Sangue, Arte, Terror, obsessão e Amor. Esse texto tem duas
partes no mesmo artigo. Com spoilers (no
final do post) e sem.
“Quem me amaria tanto, a ponto de renunciar sua própria
vida? Se alguém se afogasse no mar por minha causa… Nesse instante eu seria
libertada dessa pedra. Devolvida à vida. Poderia voltar a viver. Mas… se algum
dia eu fosse trazida de volta à vida pela pessoa mais querida que possuo. Nessa
hora, eu ia chorar solitária. Choraria só, procurando pela minha pedra. Mesmo
que meu sangue fosse tão doce como vinho, quão admirável seria? Afinal, não
posso trazer de volta das profundezas do oceano a pessoa que mais me amou.”
— Cossette d'Auvergne
Escondido dentro de um arco-íris da bacia matizada de um
copo veneziano reside o espírito de uma garotinha francesa do século XVIII, Cossette
d'Auvergne (Marina Inoue), que em
um monologo poético logo no inicio do OVA, revela que esperou 250 anos pela
pessoa que fosse capaz de retirar sua maldição pra que sua alma pudesse
descansar. Alguém que iria se apaixonar a tal ponto de fazer um pacto de sangue
com ela e expiar os pecados do homem que lhe ceifou a vida.
Le Portrait de Petite Cossette (‘O Retrato da Pequena Cossette’. O título japonês é alternativo;
‘Cossette no Shouzou’, o que em uma tradução literal, ficaria como ‘Retrato de
Cossette’) nos deixa saber logo no inicio do primeiro episódio que todos os
objetos possuem uma alma neles. Qualquer um. O estudante de artes Eiri
Kurahashi (Mitsuki Saiga) descobre
essa verdade quando seu avô manda para ele uma remessa de antiguidades para
ele, que descobre o espírito de Cossete na taça de vinho veneziana e desde
então, passa a ver seu reflexo, se apaixonando perdidamente. Eiri é responsável
por um antiquário shop num tranquilo mercado comercial no centro de Tóquio, e
enquanto todos os seus amigos sofrem conflitos românticos, ele não parece ter a
mesma preocupação, para desalento da sua amiga apaixonada Hatsumi Mataki (Kumiko Yokote). Pelo contrário, Eiri
parece ter encontrado o amor e está feliz com isso, o que deixa a todos
curiosos em saber quem é. Não desconfiam que se trata de uma franzina criança
francesa de pele branquíssima, olhos azuis e cabelos loirinhos que se veste
como Gothic Lolita.
Cossette é tão linda que mais parece uma bonequinha de
porcelana. Ela que viveu no século XVIII, vinda de uma família europeia nobre,
que um dia é chacinada, juntamente de Cossette, por seu fiancée (noivo) Marcello Orlando (Masashi Ebara). Não deixa de ser estranho ver uma criança como Cossette, que
deveria ter o que?, no máximo uns 10 ou 11 anos, casada com um homem adulto
como Marcello, mas era um costume cultural da época – que segue sendo um
costume cultural mesmo nos dias de hoje em muitas culturas, o que eu acho
assombroso. Fora essa opinião particular, a construção de mundo da série de 3
OVA’s [de mais ou menos 35 minutos] comandada pelas mãos firmes de Akiyuki Shinbo ainda sem ser a estrela que é atualmente mas já altamente experimental, é lindamente
sólido e tão bem contextualizado – onde há um motivo para tudo, como por
exemplo, na aparência física de Cossette – que eu me assustei ao chegar ao
final e perceber que eu entendi plenamente o que a história se dispôs a
apresentar.
O motivo da surpresa de eu ter achado tão simples dessa vez,
é que na primeira que assisti Petite Cossette, achei bastante confuso. Vai ver
na época eu não prestei atenção suficiente, além do fato de ter sido um dos
primeiros animes que assisti. Na verdade, eu não estava é familiarizada com o estilo de terror japonês, que é tematicamente oposto ao ocidental. Isso é o
que mais leva ao não entendimento de nossa parte aqui do outro lado do globo
quanto à história. No Japão, o papel da criação cabe aos irmãos Izanagi e
Izanami, divindades nascidas do caos do próprio Cosmo, dando origens a outras
divindades e ao xintoísmo (Caminho dos
deuses), a religião nacional japonesa. O fato de ao contrário das religiões
ocidentais o xintó não ter um deus soberano sobre todas as coisas, faz com que
vários dogmas sejam inexistentes por lá, o que se explica muito certos hábitos
e fetiches, assim como a alta taxa de suicídio por lá. Xinto é uma religião animista,
ou seja, a atribuição de um espirito a objetos, cosmos, elementos da natureza e
seres vivos, fenômenos naturais; segundo o dicionário todos esses elementos são
passíveis de possuírem sentimentos, emoções, vontades ou desejos, e até mesmo
inteligência.
