Qual a primeira palavra que lhe vem à mente depois de ler
Milk Closet? Estranho? Sim.
É inevitável. Talvez seja isto que o autor quisesse que
sentíssemos.
Talvez, não sei. O que eu senti foi um misto de estranheza
ao entrar em contato, de medo ao ver aquelas sombras se revelarem em formas tão
assustadoras e de fascinação com a magnitude daquele universo.
Quando você era criança, de que forma enxergava o mundo?
Quando se é criança, o mundo é um lugar muito assustador e desconhecido, e
então somos forçados a desbravá-lo pelos adultos, como aconteceu com Hana.
Saímos da segurança ao lado de nossos pais, ainda que não queiramos; porque
temos medo, como aconteceu com Hana. O mundo para uma criança são muitos
universos aonde ela vai saltando de um para o outro. Aos poucos, estes
universos vão se desfragmentando sob nossos pés, e então outros universos se
formam. É o momento em que vamos aprendendo e descobrindo coisas novas, novos
mundos, enquanto os velhos vão morrendo [dentro de nós mesmo, afinal, a visão
de uma criança e até de muitos adultos sobre o mundo é subjetiva]. Lojas de
departamento, a casa do amigo, do primo, a escola/creche, a rua insinuante em
sua imensidão fazendo com que você se segure mais firme às mãos da mãe. O
momento de ir embora, de dizer adeus e olá para uma nova perspectiva.
Formas estranhas que se conectam à nos era o mundo que
víamos, embora eu não me lembre muito bem do que vi antes dos 5 anos de idade,
mas dos 5 aos 8, para mim tudo era fantástico e estranho, assustador e
excitante. Crianças tendem a ser muito imaginativas, criam seus próprios mundos
e o vêm, assim como tudo que há nele, de sua própria maneira. Uma criança
perdida é uma criança rodeada por alienígenas por todos os lados. É um mundo
que só elas podem ver; fato esplendidamente explorado pelo autor na figura do
Dr., que queria ver o mundo que somente elas podiam.
Seeeeenhoras e senhores, esta é a história das crianças
perdidas no amplo universo de Milk Closet.
Eu citei a Hana agora a pouco. Ela é a protagonista da
história. Ao menos a principio, pois Milk Closet surpreende alternando o foco
de importância entre os diversos personagens principais. O ano é 2005, muitas
crianças começaram a desaparecer misteriosamente (literalmente, falando), mas algumas retornaram após se esvaecerem
no ar. Essas crianças além de voltarem com estranhas caudas vivas em seus
traseiros, também relataram ter visitado outros universos habitados por seres
estranhos. Este fenômeno é chamado de “Síndrome de Liesl”, nome de uma garota
misteriosa que mantêm uma estranha ligação com os seres fantásticos destes universos
paralelos, e que começará a formar um grupo de resistência para enfrentarem um
perigo eminente, selecionando as crianças que melhor se sobressaem aos
“testes”. Assim, nasce o ‘Esquadrão Milk’ (Macroscomic
Invencible Legion of Kids – ou em bom português ‘Legião Microcósmica de
Crianças Invencíveis’), uma força de resistência formada por crianças
capazes de saltar livremente através de vários universos. Para que isto seja
possível, eles precisam formar uma fusão biológica com estranhas formas de
vidas, que são essas caudas dotadas de capacidades metamorfoses e até mesmo de
falar. As caudas lhes dão habilidades especiais, podendo se transformar no que
eles imaginarem, obtendo armas letais contra formas de vidas alienígenas
perigosas. Sua missão é resgatar crianças perdidas ou feitas de refém pelas
criaturas alienígenas através dos 600 mundos existentes até então. Ao menos, a
principio...
Mas os cientistas não sabem nada disto. Para eles, este
estranho fenômeno é a síndrome do desaparecimento ou outros nomes similares
utilizados durante a leitura. Estas visitas a outros mundos são chamados de
“saltos”, meticulosamente planejados por médicos, a fim de explorarem e
descobrirem a causa e origem deste inquietante fenômeno. Hana Yamaguchi é uma
dessas crianças feitas de “cobaia”. Porém, em um dos saltos planejados, ela
acaba indo parar num mundo diferente dos anteriores. Este é assustador, com
criaturas de aparência bestiais lhe perseguindo. As coisas ficam mais
complicadas quando Hana é embutida da missão de encontrar uma garota que
durante os testes, não conseguiu retornar. Hana também acaba não conseguindo
voltar e...
