terça-feira, 17 de setembro de 2013

[+18] Bloody Ukiyo-e (1988) - De Yoshitoshi à Suehiro Maruo


As vezes precisamos entender o velho, para compreender o melhor o novo.


Bom, antes de chegar ao ponto que realmente interessa, acho interessante uma breve introdução. Ukiyo-e é um gênero de xilogravuras japonesas do século XVIII ao XIX, do período da era Edo (1603-1867) ao fim da era Meiji (1868 – 1912). Pra entender o sucesso do Ukiyo-e, que antecedeu o mangá morderno, 3 detalhes já dão uma básica compreensão: 1) o período Edo foi quando o Japão esteve fechado para o mundo, uma ilha isolada. 2) Com isso, a falta de diversidade artística proporcionou o surgimento e crescimento do Ukiyo-e com enorme apelo comercial e cultural. 3) Ukiyo-e traduzido é “pintura do mundo flutuante”, o que faz um completo sentido do porque ser um gênero da xilogravura e não uma simples xilogravura.

Ukiyo-e tinha como temática fundamental a vida na cidade, o cotidiano urbano, como cortesãs de alto nível, lutadores de sumô, paisagens, teatro, distritos comerciais, etc. A censura pegava pesado na era Edo, coibindo temáticas politicas, a retratação de gente importante da alta corte e conotações sexuais explicitas. O que não evitava que houvesse transgressão, seguido de punição, é claro.

Monte Fuji visto da perspectiva de Puntox Satta em Suruga Bay em uma pintura Ukiyo-e que faz referência ao "Mundo das Dores", segundo os preceitos do budismo

A coibição levou à criação no underground de diversos subgêneros do Ukiyo-e, como o Shunga-e, que levou à primeira representação erótica com tentáculos no Japão, precedendo os tentáculos hentais muitos anos mais tarde, também produto da censura. Mas o que nos interessa aqui é o Muzan-e.

Bloody Ukiyo-e (The New Atrocities In Blood) é uma (re) imaginação de Suehiro Maruo e Kazuichi Hanawa concebido em 1988 para o clássico de 1866 ‘28 Famous Scenes of Murder and Verse’ (EIMEI NIJUHASSHUUKU), do artista Tsukioka Yoshitoshi (1839 – 1892), conhecido como o último grande mestre do Ukiyo-e. Yoshitoshi trilhou o mesmo caminho que muitos dos maiores artistas do mundo, de ascensão à pobreza e ostracismo até morrer emblematicamente. Discípulo mais notável de um dos grandes nomes da xilogravura japonesa, Kuniyoshi, ele começou aos 11 anos em 1850 e foi moldado pelo ambiente extremamente instável ao seu redor. Depois de 700 anos, a outrora Edo mergulhada no militarizado regime feudal governado pelos samurais, era obrigada pelos norte-americanos a abrir seus portos, dando inicio ao Regime Iluminado (Era Meiji). Eram momentos de momentos de indefinição politica e colapso do sistema, ilegalidades, violência, pobreza.

O pequeno Yoshitoshi que recebera a oportunidade de sonhar e exercitar sua criatividade imaginativa, por meio de Kuniyoshi, passaria por um momento de indefinição durante a doença e morte do seu mestre. A morte do pai em 1963 foi apenas o estopim para que essa década ficasse marcada pelos seus trabalhos mais graficamente explícitos de extrema violência. Foi nessas ai, em 1896, que surgiu o infame ‘28 Famous Scenes of Murder and Verse’. Para nós, olhando essas imagens agora, nem é algo tão forte e indigesto assim, principalmente se compararmos com a atual revisão de Suehiro Maruo e Kazuichi Hanawa, no entanto, tente só imaginar o impacto que isto teve na época. Em outro momento histórico, talvez o impacto fosse negativo, mas o país vivia conflitos de guerra e opressão, e sua arte retratava aquilo que a população estava sentido: o mais palpável horror social. Em contra partida, por mais que tenha gerado choque e repugnância, a curiosidade mórbida do ser humano pode ser surpreendente às vezes. Ao mesmo tempo, seu trabalho exorcizava os demônios interiores ao retratar casos reais de assassinatos com a devida linguagem poética estilizada em tela e tinta. Foi um enorme sucesso comercial que lhe abriria as portas definitivamente.

É tido como o primeiro exemplo de ero-guro (Erotic Grotesque) que se tem conhecimento. Mais: influenciou toda uma geração de artistas, de Suehiro Maruo a Shintaro Kago. Maruo foi bastante influenciado por ele em seus trabalhos (abordarei isso melhor num futuro post sobre o autor). O cenário de suas histórias remonta quase sempre aos primeiros anos da conturbada Era Showa (1926 – 1989), seu retrato da sociedade é decadente e abortiva. Assim como Yoshitoshi, mantêm uma arte refinada ao retratar o horror e degradação moral.

