quinta-feira, 23 de maio de 2013

The Music of Marie: O Sorriso Gentil & Cruel de Marie


“A música linda, porém cruel, de Marie...” – Essa música dela me lembra Sagrado Coração.

‘A Música de Marie’ é uma fantasia cientifica sobre uma sociedade utópica pós-apocalíptica que vive à margem da tecnologia e sob a proteção da deusa mecânica Marie, uma entidade mitológica que sobrevoa os céus de Pirit. No entanto, apenas Kai pode vê-la, assim como apenas ele pode ouvir a sua música harmoniosa que transmite paz e fraternidade a todos. Kai vive na cidade de Gil ao lado de sua amiga de infância Pipi, que é apaixonada por ele; este que por sua vez se mostra cada vez mais fascinado por Marie, numa idolatria que vai se tornando mais e mais carnal, ao ponto de perder o controle e começar a se apaixonar de modo carnal por ela. Pipi resolve enfrentar Marie pelo amor de Kai, ainda que não possa vê-la, usando uma das invenções de seu pai para disputar o espaço no céu. No entanto, a máquina voadora entra em pane assim que Marie começa dispersar uma dissonante canção, fazendo com que Pipi caia se machucando gravemente.

Kai procura a figura espiritual de pai Gule e percebe que é Marie quem tem evitado o progresso tecnológico do homem sempre que alguma invenção ameaça a sua soberania e começa a se questionar “Sem dúvida nenhuma, a música de Marie purifica o coração do homem”, “Se Marie não existisse, as pessoas realmente lutariam umas contra as outras por terras e bens? As pessoas realmente lutariam e matariam uma as outras...?”. A verdade que se esconde por trás daquele mundo virtuoso e utópico pode se revelar mais cruel a medida que Kai se questiona e busca pela verdade, enquanto Furuya continua destilando sua filosófica reflexão acerca de ciência, fê e felicidade. Será que para que o homem continue vivendo harmoniosamente e feliz será preciso continuar na ignorância e vivendo primitivamente?


The Music of Marie (originalmente Marie no Kanaderu Ongaku) é a pomba da paz de Usamaru Furuya e não deixa de ser curioso que, embora se trate de um autor prolifico e versátil, esta é a história mais puramente ingênua de sua mangagrafia, que é pautada em obras carregadas de violência gráfica e delírios psicológicos.

Uma das peculiaridades de Furuya é sua versatilidade em se reinventar artisticamente em cada obra, dando a cada uma um aspecto único (arte, argumento, tom, atmosfera, perspectiva, ritmo). Você pode ler Kanojo o Mamoru 51 no Houhou e Litchi Hikari Club sem ao menos desconfiar que se trata do mesmo artista. Isso já aconteceu comigo enquanto lia Jisatsu Circle há muito tempo atrás e só me dar conta quando depois de outra obra lida, ao ir procurar outras do mesmo autor, encontrando aquele primeiro mangá entre sua mangagrafia. The Music of Marie representa a incursão definitiva de Furuya por territórios mais clássicos depois de sua curta estadia na extinta revista Garo, detentoras de obras repletas de irreverência e experimentalismo. Sua estreia com Palepoli lhe possibilitou um exercício de aprendizagem à incursão no mundo dos mangás, testando os limites plásticos de sua capacidade. Partindo pra uma grande editora, Shogakukan, ele se dedica a desconstrução do fetichismo em torno das “kogal” (high school gal, o uniforme escolar japonês que as garotas usam, sempre muito sexualizado) em Short Cuts, reutilizando temas e técnicas, formalismo e misturas de gênero.

Eu considero Garden (2000) um protótipo de The Music of Marie, que tem uma formula muito mais clássica e penso que é entre seus trabalhos, aquele que mais possui referências. O que me deixa fascinada é sua habilidosa execução, não se perdendo nem em um segundo sequer nas diversas linhas de raciocínio que se entrelaçam em um curto espaço de 2 volumes, culminando num desfecho lúcido. Furuya cria em apenas 2 volumes um mundo vasto e rico culturalmente, com um cenário idílico que prende às páginas – é improvável não ficar alguns segundos a mais com os olhos fixados em casa página, procurando e admirando cada detalhe – em um universo retro futurístico projetado de modo que o contraste entre tecnologia e religião denuncie o equilíbrio entre mecânica e tradições culturais.


O aspecto mais notável em meio a toda essa riqueza é a progressão da narrativa e sua mudança gradual de atmosfera. Os primeiros capítulos não possuem urgência alguma, é um passeio ao lado de Kai e Pipi, onde desbravamos e nos encantamos com este mundo idílico, multifacetado e calorosamente puro, até que ao final do primeiro volume o ritmo vai ganhando mais urgência; no segundo os questionamentos internos aumentam ao passo que Furuya vai diminuindo cada vez mais os planos paisagísticos e enquadrando mais a fisionomia dos personagens e trazendo à tona a questão do avanço tecnológico com o homem querendo alçar voos cada vez maiores (belissimamente representado pela obstinação de Pipi em dominar os ares, até então território exclusivo de Marie), a tensão psicológica vai eclodindo e por fim, o lirismo domina com uma loucura Lynchiana colocando um ponto final surpreendente à história.