Seja em obras como Death Billiards, Sasami-san@Ganbaranai,
Jigoku Shoujo, Death Note, Suzumiya Haruhi, Monogatari Séries, Another,
Colorful ou o terror de Junji Ito, boa parte do que é sobrenatural no Japão é
carregado dos preceitos xintós e budistas. Entender isso é compreender melhor
as produções artísticas que consumimos de lá. Para o japonês não é errado
seguir as duas religiões, embora o budismo seja uma religião moral e dogmática,
o oposto do xintó. Esse sincretismo entre budismo e xintoísmo é ricamente
explorado em Petite Cossette, embora nunca dito em voz alta, as imagens estão
lá!
[imagem de buda]
Não consigo imaginar Petite Cossette da forma que é em outras
mãos que não a de Shinbo; fora claro, grandes mestres como Satoshi Kon e Mamoru
Oshii; penso que esses dois fariam um trabalho ainda melhor com essa obra –
isso por que se trata de uma história sobre a relação do homem com a arte. O
tipo de dualidade conflitiva disseminada nas obras de Kon e Oshii sempre
brilhantemente explorada por ambos. Mas com um orçamento abaixo da média,
Shinbo faz um trabalho exemplar, ao lado da maestra Yuki Kajiura, ao traduzir
em imagens os sentimentos dos personagens. Ver Shinbo explorando visualmente o
máximo que uma obra audiovisual com baixa qualidade de animação pode oferecer é
como se sentar diante de um artesão e vê-lo transformar barro em escultura.
As escolhas estilísticas feitas por Shinbo é o que definem Petite
Cossette. Sem isso, o belo roteiro escrito por Mayori Sekijima seria ao invés
de uma melodia, um poema gótico. Os variados ângulos de câmera, os filtros
aplicados, o simbolismo de várias cenas, o uso de cores, de iluminação; uma
experiência visual que estimula a percepção do espectador. Vou citar alguns
exemplos do que mais gostei.
- Como as luzes e trevas envolvem Cossette. Quando nos é
permitido saber um pouco mais dela, vemos o seu lado mais brilhante e alegre a
brincar no castelo, sendo projetada em suas risadas, a essência de uma criança
despreocupada e feliz. Mais tarde, temos uma visão mais clara de Cossette, onde
ela emerge da escuridão com uma expressão densa no rosto. O modo como a
iluminação revela seu semblante é de um sincronismo perspectivo incrível, pois
é o momento de compreendermos que ela trazia dentro de si sentimentos complexos
inerentes a uma criança, principalmente naquela situação. Em uma determinada
cena, Cossette diz que não gostava de ser desenhada por Marcelo, mas Eiri julga
isso contraditório, pois nos desenhos de Marcelo ela está sempre sorridente e
com um semblante apaixonadamente dócil. Esse é só um exemplo de duas sequências
distintas, uma mais visual e a outra por parte do roteiro, que se mostrarão
fundamentais para compreender o desfecho da história. Afinal, [spoilers,
selecione para ler >>>] aquela
que Marcelo retratara nas imagens não era e nunca foi a verdadeira Cossette,
mas a Cossette que ele queria ver (falarei
mais sobre isso adiante).
- Outro exemplo do meu agrado é como Shinbo utiliza
insistentemente objetos reflexivos. Óculos, relógios, pisos, vidros, taças,
espelhos, globos oculares, etc., tudo reflete, o que de certa forma se torna
bastante instigante. E em quase tudo que reflete, está a imagem de Cossette. Sem
falar nas sugestivas bonecas sempre sendo evidenciadas naturalmente. Isso é
algo que só é possível compreender ao terminar a série de OVA’s (vou falar disso na área de spoilers logo à
frente). Assistir Petite Cossette é como estar jogando uma charada, pois há
dicas do verdadeiro teor da história em tudo, seja nos diálogos e monólogos ou
no audiovisual. Até mesmo o título da série entrega o jogo. Algo me diz que eu
não deveria estar comentando isso tão abertamente.