Mas para infortúnio de Yoshitoshi, a população logo estaria saturada de obras grotescas, fazendo com que ele continuasse experimentando novas temáticas e estilos nas décadas seguintes.

O Muzan-e não é um gênero, significa crueldade e atrocidade, mas logo se tornaria um conceito muito difundido entre vários artistas, ao ponto de saturar. Uma curiosidade, é que Yoshitoshi amargou um longo período de pobreza como consequência de sua impopularidade. Para dar a volta por cima, ele continuou trabalhando, mas chegou um ponto em que sua mulher precisou vender suas roupas e pertences para apoiá-lo, ambos estavam vivendo em condições desumanas. No meio da agravada depressão de Yoshitoshi, ele teria vários altos e baixos, além de outras 2 outras mulheres que foram fundamentais em sua vida para se reerguer, mas a situação da época era preta; rebeliões, guerrilha interna, economia em baixa, pobreza, fome, e o contato do Japão com o ocidente fez das xilogravuras um estilo de arte sem o apelo de outrora. Muito do status de Yoshitoshi vem de seu esforço para reerguer as Ukiyo-e, trabalhando até o fim da vida em técnicas inovadoras, novas linguagens visuais, mas nos seus últimos anos, seus problemas mentais reapareceram, chegando a convidar amigos para uma festa imaginária. Foi parar num hospital psiquiátrico, sendo solto em 1892, mas morrendo três semanas depois com meros 53 anos, 20 anos antes do fim da Era Meiji e entrada da Era Taisho (1912 – 1926). É minha gente, não eram dias fáceis, o Japão estava sendo reconstruído e o contato com os ocidentais transformariam o Japão definitivamente.

Oshu Adachi , de Yoshitoshi em 1885. De tão perturbadora, foi proibida de circular pelo governo Meiji com a justificativa de abalar a moral pública. Essa imagem foi inspirada por ele na lenda folclórica de a Bruxa de Adachi Moor, que possui muitas versões. Nessa, a bruxa pretende se alimentar do sangue de uma criança não nascida. 

Enfim, eram momentos de efervescência e desse cenário surgiriam muitos artistas, alguns diretamente afetados por Yoshitoshi, como o conceituado romancista de ficção policial japonesa da Era Showa, Edogawa Ranpo (você já deve ter visto muito anime, mangá e doramas baseado ou inspirado nas obras desse carinha). Os artistas seguintes que se enveredaram pelo caminho do horror, tiveram contato com um Japão em constantes conflitos, fazendo com que isso refletisse em suas obras. O ícone Godizilla mesmo é fruto do caos e horror social.

Por fim, Bloody Ukiyo-e é um exercício incrível de imaginação, não se limitando a uma mera cópia do trabalho de Yoshitoshi, mas resgatando a premissa para os tempos atuais da década de 1980. Essa nova visão não traz apenas assassinatos famosos do Japão, como o caso Sada Abe (japonesa famosa por asfixiar eroticamente seu amante, Kichizo Ishida, em 1936, e então cortar seus pénis e testículos. ÊÊÊLÁÁÁIIIIÁÁÁÁ!!!), mas também grandes figurinhas ocidentais, como Fritz Haarmann e Adolf Hitler. Mais: grandes personagens pops queridos, como Marc Bolan retratado como um revolucionário ou Edogawa Ranpo retratado a caráter como detetive, o estilo que ajudou consagrar no Japão. Como se pode notar, possui um grau muito maior de nudez, perversão e degradação moral.

Esses são alguns dos meus preferidos...





Essa aqui é do Suehiro Maruo, uma versão pós-moderna da famosa história da Chapeuzinho Vermelho (Litte Red Riding Hood). O que me instiga na arte do Maruo é o fato dele ser um puta cara imaginativo que foge do senso comum da maioria dos artistas e isso fica mais evidente nessa obra onde sua arte se contrasta com a de Kazuichi Hanawa, que também é muito bom, mas não gera aquele susto ao tocar os olhos na imagem e instintivamente erguer as sobrancelha. É o choque frente ao absurdo do que se vê na tela. Nessa ai, por exemplo, na descrição diz "Eu não tenho medo de sangue, porque eu sou uma garota". Segundo o editor, é baseada no fato de que todas as mulheres têm períodos. Segundo ele, a imagem de uma Chapeuziho resgatada da barriga do Lobo e se apegando ao caçador é terno e triste. Eu achei apenas hilário huhuehuehuehueehu. Pow, olha a expressão de pavor do caçador, olha pra face esquelética da Chapeuzinho... HAHAHAHA!



