uma formula muito mais clássica e
penso que é entre seus trabalhos, aquele que mais possui referências. O que me
deixa fascinada é sua habilidosa execução, não se perdendo nem em um segundo
sequer nas diversas linhas de raciocínio que se entrelaçam em um curto espaço
de 2 volumes, culminando num desfecho lúcido. Furuya cria em apenas 2 volumes
um mundo vasto e rico culturalmente, com um cenário idílico que prende às
páginas – é improvável não ficar alguns segundos a mais com os olhos fixados em
casa página, procurando e admirando cada detalhe – em um universo retro
futurístico projetado de modo que o contraste entre tecnologia e religião
denuncie o equilíbrio entre mecânica e tradições culturais.
O aspecto mais notável em meio a toda essa riqueza é a
progressão da narrativa e sua mudança gradual de atmosfera. Os primeiros
capítulos não possuem urgência alguma, é um passeio ao lado de Kai e Pipi, onde
desbravamos e nos encantamos com este mundo idílico, multifacetado e
calorosamente puro, até que ao final do primeiro volume o ritmo vai ganhando
mais urgência; no segundo os questionamentos internos aumentam ao passo que Furuya
vai diminuindo cada vez mais os planos paisagísticos e enquadrando mais a
fisionomia dos personagens e trazendo à tona a questão do avanço tecnológico
com o homem querendo alçar voos cada vez maiores (belissimamente representado pela obstinação de Pipi em dominar os
ares, até então território exclusivo de Marie), a tensão psicológica vai
eclodindo e por fim, o lirismo domina com uma loucura Lynchiana colocando um
ponto final surpreendente à história.
Quando falamos de loucura Lynchiana [definição oriunda do
nome do diretor David Lynch, mestre no estilo surreal de obras psicologicamente
densas], o que vem a mente são mundos fantasiosos se sobrepondo aos reais, se
tornando difícil definir entre fantasia e realidade; e essa é a grande
armadilha que pode atrapalhar um pouco a experiência com The Music of Marie.
Hoje em dia é difícil fugir dessas armadilhas, muito pelo padrão estabelecido
pela internet 2.0, em que informações são entrelaçadas com muita facilidade.
Basta você levantar a mão e dizer que está assistindo a uma obra cultuada ou
popular, que logo aparecerão muitas réplicas falando dos aspectos relevantes da
mesma. Ou uma simples review como esta, afinal, por definição textos assim
precisam tratar do que é relevante numa obra; positiva ou negativamente. E isto
cria uma expectativa perigosa. Não dá pra fugir do espectro que ronda obras
como Madoka Mágica, e por melhor que seja os dois primeiros episódios, você
vai ficar se perguntando o que há de tão especial em uma obra com 2 episódios
como aqueles.
Há tempos eu peguei I Am A Hero, do brilhante Kengo
Hanazawa, para ler e confesso que motivada por comentários que diziam se tratar
de uma obra sobre zumbis. Acontece que Hanazawa faz uma incrível, porém,
longuíssima introdução que em nada dava a obra aspectos pós-apocalípticos. Demora
bastante até essa trama explodir, mas antes começaram a surgir algumas pistas (ah, eu fiquei tão eufórica quando começaram
a aparecer indícios esporádicos) que passariam despercebidos caso eu não
soubesse sobre o que era essa história até eu levar um susto lá na frente. Foi
prazeroso, mas a angustia e inquietação em querer ver logo as coisas
acontecendo, fizeram eu não digerir com propriedade tudo que Hanazawa tinha a
dizer através daquele prologo; tudo o que eu queria era zumbis! Com The Music
of Marie também fiquei bastante inquieta,demorou um pouco até eu alcança-la na
lista de leitura, que levou um ano, e desde então Marie se tornou “muito”
comentada no nicho de mangás brasileiro. Porém ao contrário das obras citadas,
não se nota nenhum indicio a principio, embora tudo faça sentido no final.
No final do primeiro volume, certas verdades são reveladas,
no segundo, outras vêm à tona como bonecas russas, se escondendo uma dentro da
outra até a revelação final, tão bela quanto triste e comovente. Claro, mesmo
Pirit, a ilha de harmonia, é tudo uma questão de perspectiva. The Music of
Marie é uma história que cresce bastante numa segunda leitura e a história que
aos seus olhos era tão doce, acaba se tornando um pouco amarga e por que não,
assustadora! Eu consigo sentir o final ainda em minha pele e o gosto em minha
boca; é doce, um doce amargo, um sentimento de beleza e melancolia contrastando
as cores daquele mundo.
Eu poderia terminar por aqui, mas é preciso dizer que apesar
de virtuoso, The Music of Marie lança uma reflexão que acaba se perdendo pela
visão subjetiva do personagem narrador. Mesmo com o potencial de uma temática
religião versus ciência, versus fé, versus liberdade, versus felicidade, nas
mãos de um artista competente como Furuya, acaba sendo subutilizado com um
texto que nunca sai do superficial, além de pouco sucinto. É uma observação
apenas, mas importante de se fazer. Carece de uma complexidade que Furuya
provavelmente não estava disposto a lhe dar e entre seu vasto repertório, Marie
está fadada a ficar escondidinha, esperando por ser descoberta.
The Music of Marie é panfletário e sua reflexão tendenciosa.
Há questionamentos subjetivos, mas não uma reflexão sobre o assunto, tornando
esta utopia executada de modo autárquico ainda mais assustadora; “Estes
templos são gaiolas de pássaros? Somos nada mais do que pássaros patéticos, de
asas quebradas que só podem ficar parados sob o céu monstruoso?”. É uma
observação importante, mas que não tira o brilho de The Music of Marie como
puro entretenimento executado com rara quase perfeição que gera uma afeição quase mágica. Na reta reta final, a narrativa se torna tão cinematográfica que não pude evitar de pensar estar assistindo a um thriller do Satoshi Kon ou Masaaki Yuasa. Um pouco de doçura neste mundo cruel,
esta é a música que eu escutei vindo de Marie.
Nota: 09/10
Ano: 2001
Autor: Usamaru Furuya
Volumes: 02
Volumes: 02
Demografia: Seinen
Serialização: Comic Birz
Editora: Gentosha
Onde Encontrar: Fuji Scan
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de Marie
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