Não dá pra detalhar muito, cada volume é uma reviravolta no
roteiro com uma trama bem própria, novas revelações surgem, novos personagens
ganham o foco e o enredo se torna mais e mais como uma “cama de gato”. A base
da história são 1 garoto e 3 garotas, todos com 8 anos – somando ainda um
doutor que possui uma aparência animalesca e a misteriosa Liesl, líder da
equipe. Todo o resto é mutável. A todo o momento. Há um determinado capítulo em
que o roteiro parece que a partir de então irá seguir um rumo linear, mas é um
enredo difícil, porque se num volume temos uma saga horripilante de formigas
destrutivas, com o esquadrão Milk tentando reprimi-las, no outro já muda
completamente para o conceito de origem do universo e a trama interior perde
importância no foco da narrativa. O bacana é que isso não torna o enredo
estruturalmente irregular, todas as tramas são evolutivas, então ainda que seu
clímax seja bruscamente desfocalizado, ela leva a outro evento de maior
importância ainda. E principalmente; isso não se torna frustrante porque você
entende desde o inicio que se trata de uma jornada, a narrativa é mutante e
inquieta como crianças, ao contrário da usualmente estática. Ainda que possa
soar confuso, é o que torna a leitura divertidíssima e dinâmica. Milk Closet é
leitura visual em seu máximo, o roteiro por si só não faz muito sentido sem as
imagens. Ainda que pudesse ser descrita, perderia o impacto da proposta por
esta ter nascido atrelada já com o contexto visual em mente. Dá pra perceber
claramente que o autor criou um conceito já o imaginando como um cenário visual
e então foi inserindo o enredo.
Essas obras sofrem da necessidade de imersão absoluta, de se
encontrar naquele mundo, de outra forma soam muito vazias e sem sentido. Nessas
obras, usualmente o autor pensa no conceito, que é a base, e então vai acrescentando
uma linguagem nonsense que ganha vida própria, afinal, é tudo de louco
habitando sua mente sendo convertido em imagem para outros apreciarem. Eu acho
que se assemelha à uma pintura. Uma pessoa vai parar e enxergar muitas coisas
ali, é a sua interpretação ao se encontrar naquela obra. Uma outra pessoa não
vai ver nada além de borrões sem sentido. Não necessariamente essa pessoa está
errada. E não necessariamente a outra pessoa que viu algo mais na obra,
entendeu exatamente o que o autor quis passar. As vezes nem mesmo o próprio
autor entende, pois a obra ganha vida próprio e um significado inesperado ao anteriormente imaginado
por ele. Isso acontece por ser irracional, são memória gravadas que inconscientemente
vão se formando em um conceito na mente do autor a partir de motivações tão
diferentes. É como o ótimo Paprika (O Mundo Dos Sonhos de Paprika) de Satohi Kon, que visa ilustrar visualmente
o conceito da psicanalise na mente humana, transformando dados e subjetividades
em imagens que se movimentam e saem do controle da mente.
O que provoca nossos instintos ao ler Milk Closet são os
desenhos e o senso de linearidade nonsense do autor Hitoshi Tomizawa.
Sua arte é conhecida como integrante do movimento Superflat
– um movimento artístico contemporâneo japonês influenciado pela cultura
“kawaii”, que ganhou forma no inicio dos anos 2000. É estético, é absorção do
kawaii em um mundo psicodélico, o cute inserido num universo bizarro (não por acaso, é na década de 2000 que
explodiu o conceito de séries com temática gore utilizando garotinhas fofas ou
mesmo, infantis). No Superflat, é bastante comum a arte lolicon, assim,
Tomizawa desenha crianças fofinhas, em corpos roliças e gordinhas em todo o seu
esplendor num universo de criaturas grotescas, sangue, canibalismo, putrefação,
esquartejamentos. Claro, ele tira metade deste
impacto ao não focar exageradamente na violência visual mostrando apenas o que é necessário e com desenhos limpos, ângulos com
profundidade e um enquadramento sempre aberto – mas ainda assim consegue ser
chocante e soa como um acidente vascular em alguns momentos da história.