Estilo do Maruo é inconfundível, né? Segundo o editor, há meninas no Japão que tremiam de medo só de ouvirem a palavra "Hebi Shojo" (Snake Girl), com o termo se tornado substantivo de 'medo'. Hebi Shoujo é um mangá de Kazuo Umezu, de 1965, sobre uma aldeia assombrada pela lenda da mulher serpente. Ele tece elogios a Umezu e suas obras, como Kami no Hidarite, Akuma no Migite (Mão Esquerda de Deus, Mão Direita do Diabo), e que se preocupava com a tentativa de recriar um universo como o de Umezu. E Maruo sem dúvidas conseguiu dar o tom certo para referência, transformando-a num tipo de paródia, como aconteceu na imagem anterior. O senso cômico que também era a marca registrada de Umezu. 




Essa é do Kazuichi Hanawa, sobre um ensaio que havia escrito sobre uma exposição com modelos de órgãos genitais, imagens de mulheres mortas que foram estupradas. Segundo ele, foi algo que o deixou aterrorizado na infância, "Fiquei muito impressionado com as imagens do corpo de uma criança que estava em uma mala. Eu escrevi este ensaio com base nessa memória vívida. O enredo desta história é que o personagem principal estava olhando para um corpo de um menino bonito, que estava em uma mala acreditando que era uma figura de cera, mas na verdade era um cadáver real.". O que eu gosto nessa imagem é a estilização aplicada por Hanawa, com cores muitos fortes e opressivas. Não é algo que gera choque ao entrar em contato, mas soa bonito aos olhos.





Okay, precisa dizer que é mais uma vez do Maruo? Essa ilustração é baseada no serial killer alemão Fritz Haarmann. Homossexual, ficou conhecido como açougueiro de Hanover e vampiro de Hanover pelo assassinato de 27 meninos e garotos entre 1918 e 1924. Todas as suas vitimas eram bonitas e ele os matava mordendo-os na garganta, deixando jorrar sangue pera ferida aberta. As pessoas também o chamavam de "o vampiro dos tempos modernos". Na visão de Maruo, ele bebe o sangue que jorra da cabeça de um lindo jovem, depois de estripá-lo. Como é Maruo, não poderia faltar o tom debochado, então ele colocou um gato preto carregando uma das mãos da vítima como seu almoço, ASDLKDJFGKJHSFGKL. Legal também que o serial killer tinha outra adjetivo: Açougue humano. E a imagem passa a exata dimensão disso. 




Heil Hitler!!!! Eu tive um amigo que odiava quado eu fazia essa cena perto dele. HEEEIL HITLER! Aqui, Maruo recria a emblemática cena do suicídio de Hitler. Esse cenário ficou fantástico, com um aspecto de podridão, caoticamente sujo. O cenário é de desapego, então acaba soando como uma fuga e desamor a qualquer sentido de realidade. A imagem na mente, de Mussolini e sua amante Clara sendo execrados publicamente pendurados de cabeça para baixo em praça público, atormentara Hitler, que poucos dias antes do suicídio duplo dele e de sua esposa, se casara com Eva Braun. Como não poderia faltar, a imagem esquelética de um defunto espectro deflorando as nádegas da esposa de Hitler dá o tom!



E essas são duas imagens lindíssimas de Hanawa, sobre tragédias ocorridas no Japão. 


Bloody Ukiyo-e ainda traz a reedição dos originais de Yoshitoshi. Além da arte de Suehiro Maruo no estilo que o consagrou e de Kazuichi Hanawa, que são espetaculares numa riqueza estética de acrilic on canvas. Outro bom apelo são os comentários em inglês sobre cada peça de Ukiyo-e presente na obra.

Anos atrás houve uma reedição especial comemorando os vinte anos de Bloody Ukiyo-e, com apenas incríveis limitadas 50 edições ao preço de um olho da face. Pra colecionador!


Os xogunatos da Era Edo não contavam que, o conceito de “pintura do mundo flutuante”, ganhasse através dos anos um significado muito maior, porque se parar pra pensar, o que as Ukiyo-e registraram foram, além de um Japão, um mundo flutuando, se transformando rapidamente, independente de seus interesses e regras definidas. O underground se tornou um registro da história. 



Temas Relacionados:
- Goth

***

Curta o Elfen Lied Brasil no Facebook e nos Siga no Twitter