Quando falamos de loucura Lynchiana [definição oriunda do nome do diretor David Lynch, mestre no estilo surreal de obras psicologicamente densas], o que vem a mente são mundos fantasiosos se sobrepondo aos reais, se tornando difícil definir entre fantasia e realidade; e essa é a grande armadilha que pode atrapalhar um pouco a experiência com The Music of Marie. Hoje em dia é difícil fugir dessas armadilhas, muito pelo padrão estabelecido pela internet 2.0, em que informações são entrelaçadas com muita facilidade. Basta você levantar a mão e dizer que está assistindo a uma obra cultuada ou popular, que logo aparecerão muitas réplicas falando dos aspectos relevantes da mesma. Ou uma simples review como esta, afinal, por definição textos assim precisam tratar do que é relevante numa obra; positiva ou negativamente. E isto cria uma expectativa perigosa. Não dá pra fugir do espectro que ronda obras como Madoka Mágica, e por melhor que seja os dois primeiros episódios, você vai ficar se perguntando o que há de tão especial em uma obra com 2 episódios como aqueles.

Há tempos eu peguei I Am A Hero, do brilhante Kengo Hanazawa, para ler e confesso que motivada por comentários que diziam se tratar de uma obra sobre zumbis. Acontece que Hanazawa faz uma incrível, porém, longuíssima introdução que em nada dava a obra aspectos pós-apocalípticos. Demora bastante até essa trama explodir, mas antes começaram a surgir algumas pistas (ah, eu fiquei tão eufórica quando começaram a aparecer indícios esporádicos) que passariam despercebidos caso eu não soubesse sobre o que era essa história até eu levar um susto lá na frente. Foi prazeroso, mas a angustia e inquietação em querer ver logo as coisas acontecendo, fizeram eu não digerir com propriedade tudo que Hanazawa tinha a dizer através daquele prologo; tudo o que eu queria era zumbis! Com The Music of Marie também fiquei bastante inquieta,demorou um pouco até eu alcança-la na lista de leitura, que levou um ano, e desde então Marie se tornou “muito” comentada no nicho de mangás brasileiro. Porém ao contrário das obras citadas, não se nota nenhum indicio a principio, embora tudo faça sentido no final.


No final do primeiro volume, certas verdades são reveladas, no segundo, outras vêm à tona como bonecas russas, se escondendo uma dentro da outra até a revelação final, tão bela quanto triste e comovente. Claro, mesmo Pirit, a ilha de harmonia, é tudo uma questão de perspectiva. The Music of Marie é uma história que cresce bastante numa segunda leitura e a história que aos seus olhos era tão doce, acaba se tornando um pouco amarga e por que não, assustadora! Eu consigo sentir o final ainda em minha pele e o gosto em minha boca; é doce, um doce amargo, um sentimento de beleza e melancolia contrastando as cores daquele mundo.

Eu poderia terminar por aqui, mas é preciso dizer que apesar de virtuoso, The Music of Marie lança uma reflexão que acaba se perdendo pela visão subjetiva do personagem narrador. Mesmo com o potencial de uma temática religião versus ciência, versus fé, versus liberdade, versus felicidade, nas mãos de um artista competente como Furuya, acaba sendo subutilizado com um texto que nunca sai do superficial, além de pouco sucinto. É uma observação apenas, mas importante de se fazer. Carece de uma complexidade que Furuya provavelmente não estava disposto a lhe dar e entre seu vasto repertório, Marie está fadada a ficar escondidinha, esperando por ser descoberta.

The Music of Marie é panfletário e sua reflexão tendenciosa. Há questionamentos subjetivos, mas não uma reflexão sobre o assunto, tornando esta utopia executada de modo autárquico ainda mais assustadora; “Estes templos são gaiolas de pássaros? Somos nada mais do que pássaros patéticos, de asas quebradas que só podem ficar parados sob o céu monstruoso?”. É uma observação importante, mas que não tira o brilho de The Music of Marie como puro entretenimento executado com rara quase perfeição que gera uma afeição quase mágica. Na reta reta final, a narrativa se torna tão cinematográfica que não pude evitar de pensar estar assistindo a um thriller do Satoshi Kon ou Masaaki Yuasa. Um pouco de doçura neste mundo cruel, esta é a música que eu escutei vindo de Marie.

Semana que vem continuaremos a falar de Marie:  A Renascença de The Music of Marie


Nota: 09/10
Ano: 2001
Autor: Usamaru Furuya
Volumes: 02
Demografia: Seinen
Serialização: Comic Birz
Editora: Gentosha
Onde Encontrar: Fuji Scan
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