Muito do seu mérito, está na construção do enredo, ao fazer
com que aquelas crianças sejam importantes, sejam seres quentes, não frios. Que
nos importemos, conscientemente ou não. Seus dramas, conflitos e temores se
sente como um veículo em alta velocidade prestes à se chocar com uma parede de
concreto. Hitoshi Tomizawa utiliza as mesmas armas que Mohiro Kitoh em suas
obras, incluso a ótica do fascínio pelo corpo da criança em sua castidade, só que ao contrário
deste, não utiliza o apelo sexual. Milk Closet
é muito semelhante à Narutaru de Kitoh, no sentido de destroçar, literalmente,
a fantasia de mascotes como auxiliares de crianças na tentativa de salvar o
mundo. Por vezes se assemelha à uma sátira de gênero (aliás, propaganda > Bakemonogatari: Uma Sátira ao Gênero Harém?) no que diz respeito ao conceito de crianças que
usam monstrinhos para lutar numa realidade alternativa contra diversos
inimigos. O autor nos faz acreditar nisso, e então subverte todas nossas expectativas
iniciais em um quase humor negro involuntário.
Nada sai como o esperado. Não há heróis realmente, apenas
crianças que serão retalhadas e pulverizadas, em uma história que parece ter
saída de um daqueles sonhos bizarros que temos às vezes, onde saltamos de uma
trama para outra aleatoriamente.
“Estarei muito melhor. Não me importa
desaparecer. Continuaria pensando dessa forma se tivesse que ir a outro
universo? Pensaria desta maneira se fosse parar em um temível universo?”
O ponto alto é o foco múltiplo nos personagens e o fato da
história estar sempre saltando de um mundo para outro, mas sempre nos manter
conectados aos conflitos destes personagens em um ponto comum: “o desejo de
voltar ao útero materno”, ou seja, a vontade de voltar para a segurança do lar.
Você se distrai com aqueles mundos fantásticos e sente temor ao ver a ternura
nos rostos daquelas crianças. Isto faz com que a mensagem do autor chegue a nós
com solidez, é como o olho do furacão: você vê todas aquelas coisas confusas e
loucas acontecendo em volta, enquanto a narrativa linear se mantém inalterada.
Como Route 225 que comentei esta semana, é “by the way”,
uma estrada, uma fenda ou caminho proporcionando a passagem de um lugar para
outro. Você pode ver como evolução, crescimento. Milk Closet mistura SF com
representações difíceis da base diária de uma criança do fundamental ao ensino
médio. É a ideia de todos os seres vivos como uma consciência evolutiva, é o
que significa cada universo daquele. Não por acaso o título se chama “Milk
Closet”. Um título vago em que o autor referencia o mundo impenetrável [pelos
adultos de cada criança]. É de fácil percepção os conflitos vividos pelas três
garotas, entre elas, e a amizade que nutriam uma pela outra. Amor, ódio,
inveja, desamparado, afeição, todas essas coisas podem brotar no peito ao mesmo
tempo. É um ângulo que torna a rivalidade [velada, mas que explode em determinado
momento] entre Hana e sua melhor amiga mais alucinante dramaticamente. Elas se
gostam, mas não podem evitar certos sentimentos. Tomizawa é bastante sutil, mas
é notável também em como o lar de Hana era desestruturado, com o pai sempre
penetrado e fechado em seu próprio mundo, simbolizado pelo fato de estar sempre
digitando no seu notebook. É assim que seu dedicado, atencioso e amoroso
professor, se torna a figura de seu pai em outro universo.
Por que as tramas atropelam uma à outra e vão perdendo o
foco narrativo? Porque não importam. A batalha contra as formigas alienígenas
não é o ponto máximo em que o roteiro quer chegar. Seu desfecho é num universo
contido no interior de cada criança (“Um universo dentro de um universo dentro de
um universo”), lá não existem adultos.
São eles que formarão o novo universo, se conectando entre
si. O que é muito revelador, tendo em vista que, de fato, são elas que formarão
um novo universo, revestido de futuro. Lembra bastante um dos mitos da criação,
e eu quero falar sobre isso, mas fica pra um próximo texto (Influências: Mitos da Criação e o Culto às Mulheres).
Trívia
Em tempo, para aqueles que leram o mangá: caso não tenham
percebido, o doutor do primeiro capítulo, que queria muito ver o que somente as
crianças poderiam ver, é transformado por Liesl em um simbionte mutante,
realizando o seu grande sonho de explorar estes mundos. Como dito no texto,
Milk Closet refere-se ao mundo fértil, ingênuo, perigoso e assustador das
próprias crianças. Para ter acesso a ele, precisaria ser uma criança (ou simbolicamente na narrativa, ter o
peso/corpo de uma criança).
Nota: 08/10
Autor: Tomizawa Hitoshi
Volumes: 04 (finalizados)
Demografia: Seinen
Serialização: Afternoon (Kodansha)
Onde encontrar: Peçam pros scans BR fazerem!
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