- Por último, a divisão estabelecida pela direção entre
mundano e sobrenatural. As locações do mundo físico de Petite Cossette não são
tão abrangentes, soam mais como cenário de filme barato, onde há poucos e tudo
no mesmo estúdio. Há o mercado, suas lojas, o barzinho, um restaurante, uma
rua entorpecida pela escuridão, e principalmente o antiquário de Eiri, onde as
maiorias das sequências se passam. São todos representados sem nenhuma
anormalidade, além da estimulação visual e da sonoridade que causa por vezes certo
desconforto agudo de que há algo de estranho acontecendo. Trilha sonora, que, aliás, nestes ambientes,
se mostra sempre tímida, baixinha, densa e desconfortável, dando um tom de
gravidade. Quando ausente da trilha sonora Kajiuriana,
a sonoridade é completamente diegetica. São detalhes que deixam o ambiente mais
pesado. Quando Petite Cossette extrapola o mundano rumo ao sobrenatural, o cenário
é absorvido pelo surrealismo. A trilha sonora ganha tonalidades épicas,
agressivas, estridentes, oníricas. O gatilho para o surrealismo sobrenatural é
sempre desencadeado pelas emoções de Eiri e o cenário é sempre a sua mente,
sendo o seu corpo os únicos sinais físicos das manifestações surrealistas. Com
exceção de um momento no OVA final, em que Mataki também passa a desencadear
esse processo depois de presenciar uma manifestação física no corpo de Eirin, ou da espirita Shouko (Megumi Toyoguchi) e da vidente Michiru (Ikumi Fujiwara).
Dessa forma, Shinbo estabelece uma relação crível entre o espectador e o mundo
apresentado, uma vez que ele nunca deixa de ser um mundo normal sem ocorrências
sobrenaturais, relegando todos os ocorridos à mente dos principais envolvidos. Acaba por ser uma relação introspectiva entre homem e sobrenatural,
como ocorre de fato em nosso mundo real.
Embora os CG’s sejam as vezes soem desconcertantes de tão feios, o surrealismo de Petite
Cossette é muito bonito. Sem dúvidas, o aspecto que mais chama a atenção aqui. É
difícil assistir impassível, sem fazer mentalmente vários links cognitivos com
outras obras do gênero, como o clássico expressionista Gabinete do Dr. Caligari
(1920), a fábula espanhola O
Labirinto do Fauno (2006), o dark
fantasy Paperhouse (1988), o
clássico romance O Retrato de Dorian Gray (1890/1891),
e até mesmo os nomes dos pintores surrealistas Max Ernst e Salvador Dali vêm à
mente – principalmente porque relógios e engrenagens estão sempre em evidência e o tempo é
muito explorado por recursos visuais. E é inevitável não fazer tais relações,
porque todas essas obras citadas fazem uma correlação muito estreita entre a
arte e o individuo, entre o individuo e sua mente obsessiva.
Le Portrait de Petite Cossette é um dos melhores trabalhos
do Shinbo que depois se tornaria o Akiyuki Shinbo exclusivo do estúdio SHAFT. Petite Cossette é uma série de 3 OVA’s
originais, que também dá origem à um mangá homônimo de 2 volumes, como projeto
multimídia. É uma série repleta ricamente de nuances imaginativas, não a vejo funcionando
da mesma forma em outra mídia sem que se altere sua estrutura. Foi bom revê-la,
acabei gostando bem mais de quando vi pela primeira vez. O BD da série será lançado agora em Outubro, a chance de ver em uma qualidade muito melhor.
Direção: Akiyuki Shinbo
Roteiro: Mayori Sekijima
Episódios: 3
Tipo: OVA
Duração: 36 min. por episódio
Estúdio: Daume
Produtora: Aniplex
ANN: http://goo.gl/hBkHeB
MAL: http://goo.gl/IJNMoE
- A História do Terror Japonês
- Death Billiards – Madhouse (2013)
- Shiki - o melhor de 2010
- Colorful (Movie) – O Sentido Da Vida
- Mermaid Saga: A lenda das Sereias por Rumiko Takahashi
- Perfect Blue: Um eletrizante thriller psicológico!
Trivia
- A História do Terror Japonês
- Death Billiards – Madhouse (2013)
- Shiki - o melhor de 2010
- Colorful (Movie) – O Sentido Da Vida
- Mermaid Saga: A lenda das Sereias por Rumiko Takahashi
- Perfect Blue: Um eletrizante thriller psicológico!
Trivia
Peguei essas imagens comparativas enquanto assistia Petite Cossette. É impressionante o controle estético que Shinbo exerce sobre o que produz. A referência abaixo é com relação a Madoka Magica, que se vê muito aqui, mas também há muito de storyboard usado em outras séries dirigidas por ele, especialmente Monogatari Series. Também nota-se aqui fortes referências a Evangelion, o que também se mostrou muito forte em Madoka Magica. Ele tem uma formula e a usa sempre, só alterando os personagens, mas os cenários, posições, o comportamento dos personagens em cena, enfim, é intuitivamente e essencialmente o mesmo sempre.
Spoilers: Um Pouco Mais Sobre Le Portrait de Petite Cossette
-clique para ler
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